Revista Philomatica

sábado, 28 de outubro de 2017

Juventude sem escola

Quem já leu Machado de Assis e especulou suas opiniões sobre a crônica, conhece de cor e salteado o bordão de que o gênero é a reunião do útil e do fútil. Ora, Machado afirmava ter o folhetim (a crônica) nascido do jornal, donde a união agradável dos adjetivos supracitados. Lesse em nossos dias, o Bruxo do Cosme Velho certamente se depararia com a degenerescência da agradável futilidade.

Hoje, por exemplo, dou de olhos com as notícias mais lidas no site da autointitulada maior empresa de notícias do país: “Exausta e sem ‘perereca’: Luciana Gimenez explica 5 fotos do Instagram”, “Flávia Alessandra sobre sexo na piscina: ‘Uma delícia!’”, “Cláudia Raia lembra primeira vez com o namorado da irmã”, “Herdeiros do Maksoud Plaza brigam por causa de comida e roupa lavada’. Agora, diga-me você leitor: o fútil, o que é? Está bem, entendi! Não é preciso repetir!

O superficial, o leviano, o frívolo, a conversa de botequim... ora, isso é para encaixar uma ironia, um riso qualquer entre a empáfia da manchete da primeira página e a seriedade da notícia, não subjugá-la! Por que razão, pergunto, o leitor resolveu fazer do superficial, do pueril e sem importância o prato principal de sua refeição?

Lá embaixo, perdida no espaço antes reservado ao folhetim, eis que encontro uma noticiazinha de cara amarrada e apertada ao lado do depoimento de uma médica que largou a medicina tradicional e aderiu à ginecologia natural. Ali, encontro minha resposta sisuda. Trata-se de uma matéria sobre a evasão escolar, e, segundo tal estudo, o país, no ritmo de cágado que caminha, demoraria cerca de 200 anos para incluir os jovens no sistema educacional.

De pronto, o instituto responsável pela avaliação apresenta números, e contra números, sabemos, não há conversa: dados de 2015 (estamos em 2017!) revelam que 22% dos jovens entre 15 e 17 anos estão fora da escola. Também de acordo com os números, temos hoje (2015) cerca de 10,3 milhões de jovens nessa faixa etária. Do total, 1,5 milhão sequer se matricularam em uma escola e outros 1,9 milhão abandonaram a escola antes mesmo de completar o ano e/ou foram reprovados.

O que me consola é que 6,9 milhões frequentaram a escola por um tempo e lá aprenderam a ler algumas garatujas, razão pela qual a maior empresa de notícias do país consegue elencar diariamente as matérias de preferência de seus leitores; o que me assusta é que esses leitores preferem ler e comentar a ‘perereca’ da Luciana Gimenez e a primeira orgia da Cláudia Raia enquanto o país literalmente afunda pelo ralo.

Outro dado curioso que gostaria de comentar com você leitor é o fato de que o tal instituto aponta como a principal causa de evasão escolar o trabalho. O trabalho, sim, o trabalho surge nas entrelinhas como o vilão da história. Para isso, a jornalista exemplifica a matéria com o caso singular do jovem Jonathan, que, aos 18 anos, no segundo ano do ensino médio, descobre que a namorada está grávida e é obrigado a deixar a escola para se tornar chefe de família.

Ora, casos como esse acontece e são frequentes, mas não explicam tamanha evasão e nem se pode creditar ao trabalho a vilania da prosa. Vejam: ao pesquisar, encontrei várias outras matérias (mais atualizadas) sobre o desempregado entre os jovens entre os 14 e 24 anos (lembrem-se que trabalhar aos 14, 15 e 16 é crime perante a lei!) que trazem o índice nada louvável de 28,8%. 

Façamos as contas: 10,3 milhões de jovens x 28,7% significa que temos cerca de 3,0 milhões (2,9664 para ser mais preciso) de jovens desempregados. De modo que, considerados os 3,4 milhões de jovens evadidos das escolas, resta um saldo de 400 mil alunos prejudicados pelo malfadado hábito de trabalhar.

O estudo aponta ainda outros culpados: a infraestrutura, a carência de professores, a qualidade de ensino, o clima escolar. Dei o braço a torcer, afinal, educação só é quesito na pauta de políticos às vésperas de eleição...

