O
ano começa e, parece-me, as notícias ainda não se reciclaram ou não se deram
conta de que o calendário mudou. A balela veiculada pelos emburrecedores (e
embrutecedores) programas de TV e portais de notícia de que é preciso se vestir
de verde amarelo rosa azul-anil para ter dias felizes no próximo ano, as
notícias, impávidas, olharam indiferentes para o vozerio e continuaram a
oferecer o café amargo do dia a dia que, embora delicioso, para os açucólatras
lembra o lado cruel e amargo da vida.
As
ameaças dos países centrais e periféricos estão na ordem do dia. Cada um acusa
à sua maneira e também usa seu poderio militar e terrorista a seu modo – e que
vença não o melhor, o mais ético, mas o mais forte. Afinal, o que dizer? Melhor
é se conformar como o povo ovelha que, diante do aumento dos combustíveis, em
um raro dia em que vi os noticiários na TV, dizia: “fazer o quê, né?, é sempre
assim, não muda nada.”
Não
à toa Leibniz dizia lá nos tempos de antanho que vivíamos no melhor dos mundos
possíveis. Ainda que tenha sido ridicularizado por Voltaire, a máxima
mostrou-se tão obstinada quanto a craca na crosta do navio, é preciso tempo e
paciência para soltá-la. Darwin, por sua
vez, anteviu toda a bandalheira de hoje e de sempre com a sua teoria da
evolução e a seleção natural. Não à toa, repito, o evolucionismo tornou-se a
religião dos governos no século XIX e, hoje, vemos os governos e os poderosos
solapando a massa sem dó nem piedade, e a massa, a massa, meu Deus, diz “fazer
o quê?”. Achando-me revoltado, obtuso leitor? Você viu a notícia de que
deputados e senadores, e toda a canalha que habita a ilha da fantasia Kubitschek,
gastaram nada menos que R$ 3.100.000.000,00 (isso mesmo!, três bilhões e cem
milhões de reais) em trajetos para Paris, Roma, Nova York e Las Vegas??? E o
presidente interrompe sua pausa entre o Natal e o Réveillon para assinar um salário
mínimo de R$ 1.039,00? E a massa que desconhece a ironia diz “fazer o quê?”
Isso
só acontece, creio eu, em razão do esforço conjunto da mídia, de políticos,
sociólogos, antropólogos, futurólogos, ideólogos, obtusólogos e todos os ólogos
existentes que, consubstanciados com o poder, alienam e inculcam na massa que
ela deve morrer de trabalhar porque trabalhar dignifica o homem. Não discordo,
mas, pergunto-me ao ler tais notícias quais homens são ou serão dignificados.
Enquanto
isso, parte da mídia alimenta o imaginário da massa com sobremesas. Machado de
Assis há muito dizia que temos o hábito de comer a sobremesa antes do prato
principal. Você viu que em algumas capitais, nas comemorações de Ano Novo, as
escolas de samba já saíram à rua para dar, digamos, uma canjinha, para entreter
a massa? Esta, dopada, drogada, surtada e descompassada não sei com o quê, ri
às desbragadas, fica feliz e mostra o cartazinho às câmeras com os dizeres
“mamãe, eu estou na Globo”. E assim la
nave va.
Mas
não só os opressores e poderosos que subjugam e embrutecem as massas não. A massa,
quando pode, não perde a oportunidade de explorar seu igual. Anotem esta historieta
que presenciei na feira sábado passado. Aproximei-me de um banca em que um
agricultor expõe milho, limões e mandiocas que cultiva, na esperança de lucrar
algum dinheiro para seu sustento. Como o milho não advém do agronegócio, as
espigas são díspares, algumas plenas de grãos e maiores, outras, talvez em
razão do solo ou das intempéries, não se mostram tão atrativas e suculentas.
Por isso, o agricultor teve a ideia de separá-las e a elas atribuir preços
diferentes. Nada que qualquer outro comerciante não faria.
Uma
jovem, ao analisar o milho decide pela compra das melhores espigas. Ao ser
informada do preço, reage com desdém e diz: “Mas isso é muito caro. Eu não
quero pagar isso!” O agricultor sequer teve tempo para a resposta, pois o Iphone
11 da jovem começou a soar insistentemente. Resolvida a ligação que a
interrompera, a jovem volta-se para o agricultor que, com suas mãos grossas
pela lida do trabalho e o contato diário com a terra, descascava umas outras
espigas e continua: “Já disse que não posso pagar isso!”, ao que o agricultor
replica: “Moça, mas essas espigas foram selecionadas, por isso o preço é
diferente das outras.” A jovem, por sua vez, insiste: “Veja, até mesmo as
outras acho caras. Vou explicar: eu tenho calopsita!”
O
agricultor: “Eu sei, mas é o melhor preço que posso fazer. Se você procurar
pela feira vai ver que o meu preço não é maior que o dos outros que vendem
milho.” A jovem: “Parece que o senhor não entendeu. Eu tenho calopsita. Não
posso pagar esse preço. O senhor vai ter que fazer um preço diferenciado pra
mim. Eu tenho calopsita!”
Irritado,
deixei a banca, pensando na facilidade em que as pessoas transferem suas
responsabilidades aos outros. A calopsita, assim como as farras em Las Vegas e
a escola de samba animando a massa, tudo se insere na ordem das sobremesas. A
calopsita, a jovem decidiu por vontade própria comprá-la, porém, na hora de
pagar pela alimentação do pássaro, decidiu transferir o ônus para o pequeno
agricultor que conta os poucos caraminguás que junta com a venda do milho para
sobreviver; a canalha política, torra o erário sem qualquer medida abusando da
sobremesa, enquanto ao pobre sequer o prato principal lhe é permitido colocar à
mesa e, por fim, para esse pobre, oferecem a ele o samba como sobremesa,
afinal, não é de hoje que o mundo gira sobre a roda do panem et circenses.
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