
Reli, há pouco, uma crônica machadiana de 11/9/1859, publicada em O Espelho, Revista de teatro, de propriedade de Euletério de Sousa. Embora a revista primasse pela crítica teatral, o texto de Machado de Assis é de fato uma crítica à atividade de fanqueiro literário, indivíduo que se sustentava da venda de um subproduto literário, ofício considerado pelo cronista como "obra grossa", "loja manufatora do talento", por isso o desqualificava. No século XIX, os chamados fanqueiros eram negociantes de tecidos, porém, Machado discorre sobre aquele que desenvolve uma estratégia de mercado para a edição, distribuição, divulgação e comercialização de seus próprios livretos, com expectativa de lucro - evidentemente. Machado crê que a atividade desvaloriza a literatura, pois desenvolve-se à margem da produção literária oficial.
Em suma, o fanqueiro literário era um misto de escritor, negociante e bajulador. Cultivava amizades e circulava por espaços onde desfilam pessoas que colecionavam seus folhetos em troca de cortesias desmedidas. Casamentos, nascimentos, batizados, tudo era razão para se fazerem escritores e poetas porque, como bem assinala o cronista, o fanqueiro literário tinham a espinha dorsal mais flexível, e, chegavam mesmo a valer-se do expediente da sátira ao próprio freguês. No entender do cronista, a atividade do fanqueiro literário repugna[va] à natureza da própria intelectualidade.
A repulsa do jovem e frondeur Machado é tanta que chega à fronteira do radicalismo e, pasmem! - clama pela destruição dos livros e brada: "Mas tudo isso é causado pela falta sensível de uma inquisição literária! Que espetáculo não seria ver evaporar-se em uma fogueira inquisitorial tanto ópio encadernado que por aí anda enchendo as livrarias!".
No entanto, o tipo de comércio que Machado condenava era comum nas ruas do Rio de Janeiro, tanto que João do Rio, em 1908, ano da morte de Machado, elogiava em crônica a profissionalização da atividade literária: "Hoje o scriptor trabalha para o editor e não manda vender como José de Alencar e o Manuel de Macedo por um preto de balaio no braço, as suas obras de porta em porta, como melancias e tangerinas". Estariam, então, Alencar e Macedo inclusos no rol dos fanqueiros renegados pelo Machado da juventude? Jamais saberemos. O fato é que o reduzidíssimo público leitor[1] nem sempre estava à mão: Manuela Carneiro da Cunha, ao relatar alguns hábitos comerciais vigentes no Brasil em meados do século XIX,

Hoje, porém, já distantes dessa época, como numa espiral, tudo se repete. Há uma semana li um artigo sobre as chamadas vendas "porta a porta", segmento que, se antes era encarado como bico, hoje passou a ser a atividade principal de milhares de brasileiros. Vendem-se cosméticos, roupas, carnês, perfumes, os famosos potes plásticos Tupperware (Deixe a reunião acontecer na sua casa e ganhe um brinde!) e livros!
O interessante é que a Avon; - é inacreditável, mas me vem à memória a loirinha do filme Little shop of horrors, com sua voz agudíssima: Avon calling!, mas revenons à nos moutons: a novidade é que a Avon incluiu livros em seus catálogos e a ideia tem sido um sucesso. Em Cabreúva, a 80 quilômetros de São Paulo, conta-se que a revendedora da Avon é esperada com ansiedade. Os títulos passam por uma remodelação antes de entrar nos catálogos: são edições compactas, sem orelha, com capa simples e letras bem apertadas - o que faz o custo cair em até 50%. Os best-sellers, é claro, e os livros de auto-ajuda, são os mais procurados. Compram-se também guias para programas básicos de computador e livros destinados ao estudo para concursos públicos.
O diretor da Avon no Brasil, um peruano de nome Luis Felipe Miranda, orgulha-se: "O mais importante é saber que criamos o hábito da leitura em pessoas que não o tinham". Parabéns à ideia e viva aos fanqueiros literários modernos que, imagino, podem hoje bradar: Avon calling - books.
[1] Hélio de Seixas Guimarães em Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial; Edusp, 2004, p. 68, afirma: “Em 1872, apenas 18.6% da população livre e 15,7% da população total, incluindo os escravos, sabiam ler e escrever, segundo dados do recenseamento; entre a população em idade escolar (6 a 15 anos), que somava 1.902.454 meninos e meninas, apenas 320.749 frequentavam escolas, ou seja, 16,9%. Já em 1890, a porcentagem diminuiu: apenas 14,8% sabiam ler e escrever.” Dos 18%, apenas 2% seriam capazes de ler livros!
[2] Manuela Carneiro da Cunha, Olhar escravo, ser olhado, in Paulo César de Azevedo; Maurício Lissovsky (org.), Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Ex Libris, 1988, pp. xxvi-xxvii.
Ilustrações de Henry Chamberlain que fazem parte de uma série realizada entre 1819 e 1820, intitulada Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro. Em ambas as ilustrações nota-se escravos carregando livros entre outros objetos.
Machado de Assis foi e é e sempre será um gênio da literatura brasileira suas obras vão além do seu tempo e são atuais ao ponto de nos transportar para o passado e vivermos o presente com maestria.
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