Por fim, o estudo também aponta como causa de evasão escolar a baixa resiliência emocional entre os jovens. Flexionei o pescoço, olhei para baixo e entabulei um curto diálogo com meus botões: “O que acham? Lembram-se do maus bocados pelos quais passamos? Levantávamos às 5 da manhã, trabalhávamos o dia todo, estudávamos à noite; os sábados, bem, aos sábados sequer saíamos... tínhamos trabalhos a fazer. Os botões, levados por meus movimentos, desviaram-se à direita, depois à esquerda. Um deles, teso e carrancudo, sussurrou: “Acho que temos uma geração de fracotes.” Reaprumei o pescoço, ergui a cabeça e fingi não ter ouvido aquela outra sinonímia de ‘falta de resiliência’. 

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Che, um logo pop

Nascido na década de 1950, o conceito de Pop Art representa mais a atitude do artista em relação ao trabalho, que a obra de arte em si. O conceito desafiou a tradição ao afirmar que elementos da cultura popular produzidos em séries seriam equivalentes às Belas Artes, uma vez que o pop remove o material do seu contexto e isola o objeto e/ou combina-o com outros objetos também populares, para a contemplação. Algo como botar a Mona Lisa dançando funk em um morro carioca, arrisco. O ecletismo cultural leva ao delírio os especialistas modernosos e todos replicam o novo à exaustão.
Falo o que falo só para provocar a militância e a combatividade movidas à Che Guevara, aquela estampa que vende bonés, camisetas, bolsas, canecas, chaveiros e, acreditem, acessórios sexuais! Ao comemorar 50 anos da morte de Che, a imprensa decidiu escarafunchar um pouco desse logo que vende de tudo. Anaïs Dubois, do Le Point, aproveitou sua estadia em Buenos Aires e visitou Juan Martins Guevara, irmão do logo.  

Sorridente, ele a recebeu em um pequeno apartamento cujas paredes estão repletas de fotos do guerrilheiro. Entre elas, destaca-se o célebre clique de Alberto Korda, fotógrafo de Fidel Castro, que foi batizado de ‘guerrilheiro heroico’. E é aí que entra a pop art com sua genialidade: Andy Warhol surrupiou o clichê de Korda e foi só um pulinho até que Che estampasse propagandas de vodcas, lavanderias e carros, dando lá sua inestimável ajudazinha à máquina capitalista.
Fizeram dele, Che, um desconhecido? Que nada! Juan Martim, o irmão, é taxativo ao dizer: “Eu acho que é a foto que mais se parece com ele. Quando ele ri, sim, há esse olhar malicioso, é aí que eu reconheço meu irmão Ernesto.” Embora Juan Martim afirme que seu irmão foi de fato um provocador e não um ‘guerrilheiro heroico’, não pude ignorar o tal olhar malicioso, vá lá, isto é o mesmo que ir de Cuba a Nova York, ou vice-versa.
Quando foi clicado, o Che sério da foto, com um olhar negro e profundo, assistia a um tributo às vítimas de sabotagem do La Courbe, navio belga que transportava armas e munições para a ilha, e cujo trágico destino, é claro, foi imputado ao Tio Sam por Fidel Castro.

Korda estava encarregado, assim como vários outros fotógrafos, de cobrir o acontecimento. Sobre a prancha do fotógrafo, vê-se inúmeras outras fotos de Fidel Castro na tribuna, além de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, presentes ao acontecimento, e para os quais a revolução cubana tinha um alto significado.

Esta foto romântica não teve muito sucesso no início; Korda, em uma primeira seleção, separou-a, deixando-a de lado por um tempo até publicá-la, em 1961, no jornal La Revolution, antes que caísse no esquecimento até a morte de Che, em 1967. O editor italiano Giangiacomo Feltrinelli, que detém uma cópia do clichê de Korda, imprime então um milhão de cópias da foto, que vende por cinco dólares. É o nascimento do mito, lucrativo para muitos, menos para Korda, que não leva um centavo pelo clique.

