Revista Philomatica

sábado, 21 de dezembro de 2019

Como manter sua sanidade mental

Em dias em que tudo se liquefaz, principalmente as amizades, é sempre bom despir-se de preconceitos. Talvez seja esse o primeiro ponto para que tenhamos uma mente saudável. Por isso, lance mão daquele esquecido livro de autoajuda e folhei algumas páginas à procura de uma ideia qualquer que lhe possa indicar um caminho. É provável que entre uma centena de páginas, você encontre duas ou três que de fato mereçam ser lidas e guardadas no espírito, e só por isso vale a pena.
Não se esqueça de que a leitura é sempre seletiva. Quem não se lembra do homem da tesoura, o guarda-florestal e leitor contumaz mencionado por Antoine Compagnon? Pois bem, nosso leitor afirmava que tinha uma biblioteca pessoal que não servia como exemplo a qualquer outro leitor; nela, dizia, havia livros de todos os tipos, mas, se um leitor comum decidisse abri-los levaria um tremendo susto, pois a maioria deles não continha mais que duas ou três páginas; todos incompletos, haja vista nosso leitor ler com a tesoura nas mãos e cortar tudo o que o desagradava. De Baudelaire dizia ter conservado apenas duzentos versos; de Proust, apenas o relato de um jantar em casa da duquesa de Guermantes.
Na vida, caso queiramos manter a sanidade mental, não devemos nos deixar enveredar pelos redemoinhos criados por aqueles que estão à nossa volta, devemos sim é andar com a tesoura nas mãos. Ao selecionarmos colegas e amizades, resultado de nossas tesouradas, não fazemos nada além daquilo que pedimos ao Altíssimo em nossas orações, qual seja, que nos livre de todo o mal, amém. Não devemos nos sentir arrependidos ou ter remorsos de nos afastar deste ou daquele, até mesmo porque quotidianamente encontramo-nos com os bons e os maus. Há, por exemplo, os vampiros de energia, pessoas que se aproximam de nós com um único objetivo: reclamar da vida e nos colocar para baixo. Reflita: quantos à sua volta são assim? O que fazer? Tesoura neles!
Há também aqueles que são como Monsieur Orgon, personagem de Tartufo, de Molière. Orgon entrega-se instintivamente a algo único que lhe preenche o espírito: tiranizar e atormentar o próximo. É célebre a frase da personagem faire enrager le monde est ma plus grande joie (enfurecer o mundo é minha maior alegria), que dá vazão à sua necessidade instintiva, tornando-o um sádico tirano familiar. A vida não é fácil e, como dizia Sartre, o inferno são os outros, por isso, respire fundo e siga alguns passitos:
1. Medite. Meditar tem lá suas especificidades, para cada um é uma coisa, mas, no frigir dos ovos, nada mais é que desanuviar-se, tranquilizar-se. Ouça uma música relaxante, inspire, expire, pense na sua respiração, procure um lugar calmo, aproxime-se da natureza, escute o som dos pássaros, o vento a tocar nas folhas, ouça o barulho da água. Discipline-se sobretudo, pois isto requer treino uma vez que nos tornamos seres autômatos, guiados pela produção.
2. Tenha um animal. Deixe as frescuras e a viadagem de lado, aquilo de ah! cachorro e gato soltam pelos; cachorro cheira; é preciso limpar cocô; tem que sair para caminhar com o cachorro; e quando eu viajar?, sim esses amigos vão tornar-se bastante dependentes de você, mas o retorno para a sua saúde mental não há Credicard que pague. Eles são seus AMIGOS e amizades precisam ser cultivadas - estão aí a raposa e o Pequeno Príncipe que não me deixam mentir.
3. Reavalie seu estilo de vida. Não podemos nunca transformar nossa mente em uma fortaleza. As paredes são sólidas caso acreditemos que uma situação x será determinante para o futuro de nossa existência. A vida muda, as coisas mudam, as pessoas mudam. Nada é perene. Por isso, seu grande problema de hoje, amanhã, você o verá como algo desprezível e que não valeu a pena toda a energia e o esforço nele consumido. Durma bem. Dormir ajuda a desligar os botões do estresse, da vida profissional, dos vampiros de energia e dos sádicos. 
4. Procure válvulas de escape. Caminhe, cante, cozinhe, movimente-se, enamore-se! Busque a natureza. Leia! Ocupe sua mente. Prefira o simples. Aprecie o céu e as estrelas. Fuja das muvucas, por mais que você seja curioso. A confusão não é contigo? Seja indiferente, ignore, não opine. É com você? Pondere, reflita; às vezes é preciso dar o braço a torcer, faça seu opositor achar que está no controle e recupere sua paz e sua calma.
5. Respeite seus instintos. Relaxe. Ame-se e viva bem! Mesmo que queiramos, não vamos consertar o mundo, por isso, cuide de seu quadrado e seja feliz!



sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Igualdade entre os homens? Só na criaturalidade ou na morte.


Há um aforismo popular a dizer que devemos andar pra frente e esquecer o passado. Também dizem que a voz do povo é a voz de Deus, por isso acredito nos adágios e ditos populares, mas, como trago na alma um ceticismo ferrenho que não me larga nem quando acontece aquela explosão no espaço que vai da fruta ao caroço, vivo desconfiado, razão pela qual bato o pé e insisto nas releituras.
É certo que em meio à descrença não deixo de me lembrar de Santo Agostinho e sua reflexão sobre o tempo, quando o religioso comenta sobre os conceitos de passado, presente e futuro. Budistas também preferem o caminho do meio, não ficam remoendo o passado – e ali vivendo –, penso que nem mesmo planejam um futuro incerto. Já os cristãos, estes se culpam pelo passado, penitenciam-se, não se perdoam.
O fato é que o passado nos deixa fortes quando o canibalizamos, e, se na vida o tempo escorre pelos vãos dos dedos sem que possamos recuperá-lo, nos livros conseguimos preservá-lo e dele tirar lições – e quem sabe algum rumo para continuar nossa aventura até que nos tornemos todos iguais. Sim, pois só a morte traz a igualdade entre os homens, o resto é retórica, filosofia, sofismas – balela.
E como falei da releitura como veículo para voltar ao passado, passo a comentar um texto de Auerbach, em que o autor chama a atenção para o conceito de criaturalidade, isto é, o sofrimento a que o homem é submetido como criatura mortal, algo comum e que se aplica a todos nós mortais, que nela nos irmanamos.
Basta olhar para o passado e lá encontramos traços da criaturalidade desde os primórdios do homem. Tome-se por exemplo a antropologia cristã, que ressalta a condição criatural do homem, sujeito a sofrimentos e à mortalidade. A Paixão de Cristo surge como o mais insigne exemplo desse modo de pensar, isto é, para se chegar à salvação é preciso sofrer – e muito! E olha que nem falo de toda a santaiada criada pela Igreja...
Nessa lógica, acontece uma relativização e uma desvalorização da vida terrena; não à toa, no século XVIII, os Iluministas clamaram pela felicidade agora, já! O paraíso? Deixa pra lá, depois a gente vê. Segundo Auerbach, “nos primeiros séculos da Idade Média ainda estava muito vivo o conceito segundo o qual a sociedade terrena tinha valor e metas”. Dante surge como “exemplo de um homem para quem o planejamento secular e o esforço político por parte dos indivíduos e da sociedade humana em geral eram esteticamente importantes, altamente significativos e decisivos para a salvação eterna”.
Velhos tempos. O que há de diferente entre este homem do antigo humanismo e o homem atual, que ejacula alteridade quotidianamente, clama por igualdade, mas é indiferente à exploração e à miséria? Nesses nossos tempos cruelmente particularistas e regidos pelos interesses, em que os novos acontecimentos são incompatíveis com as ideias genuinamente humanistas, em que fingimos ser, guiando-nos pelas aparências, já não conseguimos mais interpretar e ordenar esteticamente as novas formas políticas, econômicas e artísticas. A arte tornou-se um amontoado de fragmentos que responde às individualidades, em detrimento do coletivo. Este, determinado pelo consumo, deixa-se alienar e trata a cultura de massa como arte genuína. E paro por aqui, porque senão...
Vivemos um tempo de cansaço, esterilidade e aparências. Somos egoístas, venais, mas sequer admitimos isso, porque antes de tudo somos vis e hipócritas! E, como o tempo é curto, volto à minha releitura, mas não sem antes deixar um pequeno entrecho de Auerbach, que ecoa lá do passado: “O que há de peculiar nesta imagem radicalmente criatural do homem, o que está em nítido contraste com as características do antigo humanismo, reside no fato de que, por mais respeito que demonstre diante da roupagem terrena e social que o homem veste, perde todo o respeito diante dele mesmo, tão logo a despe; por baixo desta vestimenta não há nada além da carne, que será ofendida pela idade e pela doença, que será destruída pela morte e pelo apodrecimento.”
Por isso, no sofrimento e na morte, enfim, somos iguais, por mais que na vida tenhamos sido Gugu.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Homens: hipocrisia, barbárie e literatura


