Na
tentativa de fugir do carro das ideias, que, medíocre, hoje chegou quase vazio,
volto-me aos livros. O viajante, de Ulrich
Boschwitz ainda não ganhou uma tradução para o português, mas aí vai uma dica
se você lê francês, inglês, italiano, espanhol, alemão... Bem, você não precisa
ser poliglota ou erudito, um idioma estrangeiro resolve o problema, até mesmo
porque a menção a esses idiomas ironicamente nos mostra o quanto somos um povo singular;
traduzimos best sellers de Gary John
Bishop (Pare com essa merda), de Mark
Manson (A sutil arte de ligar o foda-se),
de David Focker (Seja foda, seja
inteligente) e ignoramos solenemente obras não ligadas à moda dos
excrementos ou da escatologia, a
coprologia.
Falemos
então de O viajante. Como fugir da
Alemanha em 1938, quando você é judeu? A
resposta encontra-se nesta obra de Boschwitz, uma obra-prima escrita em 1939
por um autor de 23 anos.
A
personagem se chama Otto Silbermann. Difícil ter esse nome na Alemanha, sobretudo
após a célebre Noite dos Cristais (novembro de 1938) e passar despercebida. Tão
logo negociara apressadamente a venda de sua casa, os nazistas vieram
prendê-lo. Escapando por uma porta dos fundos, Silbermann inicia uma odisseia
ferroviária. Berlim-Hamburgo-Dortmund-Aix-la-Chapelle-a fronteira
belga-Berlim-Dresden-Berlim: o Reich, que fechou suas fronteiras para os
judeus, tornara-se uma vasta e perigosa armadilha. A aranha nazista teceu sua
teia silenciosa, fazendo de todos os caminhos um beco sem saída, e um pária
como Silbermann sentia o laço apertando cada vez mais o seu pescoço, considerando-se
que tudo o que tinha não ultrapassava os 40.000 marcos que carregava em uma toalha.
Novo
judeu errante, ele passa por um café, depois um restaurante, um hotel, que ele
logo deixa; enfim, um fantasma fugindo dos arianos, potenciais denunciantes,
cujas vítimas deviam evitar. Tudo o que era simples, de repente tornou-se
bastante complicado, a menor certeza vacila e a vida fácil já é impossível. Nos
corredores dos trens, nos vagões, Silbermann conhece outras figuras, judeus
mais pobres que ele, mas também em fuga, cidadãos sobre os quais ele não sabe o
que pensar e que nada suspeitam do seu drama.
Era
preciso dizer que ele não era judeu. Mas, a propósito, como é parecer judeu? “Parecer
ansioso, alarmado.” Ora, ele estava cada vez mais ansioso. “Os judeus declaram
guerra à Alemanha”, lê nas manchetes de jornais. “Que seja a guerra, eu estou
bem ciente disso”, disse ele a si mesmo, “mas se fui eu quem a declarou, isto eu
não sabia”.
Silbermann
lutara na Primeira Guerra Mundial. “Mas nós éramos muitos em ambos os lados. Hoje,
sou só eu e tenho que lutar a minha guerra sozinho.” Ele a luta, contudo, mas
luta cheio de humor estridente – “ao menos eu descubro a Alemanha”, “eu deveria
ter feito uma assinatura” - ou desespero – “o que quer que fazemos, sempre
atraímos suspeitas”. Há muitos
sobressaltos, parênteses reconfortantes, mas, diante dos fracassos, ao sabor das
traições de amigos que subitamente o ignoram, esse Ulisses confuso acaba
perdendo a coragem e a humanidade. Um ódio estridente de seus irmãos acaba por
invadi-lo. “Tudo isso é por causa deles. O que eu tenho em comum com eles?” Silbermann
tenta o suicídio; a loucura o ameaça, a loucura de um animal que gira em sua
gaiola. Um bolero trágico realizado com maestria.
O
viajante também poderia ser chamado de O fugitivo, Perseguido pela morte ou O
inimigo invisível. Um inimigo que imperceptivelmente tira do homem tudo o
que ele tem e tudo o que ele é. “O que resta de mim?”, ele se pergunta. “O que
eles querem de mim?” O leitor sabe bem, e no entanto, se consome ao acompanhar
a fuga de perder o fôlego empreendida por Silbermann, torcendo por ele.
Devemos
esta obra-prima esquecida a um judeu de 23 anos, Ulrich Boschwitz, que a
redigiu apressadamente em Paris, em um mês, depois de ter fugido da Alemanha
após o evento da Noite dos Cristais. Essa emergência contamina o texto muito
literário, tornando-o ao mesmo tempo engraçado e desesperado, e, paradoxalmente
a pressa imprime à narrativa um tom de reportagem: temos a impressão de estar
lá, um sentimento tão raro e tão precioso na literatura.
Precocidade
surpreendente de um autor, capaz desde 1938 de restaurar, assim, do exterior, a
decomposição progressiva de um indivíduo preso nas rodas dentadas de uma
máquina infernal. O viajante apareceu
nas principais editoras de Londres e Nova York em 1939, nunca em alemão ou
francês, e só foi encontrado no final de 2015 nos arquivos de literatura
exilada da Biblioteca Nacional de Frankfurt pelo editor Peter Graf, que revisou
o manuscrito - o autor ainda queria corrigi-lo, mas não teve tempo. Partindo
para Londres antes de 1940, Boschwitz teve o triste privilégio de ser internado
como alemão pelos ingleses em um campo australiano. A história, que ainda não
havia terminado, não abriria mão dessa esperança da literatura mundial. Quando
ele acabou de ser libertado em 1942, contra a promessa de se envolver com os
Aliados, seu navio inglês foi torpedeado por um submarino alemão perto dos Açores.
Como seu herói, ele não escapou dos tentáculos do polvo nazista.
Por
fim, aqui no torrão tupiniquim, é esperar passar a moda dos best sellers excrementológicos e torcer
para que um editor se disponha à empreitada de publicá-lo.
* A partir da
reportagem de François-Guillaume Lorrain, Le
Point.
Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/um-viajante-entre-os-nazistas/
Ulrich Boschwitz. Le Voyageur. Ed Grasset. Trad de l'allemand par Daniel Mirsky. 340 p. 19 €.