Por outro lado, Korda não tinha lá do que reclamar, afinal, a propriedade intelectual era um conceito burguês que Cuba só abraçaria em 1997, quando aderiu à Convenção de Berna, portanto, nenhum problema em socializar a foto.
No entanto, no final da vida, nos anos 2000, Korda sentiu-se meio incomodado com a campanha da vodka Smirnoff que usava sua foto. “Como defensor dos ideias pelos quais Che morreu, não me oponho à reprodução [da foto] por aqueles que desejam propagar sua memória e a causa da justiça social em todo o mundo, mas sou categoricamente contra a exploração da imagem do Che para a promoção de produtos como o álcool, ou qualquer outro produto que denigra sua imagem”, diz Korda. Respeito o movimento de Korda: afinal, por que criticá-lo por torcer um pouco a corda ao tentar faturar uns míseros 50.000 dólares?
Afora isso, hora ou outra a corda estoura: a filha de Korda que, parece-me, não é o engajamento em pessoa, iniciou uma luta quixotesca contra todos aqueles que usam o clichê de forma abusiva - e abusivo para ela é tudo -, publicidade ou usos comerciais, restaurantes, editores e mesmo partidos políticos. É claro que à época não fazia ideia da extensão dos tentáculos da internet.

Em 2008, uma decisão judicial entre Diaz-Lopez, a filha, e o Front national, partido de extrema-direita francês, que lançou mão da foto, provocou controvérsia entre os profissionais de direitos autorais. Segundo a lei cubana, a fotografia seria domínio público em 1987, mas a justiça francesa, preferiu legislar a partir de uma lei da época em que Cuba era ainda colônia espanhola, afinal, como perder a oportunidade de um pontapé legal em Marine Le Pen?  

A canetada satisfez Diaz-Lopez, mas, se para os franceses a foto só estará em domínio público em 2082, para o resto de todo um mundo mercantil em que o social é ficção de herói, a despeito da legislação, Che é garantia de dividendos e de bons produtos!


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Quando os Vautrins adentram a política


Ao longo da semana, em conversa informal com um amigo, discutíamos sobre a tolerância generalizada à corrupção, sobretudo casos em que os envolvidos estão associados a alguma causa social. Teríamos algo como: “rouba, mas faz”, ou ainda, “o fim justifica os meios”. A prosa, é preciso que eu diga, veio à tona em razão do suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Rimos – acreditem! – com a generalização do crime; culpa, é claro, de uma carnavalização que só a oralidade permite.

O assunto é espinhoso, por isso, melhor procurar abrigo na ficção, já que a ideia é falar de ladrões. Até mesmo os menos afeitos à leitura sabem que o Romantismo elevou a um outro plano a apologia da subversão, cuja correspondência na literatura francesa do século XVIII, por exemplo, era o desenvolvimento extremado das filosofias libertinas e naturalistas. No XIX, portanto, o malfeitor, o gangster, o bandido, o pirata e outros, tornam-se heróis de uma nova mitologia.

Basta uma olhadela para a memória trazer de arrasto exemplos pródigos: na Alemanha, o Karl Morr, de Schiller; na Inglaterra, o corsário de Byron, o Falkland, de Godwin, o Cleveland, de Walter Scott; nos Estados Unidos, ainda que com certo desvio, os Indígenas de Fenimore Cooper. A lista continua; é só uma questão de exílio numa biblioteca qualquer para você descobrir muitos outros.

Entre essas personagens, algumas obedecem aos seus próprios instintos, a maioria justifica suas atitudes por meio de considerações de ordem metafísica e/ou moral, tais nossos “representantes” na classe política, cujo Papa, a crítica, felizmente não mitifica, mas o chama de “fator”. E, seja qual for o “fator”, na maioria das vezes o que mais importa observar não é o fato de que ele concorre a algo, mas sim o poder que tem para desestabilizar o jogo e mover as cartas em proveito próprio.

Mas voltemos à ficção: os heróis bandidos acima, todos, irmanavam-se no espírito de aventura, ao contrário de nossos “políticos bandidos”, cuja especialidade, parece-me, é nos excluir da aventura, surrupiando-nos o final feliz. No século XIX, sobretudo entre os anos de 1820-1830, disseminou-se na França a voga das histórias de ladrões, cujos episódios, quase sempre ingênuos, caíram na graça de um público popular. Talvez venha daí nosso gosto em amar e idealizar corruptos, reelegendo-os ad infinitum

É sob o signo da literatura popular que Balzac faz sua estreia. Por essa razão, encontramos em suas obras de juventude criminosos fascinantes, ainda que sumariamente desenvolvidos. Estes, mesmo que de longe, já nos anunciam o maior e mais sedutor: Vautrin. Mas não adentremos à análise, falemos antes de um livrinho escrito por Balzac (1826): Code des Gens honnêtes.