Colocando os pingos nos is: cansado da hipocrisia, da lisonja e do politicamente correto que, como qualquer um, trago no espírito como arranhões, ao referir-me a homem falo dos dois gêneros tradicionais e dos outros cinquenta e tantos que a diversidade nos trouxe com a flâmula da liberdade desses nossos tempos mais livres, porém, não menos ignorantes, bárbaros e bestiais.
Hoje, ao ler uma daquelas reportagens absolutamente dispensáveis, que jornais e sites de notícias produzem como uma mancha de tinta, só para não manter o espaço em branco – talvez seja o caso desta crônica –, consegui ainda me surpreender com a ética, o respeito, a humanidade, a compreensão, a alteridade, a bondade, enfim, a cristandade dos internautas em seus comentários. Ali, tem-se a impressão de que vivemos no melhor dos mundos possíveis e, arrisco afirmar, é provável que já estejamos vivendo a Era de Aquarius tal a generosidade, a gentileza e a empatia que brotam do espírito dos homens na convivência do dia a dia; tudo é tão intenso, tão eufórico, que acredito ter havido uma total inversão da ordem: estamos nos céus e não nos demos conta – algo difuso tem vedado nossos olhos –, a harmonia é tanta, o amor está no ar, tudo é tão bom que o inferno evaporou nos ares ou adentrou às páginas dos livros de literatura, este espaço inominável em que perversos e libertinos insistem em invencionar e garafunhar sobre páginas em brancos a vida obscura e devassa de personagens que a ficção tem produzido sem qualquer verossimilhança com este nosso mundo real, caridoso e magnânimo, uma prova de que também o realismo e a mimeses já não têm razão de ser, acabaram-se, por mais que tentemos endeusar Aristóteles ou reler Auerbach.
O século XXI é a glória, sobretudo se comparado ao anterior, que hoje jaz silencioso entre as páginas de livros cujas bordas e miolos acumulam o pó que também cobriu a desfaçatez, a corrupção e o mal caráter do homem, fazendo deste um ser sublime e etéreo que desliza pelos caminhos do céu terreno.  
Vivemos um pós-realismo metafísico em que nossas vestes, alvas, sequer imaginam a vida pregressa de aventuras que os livros escondem – e que não nos atrevemos a curiosar, até mesmo porque já não temos mais paciência para a leitura, afinal, para que ler 200, 300, 400 páginas se temos o Twitter, o Facebook, áudios e as imagens no Instagram? Para que precisamos aprender a escrever se até recentemente insistiam em nos dizer que devíamos nos arvorar contra tudo e contra todos que ousassem nos corrigir ou nos ensinar? Felizmente em nossos dias já não há mais preconceito linguístico, e o mais genial, já não há mais qualquer preconceito, já não há mais nada!, pois somos lindos, felizes, humanistas, somos da Era de Aquarius! Tudo isso está lá, nos comentários das redes sociais e das reportagens publicadas em sites de notícia. É como se lêssemos um diário celestial. Atingimos a perfeição! Quem imaginaria? Rousseau? Este se foi há muito tempo...
Alguém arriscaria a dizer o contrário? Ninguém, claro! Só se quisesse passar uma temporada na Casa Verde... bem, deixe-me explicar dado que já não lemos, a Casa Verde, conhecem? Sim, aquela, aquela lá de Itaguaí, a do Alienista...
Quem arriscaria a dizer que no século passado ainda éramos cruéis, hipócritas e corruptíveis? Quem ousaria afirmar que usamos muito de nossa criatividade para criar um mundo de horrores, duas guerras mundiais, governos fascistas e totalitários, e proibíamos as pessoas de ir e vir? E tudo sob a desculpa de espalhar a igualdade? Quem arriscaria uma temporada na Casa Verde, sob o risco de imitar Lúcifer e ser expulso desse paraíso em que vivemos hoje? Só para ter o gostinho de afirmar que criamos técnicas de extermínio em massa, câmaras de gás, campos de concentração, muros, cercas eletrificadas, sequestros, terrorismo, o maniqueísmo da direita-esquerda, e que implantamos tudo isso em nome dos direitos do homem, da igualdade, da justiça e da liberdade? Eu não!
Orgulhosos, criamos as revoluções culturais, a libertação dos povos, as teologias da libertação... criamos tudo isso e muito mais! E tudo, repito, pensando nessa nossa Era de Aquarius que ora vivemos e desfrutamos sem sequer nos darmos conta! Os livros, ah! os livros... para que lê-los? A ignorância e a hipocrisia são tão pacíficas, belas e aprazíveis... Para que fuçar em Tolstói, Dostoievski, Bradbury, George Orwell, Machado, Voltaire, Bielinski, Herzen, Turgueniev e tantos outros? Por que acreditar nesses homens espúrios que denunciavam a falaciosa autonomia do homem e que, a exemplo de Franz Werfel, afirmava que tudo terminaria em uma “confusão fatal da liberdade com a anarquia moral” – e acrescento, ética!? Pra quê? Pra vermos a mentira e nos cegarmos com a verdade, sermos expulsos desse nosso mundo céu paradisíaco? Afinal, quem se atreveria a dizer que não vivemos no melhor dos mundos possíveis? Está tudo tão perfeito... ontem mesmo, leitor, tivemos a prova disso: quem não soube do ministro do STF homenageado pela câmara dos deputados por serviços prestados a esse mundo que não é o nosso, mas deles?


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A banalidade do mal e a causa animal


