Revista Philomatica

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Voltaire: filósofo – e vegetariano avant la lettre (II)


A semana foi das melhores no quesito hipocrisia; nesse domínio, mostramos o quanto somos perversos, esquizofrênicos e amnésicos. Trato, evidentemente, da política torva e sanhuda que encheu o carro das ideias. Mas falemos de Voltaire, cujas reflexões continuam atuais e sempre nos levam a pensar o presente.
Semana passada discorri sobre alguns textos voltairianos e prometi comentar um pouco de seu Dicionário filosófico. No artigo “carne”, o filósofo mostra como Porfírio considerava os “animais como nossos irmãos porque eles são animados (de anima/alma) como nós, têm os mesmos princípios de vida e, assim como nós, têm ideias, sentimento, memória, habilidades” (Hoje, alguns países já concederam aos animais o status de seres sencientes.)
O vegetarianismo de Voltaire afirma-se assim como uma postura filosófica oposta a qualquer atitude antropocêntrica. O filósofo não acredita que a humanidade seja o centro da criação ou o topo da cadeia alimentar - e que os animais estejam abaixo dos seres humanos e apenas “predestinados” a servir de alimento para os homens: “As ovelhas não foram feitas absolutamente para serem cozidas e comidas, visto que muitas nações se abstêm deste horror.”
Em A Filosofia da História (capítulo XVII, “da Índia”), Voltaire defende a doutrina da reencarnação das almas (transmigração) que prevalece entre os índios (ou Hindus), nas terras “em direção ao Ganges”, que, segundo ele, é uma “filosofia da moralidade” que inspira “o horror do assassinato e de toda a violência”. Esta consideração voltairiana também se encontra nas Cartas de Amabed (Segunda Carta de Amabed a Shastadid), onde um jovem hindu de Benares, aluno de missionário jesuíta que quer evangelizá-lo e fazê-lo abjurar a fé seus antepassados, lamenta ver os europeus, colonizando a Índia, cometendo “terríveis crueldades pela pimenta” e matando as galinhas.
Essa postura moral vegetariana é para Voltaire uma oportunidade de relativizar as certezas ocidentais decorrentes do cristianismo, em proveito de uma universalização de referências negando todo o etnocentrismo e todo o antropocentrismo. É também uma oportunidade de louvar os “gentios” e sua filosofia antiga (grega ou indiana) e abertamente zombar dos clérigos cristãos e instituições da igreja - convencidos de sua moral exemplar - que se preocupavam muito com os minuciosos detalhes dogmáticos de suas crenças empenhadas em reconhecer ou condenar (lembrem-se do ódio entre católicos, judeus e protestantes), mas que se recusam a educar as massas à clemência em relação aos animais e eram  (e são), portanto, incapazes de promover o vegetarianismo:

Não vejo moralista entre nós, nenhum de nossos loquazes pregadores, nem mesmo um dos nossos hipócritas, que tenha feito qualquer reflexão sobre este terrível hábito [“alimentar-se continuamente de cadáveres”, segundo Voltaire]. Devemos voltar ao piedoso Porfírio e aos compassivos pitagoricianos para encontrar alguém que nos envergonhe de nossa sangrenta glutonaria, ou devemos viajar até aos brâmanes; porque (...) nem entre os monges, nem no Concílio de Trento, nem em nossas assembleias do clero ou em nossas academias, não se pensou ainda em dar o nome de mal a este abate universal.[1]

Voltaire protestou também contra as práticas de vivissecção de seu tempo (experimentação em animais, generalizando-se como dogma o “animal-máquina”, de Descartes):

Os bárbaros se apoderam do cão, que excede prodigiosamente ao homem em amizade; pregam-no em uma mesa e o dissecam vivo para mostrar suas veias mesentéricas. Você descobre nele todos os mesmos órgãos de sentimento que estão em você. Responda-me, homem máquina: a natureza arranjou todas as fontes de sentimento neste animal para que ele nada sinta? Ele tem nervos para ser impassível? Não suponha essa contradição impertinente na natureza.[2]

Tratando-se do vegetarianismo, nota-se que Voltaire não só foi um homem avant la lattre – antes de seu tempo, como também suas ideias têm se mostrado atuais, despertando o homem moderno à reflexão - ao menos aquele afeito à compaixão e ao respeito.

Imagem: L'Âge d'or, de Lucas Cranach l'Ancien (1530).


[1]  Voltaire, Il faut prendre un parti (Du mal, et en premier lieu de la destruction des bêtes).
[2]  Voltaire, Dictionnaire philosophique, articles "Bêtes", dans Œuvres complètes, Arvensa Editions. Kindle, 74852-74861.

Nenhum comentário:

Postar um comentário