Nele, Balzac esboça a fisionomia do mundo dos ladrões, sempre por meio de observações cínicas, herdadas do Século da Razão, e que serão retomadas por Rastignac, célebre personagem arrivista. Com a palavra, Balzac:

“Os ladrões formam uma república, que tem suas leis e costumes; eles não se roubam, religiosamente prestam seus juramentos... Aprendemos assim a admirar esses ‘homens raros’, que são ladrões de grande envergadura, esses psicólogos profundos que sabem mentir com extrema habilidade, prever eventos, julgar o futuro. Esses perfeitos comediantes podem usar qualquer disfarce e interpretar todos os papéis; esses seres inspirados igualam-se ‘aos Homeros, aos Aristóteles, ao autor trágico, ao poeta cômico, graças às virtudes da imaginação, a brilhante, a divina imaginação’.  Acredita-se que, se ele empregasse para o bem o requinte e a perfeição com as quais faz seus cúmplices, o ladrão seria um ser extraordinário”

Voilà, talvez resida aí a razão pela qual grande parte do eleitorado insiste em incensar bandidos, tomando-os por heróis; isto, até que submerjamos todos nas águas profundas da corrupção ou que nos tornemos heróis – ou bandidos! Tudo depende da banda em que você toca!
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P.S.: Qualquer semelhança com seu candidato é mera coincidência.

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sábado, 21 de outubro de 2017

Asfixia cultural e de ideias

Tem sido cada vez mais difícil seguir a parábola à risca, digo, separar o joio do trigo. Não à toa, hoje, na dita pós-modernidade, quando até mesmo os ideais iluministas surgem comprometidos com os jogos do poder, é frequente que você, leitor, encontre nas páginas sociais de seus amigos a profecia de Aldous Huxley, que vaticinou dias em que a ditadura teria a aparência perfeita de uma democracia, constituindo-se numa prisão da qual os prisioneiros jamais experimentariam o desejo da fuga. Nesse sistema, afirma Huxley, os escravos teriam amor à escravidão, tal o grau de amor pelo consumo e o divertimento.

Por essa razão, desconfio de tudo o que leio e estou sempre à espreita das intenções por trás das palavras, sobretudo quando estas se fazem dissimuladas, surrupiando-nos qualquer entendimento das entrelinhas. Quando tudo é pautado pela ausência de clareza, de imparcialidade e de posicionamentos, até mesmo aqueles que militam por uma causa, desconfio, alienam-se palavra após palavra.

Vejam: há bem pouco tempo as mulheres foram levadas a alisar seus cabelos; negras e brancas saíram às compras e, ávidas por possuírem aqueles aparelhinhos que esticam até os fios mais rebeldes, empregaram ali todo o seu dinheiro. Esgotado o interesse, o mercado veio à cena e passou a dizer que o chique são os cabelos cacheados; a mulherada saiu em fúria à busca de shampoos que encaracolam os fios, a ponto de os cabelos surgirem como sinonímia do orgulho da raça.

Com os obesos não é diferente: a indústria descobriu que eles significam cifrões em montante superior àqueles ganhos pela indústria farmacêutica ou médica com as tais cirurgias de redução de estômago. A indústria sub-repticiamente incensou o repúdio à gordofobia, neologismo que descortinou a possibilidade da moda plus size, e as marcas faturaram ainda mais com obesos orgulhosos da ausência de suas cinturas. A imprensa, dizendo-se politicamente correta, hoje afirma que é legal ser gordo e que o must é ostentar logo abaixo do abdômen um singelo pneu de bicicleta - ou de moto.

O mesmo acontece com os gays. De fato, quem mais luta contra o preconceito contra gays e lésbicas, e outros quotidianamente discriminados e segregados, é a indústria. Esta senhora descobriu que gays e lésbicas, por não terem a preocupação com a prole, tem lá seus caraminguás para gastar, por isso, e só por isso, o gay merece respeito. Observem as propagandas: as marcas envolvem-se em tais questões visando sempre o vil metal. Agora, enquanto escrevo, não me ocorre o nome de uma grande empresa que invista seu nome e dinheiro em socorro ao terceiro sexo, quando este é vilipendiado e ultrajado nas ruas, por meio de suporte às delegacias e organizações que se ocupam disso.

E a imprensa? Como age? De que modo você é alienado por ela? Você tem controle sobre o que gosta ou deixa de gostar? Sobre as pessoas que admira ou não nutre qualquer empatia? A arte que você aprecia, você a admira porque emocionalmente você compreende, sente, respira, inspira o objeto, ou porque o crítico do jornal com o qual você ideologicamente se identifica diz que aquilo é uma arte comprometida, combativa, humanista ou sei lá o quê?