A história vem de longa data. Quem já não ouviu falar de Caim, o lavrador que, ciumento, deu cabo em Abel? Por estas horas, a serpente já havia enrolado Eva na conversa e Adão também já havia visto a boa vida que tinha no paraíso escorrer-lhe pelos dedos. É provável que tenha se irritado com Eva e até mesmo a odiado. O ódio, convenhamos, tem lá a sua pitada de maldade, assim como o ciúme, razão pela qual Caim fez o que fez com Abel, o pastor. Disso, deduz-se que o tropos do maior dos livros é um eterno embate entre o bem e o mal, maniqueísmo que persiste até nossos dias e nos faz a ser o que somos.
Nos anos de 1960, quando o Mossad, em uma operação espetacular, raptou Adolf Eichmann, criminoso nazista e um dos principais idealizadores do Holocausto, na Argentina, país também comandado por nazistas, a filósofa Hannah Arendt, a serviço do jornal The New Yorker, acompanhou o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Findo o julgamento, Arendt escreve Eichmann em Jerusalém, obra em que aprofunda o conceito de “banalidade do mal” por ela criado, ao defender que o resultado da massificação das sociedades criou uma multidão incapaz de qualquer juízo crítico, qual seja, inábil para julgamentos morais, aceitando ordens sem ao menos questioná-las.
Eichmann, membro da elite nazista e um dos idealizadores da solução final, portanto, visto como monstro em potencial, no julgamento revelou-se apenas um funcionário zeloso que fora incapaz de descumprir as ordens que recebera. Com isso, o mal torna-se algo banal. Bastante criticada, sobretudo porque o livro traz exemplos de judeus e instituições judaicas que, submetidas aos nazistas, cumpriram suas diretivas sem questionamentos, Arendt reflete principalmente sobre a violência impetrada por governos totalitários, cujo domínio revela-se mais opressor que a escravidão. Nas tiranias, sob a batuta das ideologias que as sustentam, seres humanos são capazes de realizar ações impensáveis, como a destruição e a morte, sem, contudo, serem motivados por qualquer malignidade.
Ao se deparar com o depoimento de Eichmann, que relatava suas atividades como carrasco nazista sem qualquer hesitação ou perplexidade, usando clichês e palavras de ordem, justificando seu comportamento sob a moral da obrigação que a função lhe exigia, e mais, argumentando que em nenhum momento poderia ser tomado por um criminoso, pois apenas cumpria o seu dever, além de ser um bom pai de família e não possuir nenhum ódio ao povo judeu – mas que, no entanto, viabilizou a morte de milhões de pessoas –, Arendt pergunta: “o que faz um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?”
Deixo a questão filosófica por aqui, porém, transfiro a reflexão para a causa animal. Se em nossas sociedades massificadas, em que a humanidade torna-se algo raro e o que mais importa são as organizações econômicas e o lucro que elas geram, enfim, universo em que ninguém se importa se nos sentimos abandonados, solitários, submissos e alienados, imaginem o que não acontece com vidas que transitam embaixo dos nossos narizes e não têm voz, voz para gritar quando o desespero, o perigo, a fome e a morte batem à porta?
As pessoas, robotizadas, não veem cachorros, gatos e outros animais perambulando esquálidos pelas ruas. Essa falta de sensibilidade, penso, revela um pouco do mal que paira sobre e em nossos espíritos, mas, não bastasse isso, alguns se comprazem em torturá-los, agredi-los, matá-los. Às vezes, o que o animal procura e quer é apenas um pouco d’água, algo para comer. E o que recebe? Pauladas, chutes, água fervente. Se estiverem pensando que estas ações são praticadas por pessoas moralmente descompensadas, enganam-se! São senhoras e senhores, pais e mães, avôs e avós, muitos dos quais, aos domingos, vão à missa ou ao culto e lá imploram pela bondade divina, esquecendo-se do mal que cometeram.
O leitor deve estar pensando porque falo disso agora, não é mesmo? Só porque depois de um tempo sem acessar as redes sociais, especialmente o facebook, onde participo de alguns grupos de proteção animal, surpreendi-me, mais uma vez, com a quantidade de denúncias e pedidos de ajuda para animais vítimas de maus-tratos. Muitas vezes, a ajuda resume-se a uma assinatura, na espera de que o caso venha a ser visto pelas autoridades e os criminosos punidos, pois o animal já está morto. Mas a condenação, acreditem, nos tempos em que vivemos, receio seja algo raro.
Lamentavelmente o dito de Schopenhauer continua atualíssimo: “O homem fez da terra o inferno dos animais.” Eis a banalidade do mal, eterna como o céu, profunda como o inferno.



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Literatura pra quê?


Você já ouviu especialistas dizerem que comida boa é aquela que você retira da terra e não da prateleira do supermercado, é aquela que você descasca e não a que você desembala? Parece o óbvio não é mesmo? Mas, mesmo assim a maioria insiste em desembalar e ter overdoses de sódio ao consumir miojo e outras porcarias como o leite, cuja validade ultrapassa um ano naquela caixinha projetada pela indústria, em que sequer a soda cáustica misturada ao produto para neutralizar sua acidez consegue corroê-la. Alguém das antigas conhece a validade do leite de vaca – vaca mesmo!
Os hábitos foram tão alterados pela indústria que hoje as pessoas recusam o leite in natura por considerá-lo nojento, intragável. Pois é, com a literatura, acreditem se quiser, aconteceu o mesmo. Se a narrativa não estiver a serviço de uma causa ou de uma ideologia – e quando digo ideologia considero a indústria cultural e de entretenimentos – não presta, é erudita demais, é canônica, representa o sistema, o opressor e tudo o mais.
Desconfio de tudo! Se não leio, desconfio do texto; quando o leio, desconfio mais ainda, tento esmiuçá-lo, trato-o como inimigo, não me deixo convencer, busco nas entrelinhas o discurso sub-reptício que pode me alienar e me colocar a serviço de uma causa cujos interesses sequer desconheço, até mesmo porque a dificuldade em descobrir quem controla as marionetes na tentativa de nos tornar títeres de seus desejos e interesses é inimaginável.
Tome-se por exemplo – antes de adentrarmos ao puramente literário – as celebridades. Não falo de artistas, como Sophia Loren, que em sua biografia relata a ajuda que teria dado a um menino e que tentara manter em secreto, mas que fora descoberta pela imprensa. Refiro-me a uma casta de atores e atrizes cujo talento, na maioria das vezes (pleonasmo) é fugidio. Na tentativa de trazê-lo para perto de si, contratam empresas que gerenciam suas vidas profissionais e do nada tornam-se ativistas e pilares do politicamente correto. Às vezes o passado condena, mas essa mesma empresa trata de torcer a vara e adequar os discursos para que as celebridades surjam ilibadas, quase perfeitas. Li há pouco que existe até mesmo um cardápio de causas e à celebridade basta escolher entre militar na causa feminista, indígena, racial, gay e demais variantes. O curioso é quanto mais medíocre a celebridade, mais ela aparece! Houve até mesmo um casal que adotou uma cachorrinha abandonada na beira da estrada... bem, previra tratarmos de literatura.
Pois bem, na literatura acontece o mesmo. O Estadão publicou uma reportagem sobre o “mais completo levantamento sobre o hábito de leitura do brasileiro, a Pesquisa Retratos de Leitura”, agora sob a batuta do Itaú Cultural (desconfio de bancos sobretudo!). A novidade, no caso é realizar pesquisas “menores” em “festivais literários para conhecer o perfil do brasileiro que frequenta esse tipo de evento”. Deduz-se que quem frequenta estas feiras já é alguém ligado a livros. Não creio. É o mesmo que afirmar que alguém vai a Roma só para ver o Papa ou que todo muçulmano é terrorista!
É claro, relativizei, mas há algo errado nessa reportagem que também generaliza o brasileiro como grande leitor. Vejam: afirmam que 30% dos brasileiros gostam muito de ler, porém, na Bienal, este índice sobe para 74% e na Flup (Feira literária das periferias) 77%! Não creio que os hábitos se alteram ao badalar dos sinos. Fato é que a mesma pesquisa Retratos da Leitura recentemente divulgou que 44% da população brasileira não lê e 30% nunca compraram um livro! Ademais, basta pesquisar na rede para dar de cara com notícias que revelam uma queda de 17,94% na venda de livros nos primeiros meses deste ano em comparação com 2018.
O fato é que em sua maioria os livros e autores mencionados na lista da reportagem referenciada parecem produtos das empresas de gerenciamento, cada um contando seu drama pessoal, ajustando-o a uma causa da moda. No mais, me intriga a distância desses 70% e trá lá lá de leitores das escolas e universidades. Onde se meteram eles? Confunde-me o espírito tal leitura, considerando-se o esforço que nós professores fazemos durante um curso para que os alunos leiam três ou quatro livros ao longo do semestre, sobre os quais giram as discussões em sala de aula. Onde andam esses leitores que povoam as feiras de livros? Nunca adentram as escolas e universidades?
Vislumbro públicos diferentes: há um caduco, em ruínas, que aprecia Machado de Assis, Guimarães, Clarice, Dalton Trevisan, Rubem Braga, Dante, Balzac, Amós Oz, Drummond, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa, Camões (os nomes vieram-me aleatoriamente); e há os antenados e socialmente comprometidos ou psicologicamente fragilizados à procura de pertencimento e de algum alento, que aprecia Zibia Gasparetto, Alan Kardec, Lázaro Ramos, Augusto Cury, Paolo Coelho, Stephen King, Djamila Ribeiro etc.
Não vou adentrar a questão do cânone e nem à resposta que deveria dar à pergunta que mantive como título, mas algo afirmado na reportagem continua a me corroer o espírito: “enquanto 56% dos ouvidos pelo Retrato da Leitura em 2015 disseram ser leitores, os números saltam para 95% na Bienal e 97% na Flup. É leitor pelo menos quem leu um livro inteiro ou em parte nos três meses que antecederam a pesquisa. [Meu Deus! Que definição!] 6,6% é a média de livros lidos nos últimos três meses pelo público da Bienal, 7,9% pelo público da Flup e 2,5 pelo brasileiro em geral.”
Reflitam vocês quatro sobre os índices – sim, porque creio que este texto não será lido nem pelos cinco leitores que previra Machado ao escrevinhar seu Memórias póstumas, de modo que permanece a questão: literatura pra quê? Talvez para fugir à ignorância que nos rodeia e nos sufoca, e é exatamente por isso que me intriga saber o que um público de 95% 97% lê. Apesar da lista, a reportagem traz mais dúvidas que respostas. Detalhe: do público da Bienal, que supostamente tem maior poder aquisitivo, apenas 7% leem história, economia, ciências sociais, filosofia, economia e política, enquanto 17% do público da Flup consomem obras relacionadas a essas áreas, o que prova que outras pesquisas sobre a escolaridade na periferia não passam de lorotas. Não estou a desmerecer a periferia, até mesmo porque de lá saí; afora isso, a reportagem afirma que o gênero preferido dos leitores da periferia é o romance - e eu também gosto de romances. Também não estou a desmerecer o gênero, o que questiono é a diferença de índices. Perdidíssimo estou. Acho que vou ler um romance, o gênero preferido de 100% dos brasileiros, essa massa genial de leitores que ignora as celebridades pseudo-engajadas e até mesmo os derrières cantantes, como disse semana passada.
De minha parte, prefiro a literatura de raiz – como se diz por aí – à literatura das prateleiras de supermercado, alienante e ao gosto de interesses que sequer imagino.


Confira:



segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sexo lésbico, suruba e diversão: a estreia de Geyse Arruda na literatura



Há quem diga que coincidências não acontecem - e eu acredito - mas há momentos em que o universo parecer conspirar e aí você fica sem saber o que dizer, algo como a dinâmica da natureza explicada pela ciência, que os metafísicos insistem em atribuir ao criacionismo. Em busca do carro das ideias, dei de olhos com notícias sobre o lançamento do livro de Geyse Arruda. Sim, aquela moça que esqueceu a calcinha na gaveta e foi ovacionada ou assediada pelos colegas estudantes em uma universidade na cidade de São Paulo.
Há tempos escrevi sobre uma autora que passou dias trancada em uma jaula depositada em uma livraria, na tentativa de chamar a atenção do público e da imprensa para o livro que acabara de publicar. Não sei se a peça de marketing surtiu efeito, haja vista nem me lembrar do nome da literata. No caso de Geyse, o marketing é mais agressivo. O Prazer da vingança, da autora, é anunciado não com a foto de capa, mas com a foto da bunda da “escritora”. As aspas indicam alguma ironia, mas não é culpa minha, afinal, em meio aos contos eróticos, o leitor leva de brinde muitas fotos da bunda e peitos da “intelectual”.
No Instagram sim há a foto da capa e para ser coerente nela também Geyse exibe seu avantajado derrière. Como disse, o marketing é ousado, de modo que a autora alerta o leitor: “Vai começar a putaria boa...Vocês pediram e eu vou liberar meus contos eróticos: Serão mais de 100 páginas de histórias com fotos exclusivas feitas por mim em um Motel Suite Sadô, para ilustrar cada conto. Teremos spoiler: contos de masturbação, sexo virtual, sexo lésbico, suruba, inversão, shibari, Cuckold “Corno Manso” e muitoooo mais...”.
Haja vista desconhecer o que seja “shibari” e “Cuckhold Corno Manso”, penso que a obra não é de se jogar fora e traz algo didático. Instrutiva ou não, Geyse conseguiu o sucesso que muitos outros autores jamais conseguiram ou conseguirão, isto é, que a grande imprensa divulgue, em diferentes espaços, o seu trabalho. Dizer o quê? Azar o deles e delas que talvez tenham mais cérebro do que bunda!
O sucesso deve ser retumbante, dado os comentários dos internautas. Vá lá, seguem alguns: “Vai fluir”, “Sexy”, “Ancioso” (sic), “Aí sim enh... adoro vc”, “Temas interessantes e eu já escrevi algo assim também...”, “Só compro se tiver os contos eróticos da faculdade.” – e por aí vai. Há também os solidários, que sugerem títulos, como este internauta: “Um título interessante seria "50 tons de rosa". Nota-se pelos pitacos um leitorado contumaz, quiçá leitores semióticos.
Em resposta à ala conservadora, há internautas que se revoltam contra o país e sua hipocrisia: “Brasil, o país mais careta, arcaico, conservador hipócrita que pode existir. Deve ser por influência da Igreja Católica, apesar de achar que o Papa atual é menos conservador que nossa sociedade hipócrita. Sociedade que condena tudo em público e faz mais orgias do que os liberais na sua mente ou até nas escondidas. Parabéns Geisy, apesar desses que tem (sic) medo de sexo, eles serão os principais leitores de sua obra de arte. Continuem no eterno papai-mamãe, é bom também.” Está valendo! (Ah! O destaque ao “obra de arte” é de minha autoria.)
Como tratei das coincidências, volto a uma obra sem surubas, shitakis, sushis ou sashimis: Boêmios, de Dan Franck, em que o autor olha para a Paris do início do século XX revelando o quotidiano de figuras como Picasso, Alfred Jarry, Modigliani, Braque, Matisse, Breton, Max Jacob, Apollinaire, Aragon e tantos outros que não mostraram a bunda, mas, extravagantes, “organizavam festas inusitadas, puxavam o revólver e provocavam o burguês de mil maneiras”.
A quarta capa do livro de Franck traz o seguinte entrecho: “A obra está além dos problemas da ordem e dos costumes. Antes de qualquer outra coisa, o artista produz obras de arte. Picasso pode se vestir como quiser. Alfred Jarry pode puxar a arma tantas vezes quanto desejar (e ele o fez), Breton e Aragon podem ameaçar aqueles que desprezam, todas essas bravatas pouco significam se comparadas aos caminhos que eles traçaram. A arte moderna nasceu das mãos desses sublimes provocadores. De 1900 a 1930, eles não se contentaram apenas em levar essa vida de artistas que os tornou detestáveis para alguns e que muitos outros invejaram: acima de tudo, eles inventaram a linguagem do século.”
Eis porque não se deve julgar, odiar ou invejar Geyse ou Anitta. Nesse começo de século XXI elas estão a inventar uma nova linguagem em que a bunda fala, escreve e canta, coisa que nem Jarry, Picasso ou Modiagliani conseguiram. E isso, leitor, convenhamos, não é pouca coisa!

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A ética ainda é possível?