Formas e limites são constantemente superados e a imprensa vale-se disso até mesmo para vender seus jornais, ter o seu like, e, quanto mais longa a lista de comentários medíocres, mais tem-se a prova de que o convencimento foi efetivo do ponto de vista mercadológico.  

Nessa lógica, o marketing todo poderoso é que guia e manipula seus gostos e seus prazeres. Este senhor faz com que, por exemplo, você opte por esta ou aquela música, direcione sua atenção para aquele site específico que se anuncia como a maior empresa de comunicação do país e que, neste site, você tenha “o embate do século” como uma das notícias mais lidas. O “embate” no caso é a troca de tiros entre uma policial e uma traficante, personagens de um folhetim; ou, ainda, que você vibre com a nota sobre um certo roqueiro que “embarangou”.

Você, leitor, é convidado a reverenciar isto ou aquilo, este ou aquele, em consonância aos desejos da publicidade. Não é fácil escapar deste processo de asfixia. Quando se tenta debater contra este estado de coisas, muitas vezes, a comunicação não funciona e há excessos de mal entendidos. Recusar-se a engolir o que a publicidade lhe oferece, gera, quase sempre, o pensamento de que você é contra o genuinamente popular, que brota das massas, que é a vida como ela é, tudo, é claro, porque você deve ser um, sei lá, elitista. Não à toa, professores e críticos literários são relativizados por escreverem sobre o cânone, a chamada alta literatura.

Hoje produzimos poemas e versos sobre mundos flutuantes e sem significado. Pensando nisso, lembrei-me de “A obra aberta” (1965), texto de meu padre santo Umberto Eco. Hoje, não se tem mais obras prontas à apreciação, mas conceitos. Tudo pode ser lido e treslido à maneira daquele que aprecia, é claro, mas o complicador é que o Grande Irmão direciona o olhar, coloca cabrestos e anula a visão periférica.

Perdido o foco, sua opinião é esfacelada, instaura-se então a dispersão e o fragmentário, de modo que surgem quotidianamente especialistas sobre tudo; muitos são os artigos que preenchem páginas e mais páginas, que, uma vez torcidas, não são capazes de mantê-lo em reflexão por mais de uma ou duas horas. Tudo é efêmero e, quanto mais volátil, mais a senhora publicidade funciona no intuito de fazê-lo crer na próxima ideia, levando-o a lutar por ela, indispor-se por ela, enfim, vibrar com ela junto dos seus caros amigos.

Tudo é indeterminação e a arte, por exemplo, parece saída de uma linha de produção, tal a similaridade com que se expõe. É certo que um ou outro artista zombe da efemeridade e tente imprimir sua digital na linha do tempo, procurando continuar de onde a arte parou. Mas são aqueles poucos que clamam no deserto do marketing. Ocorre-me agora que estão fadados ao desaparecimento, haja vista não haver mais mecenas e tudo depender da boa venda do produto.
É isto o contemporâneo; um diálogo em que as obras dos artistas modernos conversam com aquelas que fizeram história, tal a Mona Lisa, exaustivamente recriada em função das polêmicas multiculturais?

Disperso, à espera da próxima moda, da próxima música, da próxima arte ou da próxima literatura que a imprensa me fará amar, encerro essas garatujas, ao menos satisfeito pelo fato de a indústria tornar alguns assuntos mais palatáveis aos preconceituosos, permitindo que minorias continuem a respirar.


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Da cura gay: ou sobre legisladores de rabicós