Em nossos dias, quando nos esforçamos para compreender o mundo, sim, este mundo que nos parece tão familiar, mas que nos surpreende a todo instante, se perguntarmos a alguém o que vem a ser ética é o mesmo que perguntarmos o que é o tempo. Santo Agostinho, no capítulo XI de confissões, esclarece as nossas dificuldades diante destes conceitos que nos perseguem ao longo de nossas vidas. Sobre o tempo, Santo Agostinho pergunta: “Que é, pois o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de constatação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.”
Com a ética, ocorre quase o mesmo. Todos sabemos o que é a ética, o que é ser ético, mas se nos propormos a explicá-la, é provável que nos atrapalhemos. E por quê? Porque assim como o tempo temos dificuldade em traduzir por palavras o seu conceito. À busca do carro das ideias, lancei a pergunta “O que é ética?” ao Google. A resposta foi o esfacelamento da ética; é claro que a definição dicionarizada dá margem a isso, pois lá no dicionário ética é um “conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade”, por isso as éticas moral, profissional, cristã e por aí vai...
De hábito, as relações entre ética e moral são ordinárias, comuns, mas nem por isso deixam de ser delicadas, isto porque a distinção entre esses dois termos é diferente, segundo os pensadores. No sentido “comum”, o termo ética é sinônimo de moralidade e refere-se a uma prática destinada a determinar o modo como se vive em um habitat em correspondência aos fins ou papéis da vida do ser humano.
No entanto, se o termo “ética” é sinônimo de moralidade no sentido “comum”, por que a palavra “moral” não é encontrada nem uma vez na Ética de Espinosa, por exemplo? A razão para isto é que a moralidade consiste em um conjunto de regras “relativas” estabelecidas ficciosamente como boas e más absolutas, enquanto a ética é precisamente a moralidade livre de suas crenças supersticiosas que absolutizam o relativo e suas condenações moralizadoras e que são usadas como arma contra os outros, consonante Constantin Brunner, filósofo herdeiro espiritual de Spinoza.
Abandonando a erudição, vamos a exemplos da falta de ética e moral nessa nossa sociedade líquida em que nada mais assegura uma conduta adequada do ponto de vista ético ou moral. Veja o que a polícia acaba de descobrir sobre o Dia do Fogo, dia em que fazendeiros, madeireiros, empresários e motoqueiros juntaram-se para pôr fogo na floresta Amazônica e, depois, foram protegidos por delegados, deputados e senadores. A polícia descobriu que os incêndios dos dias 10 e 11 de agosto foram orquestrados via grupos de Whatsapp e financiados por meio de uma vaquinha, com o objetivo de bancar os custos do combustível – mistura de óleo e gasolina – e dos motoqueiros, pagos para disseminar o fogo em trilhas perto das estradas.
Não é preciso dizer que depois do esforço do grupo, os focos de incêndio em torno da cidade de Novo Progresso (o novo em si revela-se bastante irônico), no Pará, aumentou em nada menos que 300%. Um dos suspeitos é Agamenon Menezes (Agamenon, o nome, é uma afronta aos gregos), senhor bastante ético da cidade e presidente do Sindicato dos Produtores Rurais da cidade (de um sindicalista não esperava algo diferente; desafio aqueles que creem em sindicalistas a me convencerem do contrário).
Há também um senhor de moral ilibada, Ricardo de Nadai, proprietário da loja Agropecuária do Sertão e organizador dos grupos no Whatsapp; claro, imaginando quanto faturaria com o desmatamento e a venda de apetrechos para a formação de pastos. A notícia se espalhou e o delegado da Polícia Civil, Vicente Gomes, da Superintendência da Polícia Civil de Tapajós, também ético, determinou que o delegado de Novo progresso não repassasse a informação à Polícia Federal.
O acordo entre fazendeiros e madeireiros foi revelado por Adécio Piran em 5 de agosto, no site paraense da Folha do Progresso; o rapaz, após a publicação, fugiu da cidade por ter sido ameaçado de morte pelos moralmente éticos fazendeiros e madeireiros de Novo progresso.
Mas não é só isso caro leitor: um dos representantes dos ruralistas no governo federal, o Sr. Luiz Antônio Nabhan rondou Novo Progresso e os policiais da cidade afirmam que os fazendeiros da região são bem relacionados com deputados e senadores do Pará e têm contatos com o alto escalão do governo federal. Moralmente éticos ou não, covardes quando são pegos com a boca na botija, esquivam-se: Agamenon atribuiu o aumento dos focos de incêndio ao período seco e aos indígenas; o presidente da República, por sua vez, à época negou a existência das queimadas.
Notou porque é difícil responder o que é ética, leitor? A ética ainda é possível em meio a tanta canalhice?



Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/a-etica-ainda-e-possivel/

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Réquiem a Harold Bloom


 

Ao Leitor:
Se você tem algum apreço pela literatura e por aqueles que dela se ocupam, continue a leitura. Caso contrário, deslize os dedos pela tela do seu smartphone ou clique um botão qualquer de seu teclado; abandone a leitura pois este não é assunto do seu interesse.

Assim como parece não ter sido do interesse do site de notícias que se anuncia como “a maior empresa brasileira de conteúdo”, ao menos no dia 14/10/2019, segunda-feira, dia em que Bloom partiu para os Campos Elíseos. Neste dia, o tal site ocupou das separações e das bundas das celebridades, conteúdo, parece-me, do interesse de um público que ignorou Bloom. Mas não culpemos o público; muitos professores universitários fizeram – e fazem – o mesmo.
Harold Bloom – se você é daqueles leitores teimosos e resolveu insistir no texto – morreu aos 89 anos e foi um titã da crítica literária. Cultíssimo, era uma enciclopédia ambulante da literatura inglesa; notório por se opor ao politicamente correto e por seus julgamentos tradicionais e fora de moda sobre poetas, romancistas e dramaturgos. Não era lá muito do gosto da patota multiculturalista, sobretudo aquela que flutua pelas periferias do texto.
Professor de longa data de Yale e da Universidade de Nova York era, em si, um verdadeiro oximoro, considerando que se tratava de um estudioso sério que escrevia para as massas. A Ansiedade da Influência e O Canône Ocidental são best-sellers inquestionáveis. O primeiro, publicado em 1973, é uma obra densa que expõe uma teoria fortemente dependente de Freud, sobre a luta psíquica que produz grandes poetas. Nos anos posteriores, contudo, Bloom foi um populista determinado, traduzindo preocupações de alto nível sobre educação literária para um público geral e mais abrangente, razão pela qual tornou-se um dos raros críticos a ter suas obras nas listas de best-sellers.
Tratando das inseguranças culturais, Bloom ofereceu respostas inequívocas a perguntas que considerava fundamentais para a literatura e o aprendizado dela. Quais escritores pertencem ao panteão literário e quais estão no meio da confusão? Devemos ler para satisfazer agendas sociais ou políticas, ou devemos ler para entender nosso eu essencial? À medida que novas escolas de crítica tomavam conta das universidades americanas na década de 1960, permitindo que os defensores do marxismo, desconstrucionismo, feminismo e multiculturalismo revisassem o currículo, Bloom emergiu como um defensor da tradição.
O Canône Ocidental (1994) tornou-se sua réplica para os teóricos multiculturalistas, que ele reuniu e ridicularizou como adeptos da “Escola de Ressentimento”. O livro destaca 26 escritores - quase todos homens brancos europeus mortos, incluindo Shakespeare, Dante, Borges e Beckett - cujas obras ele considerou leitura obrigatória, razão do chororô dos ressentidos. Sem papas na língua, extravagante em sua incorreção política, ele alienou movimentos inteiros com críticas irreverentes sobre o que chamou de mal-estar a varrer a academia. “Eu não sou”, proclamou maliciosamente em um artigo no Times londrino, “um defensor da ficção lésbica esquimó”.
Considerado o crítico mais audacioso de sua geração, em 1900 publicou O Livro de J, em que tratava a Bíblia como literatura e sustentava que o Antigo Testamento fora escrito por uma mulher. Não é nem preciso dizer que os estudiosos da Bíblia refutaram a sua tese; o livro, porém, tornou-se um best-seller. O mesmo aconteceu com Como ler um livro e por quê (2000), versão condensada do cânone de Bloom.
A celebridade de Bloom era devido tanto à sua personalidade quanto às suas ideias; foi uma personagem tão colorida quanto Falstaff, a grande criação cômica de Shakespeare. Bloom, com seus olhos melancólicos, podia ser cáustico, bombástico, atrevido e encantador. Aos 30 e poucos anos, sofreu uma depressão profunda e começou a ler Freud obsessivamente. Suas lutas psíquicas se arrastaram por seis anos, durante os quais ele começou a escrever um poema épico inspirado em um pesadelo. O poema se transformou em uma teoria da poesia, que veio à luz em A Ansiedade da Influência.
Sua teoria sustentava que os poetas são como filhos que se rebelam contra o pai - adaptação da teoria da raiva edipiana de Freud. Segundo Bloom, o desejo de ofuscar o trabalho brilhante do passado leva poetas “fortes” a usurpar seus antecessores e criar seus próprios trabalhos significativos. Para isso, baseou-se nos românticos para ilustrar a teoria de que compor um poema é um “processo feroz” de ultrapassagem e revisão das melhores obras poéticas do passado. O livro, ao mesmo tempo deslumbrante e confuso, empregava tantos termos obscuros que levou a escritora nova-iorquina Larissa MacFarquhar a afirmar “que parecia ter sido escrito por um cabalista Lewis Carroll”. O crítico britânico Terry Eagleton, contudo, chamou-o de “uma das teorias literárias mais ousadamente originais da década passada”.
Bloom era uma celebridade na academia, mas ficou cada vez mais atormentado. Ele havia tolerado os desconstrucionistas - o principal deles, o pensador francês Jacques Derrida - e, embora tenha contribuído com um ensaio para um livro com Derrida e outros defensores da desconstrução, negou que fosse um deles. À medida que outras novas escolas de crítica ganhavam popularidade - novos historicistas, socialistas, feministas e multiculturalistas -, Bloom as ridicularizou afirmando que faziam parte de “grupo de lemmings” que estavam destruindo os estudos literários com suas agendas não literárias – por isso foi visto como reacionário. Um de seus ex-alunos, o escritor Charles McGrath, observou que o velho professor começou a brincar dizendo que era marxista da “escola marxista Groucho ... cujo lema é Seja o que for, sou contra”. Ao escrever O Canône Ocidental afirmou que procurava salvar a educação literária tradicional dos bárbaros, momento em que considerava o que era ensinado nas academias como resultado de uma culpa social e cultural que assumira o controle.
Tratado como um dinossauro pela maioria de seus colegas, afirmava, disse não se importar, pois acreditava na genialidade literária e no “poder de alterar o mundo da imaginação de um poeta”, convencido de que a grande poesia mudou o mundo.



domingo, 13 de outubro de 2019

Irmã Dulce e os mitos fabricados


Um dos parâmetros da caridade de Irmã Dulce é a internet. Hoje, quando a vida é devassada e submetida aos comentários e julgamentos de uma tresloucada multidão de internautas, a maioria obtusa, manter certa unanimidade e uma biografia respeitável é algo no mínimo sagrado - e só por isso Irmã Dulce já pode ser canonizada.
Ontem, li que a quase santa baiana, lá do além, anda a fazer milagres. E que milagres são esses?, pergunta-me o leitor curioso. Ora, cristão crédulo, não lestes o anúncio de que o presidente não comparecerá à canonização de Dulce? Dulcinha, frágil, porém porreta, já fez valer o dito bíblico de que se resistir ao diabo, ele fugirá de ti, de vós, de nós. Ô Glória!
O fato é que em um país ético e moralmente pobre de homens e mulheres inspiradores, alguns gatos pingados que fazem o que se espera que todos façam, ganham relevância e voilà, tornam-se heróis pátrios ou recebem as graças de anjos e arcanjos, sobem aos céus e descem santos cá pra essa terra cheia de maldades, pecados e corrupção. Não por outra razão Deus está conosco até o pescoço e religiosos organizados em lobbys ditam as regras de uma República em que pastores travestidos de lobos devoradores não só roubam os sonhos do povo, mas também seu intelecto; dividindo assim, anjos e demônios, as almas a seu bel prazer.
Alguns demônios – sim, porque os demônios são vários, assim como os santos – não precisam ser tentados à exaustão, afinal, acreditam desde sempre que comandam todos os reinos da terra e são adorados por todos os seus súditos. Lendas à parte, o fato é que às vezes anjos são expulsos do paraíso e jogados terra abaixo. Rolados pelas encostas, aqui ganham legiões de adoradores, tripudiam dos honestos, tomam a vil forma humana, tornam-se vereadores, deputados, senadores e até mesmo presidentes. Há demônios desviantes que se autodenominam juízes, promotores e que em razão dos privilégios ostentados, perpetuam-se materializando seções do inferno sobre a terra, esquecendo-se das profundezas, das grutas e das masmorras que alimentaram o gótico romântico.
Mas não crucifiquemos Dulce, afinal, a baiana não é culpada da fragilidade das instituições e da dispersão dos devotos, ainda que estes, heréticos, lembrem-se da fé só em momentos limites da existência. O fato é que Dulce vem no rastro da Santa de Manto Azul, achada às margens do Paraíba, e que só no início da República, na tentativa de tranquilizar as almas, o poder central decide torná-la Rainha e Padroeira do país, concedendo-lhe diversos títulos eclesiásticos e civis.
Antes dela, porém, veio Tiradentes, cuja indumentária foi aos poucos transformada pelos interesses do poder a ponto de se assemelhar ao próprio Cristo, e, Aleijadinho, o fazedor de anjos barrocos, o nosso Quasímodo, personagem criada bem ao costume do Romantismo e que, segundo seu biógrafo, Rodrigo Ferreira Bretas, teria sofrido de uma doença desconhecida (algo não comprovado), “provavelmente sífilis ou lepra, que o fizera perder os dedos, os dentes, curvar o corpo, não conseguir andar a não ser de joelhos e mutilar-se, numa tentativa dramática de que a dor nos membros diminuísse” e que só não virou santo como Padim Ciço, porque Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, devia ser um mineiro de bem e também porque em Minas não havia cangaço, nem um Lampião, com o qual o escultor pudesse tramar os seus ardis.
O fato é que a Igreja, necessitada de santos, ainda que os devotos já os tenham em demasia, precisa atualizar seu repertório, afinal, que emoções Santos como Hipátia de Alexandria, Platão e Sócrates inspirariam no devoto do século XXI, época em que a miséria espiritual se mede pelo estômago e não pelo intelecto?
Por fim, Irmã Dulce, louvável Irmã Dulce, que se preocupava com os humildes e miseráveis vai tomar um banho de loja de historiadores, museólogos, professores e semiólogos (a maioria, ateísta!), ciosos em construir uma indumentária cuja simbologia responderá aos desejos e à ignorância do povo e, de quebra, atenderá, mais uma vez, aos interesses dos poderosos e da canalha política (o Congresso vai pagar a viagem de sete senadores a Roma, em mais uma gastança turística bancada pelo erário), que deveria – e não fez – o que fez Irmã Dulce.
Assim, leitor, reserve alguns caraminguás para comprar mais um oratório e mais uma santa. Esta agora, observe, deverá ter especificações precisas (se não as tiver, não hesite em abrir um chamado no Procom ou no Reclame Aqui). Em sua imagem canônica oficial, Irmã Dulce deve vir assim: vestida com seu tradicional hábito azul e branco (vestes de quem integra a Congregação de Nossa senhora da Conceição), trazer um terço de Maria, de quem era devota, e “carregar no colo uma criança negra, sem roupas, descalça e desnutrida que, de acordo com uma possível leitura iconográfica da peça, representa o menino Jesus”.
A embalagem e todo o mais fica por conta da imaginação e da fé do devoto. Ah, atente para o preço, que deve ser módico!
 