A historieta abaixo, leitor, não obedece à cronologia alguma. Por isso personagens e dados, aleatoriamente, ora avançam no tempo, ora regridem e misturam-se em proveito das personagens.
Tudo passou-se em um país distante, mas veja, pode ser que tudo esteja a acontecer agora, no instante mesmo em que você lê essas garatujas. O país fazia - ou faz - fronteira com o pays de oreillons, da também célebre historieta de autoria daquele senhor de quem se dizia que quando pretendia atacar o diabo do homem, acabava-se por ferir a virtude.
Pois bem, na primavera de 1207, ou 2017, que seja, reuniram-se os sábios para deliberarem sobre questão de extrema importância para o futuro do país. Dela dependiam a educação, a segurança, a saúde e até mesmo a economia, porque a esta última, os habitantes do país, digo, a aristocracia, creditava máxima importância, fazendo vista grossa até mesmo à corrupção que se alastrava por todas as castas e hierarquias, dos mais simplórios à intelligentsia.
Os sábios, também chamados de magistrados, decidiram naquela primavera que parte da população era doente. A razão nunca fora muito bem explicada, mas o fato é que toda a questão girava em torno do rabicó. Não o rabicó em si, se é que me entendem, mas ao que os habitantes do país decidiam fazer com ele. Insuflados por alguns barões levitas que bradavam versos de um manual, na impossibilidade de exterminar todos os que se diziam donos de seus rabicós, decidiram pela cura.
Propositadamente - ou não -, levitas e magistrados, ainda que soubessem que legislar sobre o rabicó de outrem não lhes dizia respeito, tornaram-se cada vez mais imperativos e ditaram leis. De fato, não se preocupavam com as questões fisiológicas e de saúde, pois, o que queriam mesmo era controlar o que pensava esse grupo que se achava dono de seus rabicós e que, portanto, dizia às desbragadas que faria o que quisesse com eles, os rabicós, algo, claro, inconcebível para levitas e magistrados.
A ideia da doença, e consequentemente da cura, talvez tenha mesmo se originado entre os levitas, pois há registros de alguns que, nas horas mortas, liberavam seus rabicós em boates e becos da cidade. Depois, fatigados, decidiram receber visitas pela porta da frente, proclamando-se curados. Mas, há quem diga que tudo isso é lorota e que eles continuam a lacrar (neologismo que para sua exata compreensão deve ser lido como antonímia). Inspirada com os episódios de cura, a família tradicional, hipócrita e em busca da perfeição, começou a procurar por shamans que diziam prescrever terapias capazes de mudar radicalmente as escolhas de seus filhos; a maioria dos shamans, diga-se, eram na verdade oportunistas ávidos pelo lucro patrocinado pela intolerância familiar.
De fato, o que incomodava mesmo levitas e magistrados era a escolha em si, a liberdade de decidir o que fazer, como fazer, com quem fazer, quando fazer. Receber visitas, seja pela porta da frente, seja pela dos fundos, não fazia dos habitantes detentores de melhor ou pior caráter, muito pelo contrário, mas, eles, os legisladores de rabicós, não concebiam a ideia de liberdade implícita na escolha; e não falo só da liberdade de expressão, fazer tudo o que der na veneta, como dizia minha vozinha, mas sobretudo da liberdade de fazer o que quiser com seu corpo. Ah, isso era demais para os levitas e magistrados! Diziam eles que tamanha liberdade poderia contaminar outros habitantes, esquecendo-se de que escolhas são escolhas - e pessoais.
Decretada a cura, o ministério da verdade terá que se ver com questões menores, tais como: a regulamentação da doença no código internacional de saúde, uma vez que a anomalia é tupiniquim e só atinge país; o grupo dos rabicós livres podem, por pirraça, decidir faltar ao trabalho alegando a tal doença, e aí, como fazer? Os atestados médicos, como preenchê-los? As perícias no malfadado sistema de saúde, como organizá-las? Chamadas de socorro ao SAMU: qual a prioridade, um atropelamento ou um rabicó sedento por aventura? Uma vez instalada a doença, como proceder com a aposentadoria em casos de doentes terminais, aqueles acostumados a pôr o rabicó na roda?
Apreensivos, os considerados “doentes” temem que práticas ainda anteriores a 1207 sejam colocadas em uso. À humilhação diária, bom que se diga, nunca deixaram de expor sua insatisfação, pois conheciam seus direitos, mas isso incomodava muito levitas e magistrados.
Por fim, o povo desse país, que um dia o chamou de ‘país do futuro, perdeu-se totalmente no calendário. Uns acreditavam estar em 2017, outros em 1207, outros ainda, mais desesperançados, acreditavam que estavam ainda antes no tempo. Mas nem tudo estava perdido: tinham rádio e, para localizarem-se no tempo, habitualmente, não só o povo, mas também levitas e magistrados ligavam seus aparelhos. Hora ou outra, depois de alguma notícia, a música soava forte e, para desespero de uns e alegria de outros, que não se continham, as ondas sonoras tornavam-se palavras e, dizem, até mesmo magistrados e levitas punham-se a cantarolar Dancing Queen e It’s raining men.


 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/