sábado, 12 de outubro de 2019

Lula, o papagaio holandês, Greta, Malala e os nossos maniqueísmos quotidianos


O homem, capaz de feitos impensáveis, transformou o mundo ao longo da história, mas, parece-me, na sua essência permanece o mesmo; não admite, por exemplo, que dentro do seu coração branco e tão puro reside o mal. A um homem multiforme, fragmentado, senhor de desejos múltiplos, bondade e alguma vilania, prefere o ser raso, plano e imutável. Para isso, em casos extremos, ao deparar-se com pares que se mostram como de fato são, a ciência criou o Transtorno Dissociativo de Identidade, na tentativa de explicar como um pode ser tantos. Nesses casos, é claro, mal se fala da dissimulação quotidiana.
Mas o leitor deve estar se perguntando o porquê de todo esse intróito, não é? Bem, no fundo, não queria perder o carro das ideias, que passa rápido, e, se eu deixar para a semana que vem o que se fala agora, é provável que Lula já esteja discursando da sacada de sua cobertura (não a do Triplex!), o passarinho tenha voado, Greta apareça serena e dócil e Malaia, bem, não consigo ver Malaia com aqueles olhos crispados de raiva que Greta carrega, prova de que também sou maniqueísta e vejo em tudo um embate entre o bem e o mal, ainda que procure me afastar o mais que posso de todos os antipodismos e de todas as paralelas (estas, só porque me lembrei de Belchior).
Esta foi mais uma daquelas semanas espetaculosas que certamente renderia algumas páginas a Guy Debord e, é claro, a imprensa tem se deliciado com imagens, caras, bocas, cartas etc etc. Na política, longe de tomar partidos, dou razão à minha avó, para quem todos são “farinha do mesmo saco”. Mas, convenhamos, há momentos em que a situação em si é irônica, prosaica, e a mim não cabe outra coisa além de rir de uns e de outros – e de mim! Divirto-me ao ver as pessoas comporem antinomias e depois pares, iguaizinhos aqueles vasos que uma tia sexagenária insiste em manter alinhados sobre o aparador da sala; ainda que um deles já exiba a borda toda trincada, resultado da pátina do tempo, para ela o vaso é perfeito, sem máculas.
Veja, caro leitor, no mundo do espetáculo Lula não exibe nódoas e, impoluto, revela uma dignidade e elevação de caráter incomparável. Lula é o bem, e as pessoas lutam pelo bem, razão, acredito, da criação do movimento Lula Livre e de celebridades e intelectuais exibirem o polegar e o indicador, refutando o canônico paz e amor dos meus tempos de adolescência.
Não, leitor obtuso, não seja maniqueísta, não estou a condená-lo; procuro ver com olhar de míope, apertando os olhos à procura das fissuras onde se escondem as supostas verdades, ainda que relativas, até mesmo porque o maniqueísmo mostra só a superfície e raras as vezes chega ao fruto dentro da casca. Assim se produzem os espetáculos; da coxia, pouco se sabe.
Querelas jurídicas à parte, o fato é que agora Lula se recusa a sair da prisão. Ao fazê-lo, torna-se um herói diverso daquele que estamos acostumados, qual seja, inventivo e destemido, pleno de ações heroicas, de modo que vejo Dumas obrigado a repensar boa parte de sua narrativa. Lula prefere o embate no STF, casa carregada de todas as suspeições, cujas figuras sombrias que nela habitam, atravessados o portão, a antessala do mal e o Aqueronte, não encontrariam dificuldade alguma em se acomodar em qualquer dos círculos do Inferno de Dante.
A ironia da situação é que na briga de gato e rato, Lula e a Lava Jato, haverá o esvaziamento do Lula Livre. Mas isso não é nada! O risível da situação é contrapor o embate de Lula ao caso do passarinho levado à prisão em Utrecht, na Holanda. O pássaro, como Lula, não sabia de nada! Foi enclausurado só porque, durante um assalto, pousava no ombro do criminoso que, segundo o próprio pássaro, nunca o vira antes e não sabia sequer seu nome, só estava ali por uma infelicidade, como poderia ter pousado em um arbusto qualquer. “Não analiso a espécie de árvore ou arbusto antes de pousar em seus galhos.”, piou o pássaro aos policiais. A polícia holandesa, incorruptível, que desconhece até mesmo a palavra propina, não de u mole e levou o pássaro em cana; não houve, dizem, piados que convencessem os policiais. Na delegacia, como acontece com Lula, o pássaro tem recebido a atenção da imprensa e tem sido muito bem tratado pelos policiais, de modo que não poderá, em um futuro próximo pleitear indenizações do Estado – espera-se.
Sobre Greta Thunberg pouco sei: de uma família de atores (li isto!), assumiu o protagonismo do espetáculo das últimas duas semanas. Ao falar na ONU, exibiu uns olhos crispados de ódio, rosto tenso e, da boca, as palavras de ordem saiam como tiros de metralhadora. É louvável a sua preocupação com o meio ambiente, mas afirmar que teve a infância roubada é algo que, penso, não deverá sustentar por muito tempo, já que a retórica se altera de acordo com os interesses; à medida em que for ampliando seus contatos na política é certo que afinará o seu discurso. 
Malala, esta sim, penso, teve uma infância roubada, obrigada a fugir dos preconceitos tribais e do fundamentalismo islâmico. Comparar as duas, tornou-se mais um ato maniqueísta nas redes sociais: a Greta, creditam certa maledicência, por acreditarem ser ela títere de poderes obscuros em luta por seus próprios interesses; já Malala, colocada frente à raiva discursiva de Greta, seu rancor e sua agressividade, é vista como alguém que apresenta um semblante nobre, sereno e humilde, mas que consegue se impor. Para os críticos, tudo isto faz parte de um maniqueísmo maior e injetado de preconceitos, pois Malala representaria o feminismo aceitável.
Isto posto, à espera de que Lula resolva sair da gaiola e os internautas maniqueístas decidam entre Greta (saudosa Garbo!) e Malala, aguardo o voo livre do pássaro, que também não sabia de nada!




sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Emília não é a mais esperta!


Houve um tempo em que as crianças dançavam menos funk e liam mais livros.  Muitas dessas crianças começavam seu percurso de leitor com as obras de Monteiro Lobato nas mãos. O Sítio do Picapau Amarelo, lugar mágico e encantado, era onde todas as crianças queriam estar. Lobato, dentre tantas coisas, tinha como matéria-prima o sonho e ali no sítio, Emília, a boneca mais esperta de todas, Visconde de Sabugosa, Pedrinho, Narizinho, Zé Barnabé, Cuca, o Saci, Tia Anastácia, Dona Benta e outras personagens faziam a imaginação dos jovens leitores girar a mil. Nada era empecilho para a fantasia: quando se interpunha alguma dificuldade, estava lá o pó de pirlimpimpim (que os puristas do politicamente correto querem banir porque, uma vez recuperados, não suportam nada que os faça lembrar das carreirinhas da juventude).
Mas Emília deixou de ser a boneca mais esperta de todas, perdeu para Pedro Bandeira que, tão logo ouviu o tilintar do martelo a declarar a obra de Lobato domínio público, entreviu a oportunidade de ganhar uns caraminguás e engordar ainda mais a burra com a criatividade alheia.
Não vou tratar aqui do mau-caratismo revisionista, que apaga a memória em proveito de ideologias (até mesmo porque já falei disso antes nesta coluna), mas do oportunismo de Pedro Bandeira, mosqueteiro do bom-mocismo, que, ao suprimir algumas frases (e personagem) de Lobato, tascou seu nome na capa de Narizinho a menina mais querida do Brasil (título criado por Bandeira ao estropiar Casamento de Narizinho, Reinações de Narizinho, Narizinho arrebitado etc) e se apropriou da inventividade, inteligência e talento de Lobato sob a alegação de “limpar” a obra de lobatiana, constituindo-se em mais um caso em que o sub-reptício interesse pelo vil metal faz da luta por uma causa metonímia para o uso descarado do plágio. Trocando em miúdos, no quesito esperteza Bandeira passou a perna na Emília.
Ouvi dizer que Pedro Bandeira é fã assumido de Lobato. Não acredito! Se é fã, por que desossar, desfolhar, encurtar, suprimir, destruir a obra do autor? Para atender e se ajustar à bandeira da militância e com isso ganhar um dinheiro a mais? A questão do racismo pode e deve ser discutida e refletida a partir da obra e não suprimindo trechos! Isso é mau-caratismo! Há um blogueiro que, referindo-se às interferências de Bandeira, afirmou que este deu uma “arejada” na obra, driblando o racismo. Famelizar e desmontar a obra de Lobato, suprimir Pedrinho da narrativa sob a alegação de que se trata de uma personagem fraca e, de quebra, sustentar que “todas e cada uma das personagens lobatianas são apenas coadjuvantes e ou figurantes dessa maravilhosa e apaixonante menininha” [Narizinho], ora, convenhamos, escritor algum precisa de um fã como este, melhor são os inimigos que, lendo-o mal, lançam mão de práticas intolerantes e medievais para pleitear a queima de seus livros.
Antes que conclua: o que dizer depois de Bandeira afirmar que Narizinho é, ao lado de Capitu, a grande personagem da Literatura Brasileira? Sem querer fazer o que Bandeira fez com Pedrinho, penso que Narizinho seja uma importante personagem, mas não se compara a Capitu, de modo que o comentário, parece-me, senão um mau conhecimento da Literatura Brasileira, algum problema com a qualidade do pó de pirlimpimpim.
Por fim, finalizo com as palavra de Bradbury em seu posfácio “Coda”, a Fahreinheit 451, quando o autor comenta as ablações efetuadas em contos de Twain, Irving, Poe, Maupassant e Bierce: “cada minoria, seja ela batista, unitarista; irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista; sionista, adventista-do-sétimo-dia; feminista, republicana; homossexual, do evangelho-quadrangular, acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda a literatura insossa, como um mingau sem gosto, lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima de jardim de infância.”
Por isso, em tempos de bandeiras, menos Bandeira e mais Lobato!


Foto: Rede Globo, série infantil.



terça-feira, 24 de setembro de 2019

Patrulhamento cultural e ideológico

Eu venho de lá onde a amizade era leve e sorridente. Eu venho de lá onde os amigos costumavam praticar rituais estranhos e exóticos, tais como se encontrar só para se ver e, de quebra, compartilhar dores e amores; às vezes, porque eram humanos, brigavam e se odiavam, mas logo se abraçavam. Eu venho de um tempo em que as pessoas preferiam acreditar que eram responsáveis por si mesmas e os desentendimentos eram momentâneos; depois das verdades ditas (ou ao menos achávamos que eram verdades, as nossas verdades) e das desculpas aceitas, abraçávamo-nos e cantávamos Andanças. Sim, porque se hoje a saudade é imensa, só o é porque não conseguimos medir tanta areia andada, tanto verso, tanto sonho, tantas luas, festas e serestas... Éramos profanos.
Quer saber? Foi ótimo ter vivido intensamente os anos 80. Pouco importa se foi a “Década Perdida” para os economistas e burocratas, afinal, quem liga pra eles? O fato é que olhando para trás vemos uma década inovadora, plena de tendências culturais e modismos que hoje, convenhamos, seriam rejeitados pelo bom mocismo das patrulhas que regulam o politicamente correto e até mesmo o que você gosta porque acha que gosta e o que você não gosta, mas nem sabe porque não gosta.
A moda New Age, quem não se lembra? Alguém sabe o que é sair para o trabalho usando camiseta verde-limão, calça laranja e tênis vermelhos? A cidade era um festival de cores. Na TV, as manhãs eram animadas pela Rainha dos Baixinhos, Xuxa, em trajes minúsculos, quase nua - e não aparecia sequer uma mãe tresloucada, escoltada pelo Conselho Tutelar, gritando aos ventos e acusando a loira de atiçar a libido dos baixinhos. Aos sábados, Chacrinha cantava Maria Sapatão, sapatão, sapatão,/ De dia é Maria, à noite é João e Olha a cabeleira do Zézé/ Será que ele é/ Será que ele é..
Os anos 80 trouxe o Asdrúbal trouxe o trombone, a Legião Urbana, Cazuza, o Movimento das Diretas Já, Titãs, Paralamas do Sucesso, o primeiro Rock in Rio, o punk, o soul à brasileira, a TV Pirata, Armação Ilimitada, Marina, Gal cantando Vaca Profana... Eita saudosismo!
E hoje, o que sobrou? É certo que o respeito à diversidade é inalienável, mas tudo tem ficado tão chato, mas tão chato que se você ousar afirmar em público que não gosta de jiló é provável que a patrulha em defesa do jiló venha para cima com tudo!
Não deu outra, Lulu Santos aventurou-se a elogiar uma cantora e ao fazê-lo, disse: “Você emagreceu, ficou mais bonita.” Pronto! Tornou-se alvo dos internautas irados (todos certinhos). Lembrei-me dos anos 80 porque foi mais ou menos a essa época que a expressão cunhada pouco antes pelo cineasta Cacá Diegues ganhou as ruas. Foram tempos de patrulhamento inócuo, em que apareceram bizarrices como a passeata contra as guitarras - essa, de 1967 -, que reuniu artistas ciosos em zelar pela pureza da MPB. Hoje, mal podiam imaginar, a MPB jaz deitada eternamente em berço esplêndido, isso se você leitor for magnânimo, caso contrário, pode-se afirmar que ela nem existe mais, sufocada que foi pelo pagode, o funk e todos esses ruídos que incomodam seus ouvidos e o seu sono.
Os tempos são pendulares, mas, curiosamente, tratando-se do patrulhamento,  vivemos situação semelhante aos anos 60 e 70, quando toda arte que não fosse engajada era proscrita, gerando certa polaridade em que o radicalismo emburrecedor inviabilizava o diálogo e dava azo às patrulhas ideológicas; hoje, infelizmente, a arte parece ter sido espezinhada dos dois lados e é a política que define que lado da luta escolher. No meio do tiroteio, aí daquele que tentar criar um atalho entre os dois lados... Hoje, até mesmo a amizade tem sido ferida pelo patrulhamento. Quem não conhece amigos que deixaram de se falar pós eleições 2018?  No âmbito social, dá-se a mesma coisa com as investidas contra as opiniões divergentes, algo nocivo que secciona as minorias, porque para muitos que se arvoram defensores das minorias há minorias e minorias, e algumas minorias são mais minorias que outras minorias.
Lembrei-me agora do Festival de Cinema Pernambucano, em que cineastas retaliação às apresentações de documentários considerados por eles como ligados a valores tradicionais e à esquerda tucana dos anos 1990. À época, uma das signatárias do texto emitido pelos cineastas, Cíntia Domit Bittar, colocou em xeque a legitimidade da seleção, criticou a curadoria e afirmou: “Não censuramos filme nenhum de estar no festival, nem incitamos boicote. Apenas retiramos nossos filmes”. (Não mesmo?!) Em seguida à decisão, a direção do festival decidiu suspender o evento. E como o patrulhamento - e a censura – vira e mexe despertam a memória, lembrei-me de Cacá Diegues, que em 1978 teve seu filme Chuvas de Verão recebido com frieza pelos críticos – o que já havia acontecido com Xica da Silva, seu filme anterior. Após o banho de água fria, Diegues, em entrevista à jornalista Póla Vartuck, publicada no jornal O Estado de São Paulo, denunciou as patrulhas ideológicas, que seriam integradas por jornalistas ligados ao PCB e que não teriam objetivo outro que detratar produtos culturais não alinhados ao politicamente correto defendido por esses grupos formadores de opinião.
A polêmica que se seguiu à entrevista de Diegues resultou em um livro, Patrulhas Ideológicas, de Carlos Alberto M. Pereira e Heloisa Buarque de Hollanda, publicado pela Editora Brasiliense. No livro, Diegues, em nova entrevista, define o modus operandi das patrulhas: “O que existe é um sistema de pressão, abstrato, um sistema de cobrança. É uma tentativa de codificar toda manifestação cultural brasileira. Tudo o que escapa a esta codificação será necessariamente patrulhado.”

Patrulhados ou não, parece-me, Chacrinha e Xuxa saíram ilesos. Já Lulu, ovacionado dia desses por assumir seu amor, ontem, distraído, foi tomado pela sinceridade e deu no que deu.


Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/patrulhamento-cultural-e-ideologico/