Revista Philomatica

sexta-feira, 27 de julho de 2018

A marca humana


“A releitura é quase sempre fatal para a maioria absoluta da narrativa ficcional brasileira.” O dito de Alfredo Mesquita, se levado à risca, é um convite ao abandono da releitura e, quiçá, da leitura. Principalmente hoje, quando o grosso das narrativas vem até nós por meio de spoilers, sejam estes garatujas fabricadas nas cozinhas “literárias”, sejam amigos leitores, de modo que a fábula perde um pouco do seu encantamento, pois já foi, digamos, conspurcada por opiniões outras. Estas, às vezes, nos abrem caminhos ao conhecimento, outras vezes, porém, nos embotam as sinapses, fazendo com que o desânimo se apodere de nosso espírito, o que resulta no abandono do livro. A crítica ou o entusiasmo alheio comprometem nossa leitura. Não generalizo, leitor: e se trago essa reflexão é no intuito de induzi-lo à abstração, a fim de que desconsidere muitos comentários, sobretudo aqueles ancorados nas circunstâncias, resultado das polêmicas fluídas que atribulam as mentes nesses dias tecnológicos.
Mas nem toda releitura é perda de tempo. Há textos que se preservam no tempo e, revelados, trazem-nos a sensação de descoberta, sentimo-nos arqueólogos de ideias. A releitura cumpre a função da flanela suave que desliza sobre a capa incunábulo afastando o pó acumulado ao longo dos anos. A releitura também une pontos de reflexões, atualiza as ideias, desvela a sensibilidade do texto, ressuscita mundos da entrelinhas, enfim, produz uma fermentação que estabelece diálogos entre autores e obras e, por que não, leitores?
Em tom confessional, revelo, foi o que me aconteceu esta semana. Ao reler um texto Antonio Candido, “O Portador”, em que o crítico reflete sobre a obra de Nietzsche, foi me impossível não estabelecer conexões em as ideias do filósofo e a obra de Philip Roth, que acabara de ler. Nietzsche afirma que “o homem é um ente que deve ser ultrapassado”. Ora, o extrato do texto nietzschiano, extirpado de seu contexto, e em mãos erradas, pode induzir o leitor a um atalho que compromete o raciocínio, levando-o a sustentar ideias obscuras. Contudo, o filósofo propõe ao homem que abandone e ultrapasse o ser de conjuntura, que somos em determinado momento, para, à frente, buscarmos estados mais eficazes e completos de humanização.
Ora, para isso Nietzsche sugere alguma dureza e a abolição da autocomplacência, qual seja, ser franco, honesto e direto consigo e com os outros. Ultrapassar as ideias ligadas às conjunturas emerge como repudio às filosofias e ideologias que cuidam mais da natureza do espírito e que soa, às vezes, meio autoajuda, para debruçar-se sobre o caráter, a ética, aspectos da atividade humana total.
Philip Roth, em A marca humana, relata a história de Coleman Silk, professor de letras clássicas que, após ter empregado uma palavra de duplo sentido, vê-se obrigado a pedir exoneração da universidade onde leciona, acusado de racismo ao referir-se a dois alunos que jamais compareceram às aulas. De forma cursiva, Roth trata-se das circunstâncias e conjunturas que movem os interesses dos diferentes professores da faculdade, lugar em que indivíduos supostamente portadores de conhecimento, vigor moral e intelectual, conspiram para a derrocada de Silk, em uma mostra de como a compreensão das pessoas, sob qualquer situação, é, no mínimo das vezes, ligeiramente equivocada.
Roth mostra que em meio ao ruído que acompanha as conjunturas que movem os interesses, a única opção talvez seja o silêncio. Este, face a confusão do mundo, emerge como antídoto para que sobrevivamos com um mínimo de sofrimento. Ao deslindar os embates de Silk face às atitudes nada ética de seus colegas de profissão, Roth tece uma narrativa cuja trama almeja – e consegue – dar conta de uma atividade humana total, em que o homem ultrapassa o homem, ainda que sedimentada nas questões de circunstâncias. Isso porque delas extrai a essência que dá liga às sensibilidades humanas sem o desprezo pelas ideias, não raro, encimadas pela razão.
Talvez por isso, Silk, o professor, depois de recuperar um departamento outrora fadado ao ostracismo, revela todo o seu ceticismo com o meio universitário, lugar marcado pela esterilidade intelectual. É claro, leitor, ao replicar isto, tomo o partido de Silk (e não conto seu segredo para não ser também um estraga-prazer), mas também vejo as circunstâncias, pois, não se pode negar que hoje há uma maioria que não coaduna discurso e ação. Para essa maioria, a marca humana é a hipocrisia, regada a um processo de sentimentalização de pessoas e situações, que lhe dá azo a rotular este ou aquele cultural e pejorativamente porque não compartilha de suas ideias e cabalas, adotando, de forma reptícia, sob o manto multicultural, uma postura de superioridade que, nas faculdades de letras, sobretudo, depõe contra a literatura.



quarta-feira, 25 de julho de 2018

A guerra necessária



Não faço mais qualquer referência à fala de Eco, meu padre santo, que em um de seus momentos de iluminação - e face a tamanha obviedade -, afirmou que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. O genial de Eco é a escolha das palavras, afinal legioni refere-se tanto a demônios quanto a soldados, e, diante do patrulhamento que campeia no campo aberto e minado das redes sociais, é mesmo possível que as legiões sejam compostas de tudo, exceto de anjos.
Mas não generalizemos! Há pérolas! É certo que na maioria das vezes, mesmo que as intenções sejam as melhores, elas parecem ir de encontro aos preceitos do Mestre e acabam mesmo é na cocheira dos porcos. Mas, se formos atentos e pacientes, em meio a toda essa farofada que nos é servida, alimentamo-nos de iguarias. Dias atrás, assisti entrechos de uma entrevista com a física e pensadora Vandana Shiva. Refletindo sobre suas palavras, sinto uma brisa e, por segundos, vejo desvanecer as fronteiras do meu ceticismo.
Hoje, diz-nos Shiva, nosso maior desafio é lutar contra a estupidez. Para isso, a pensadora oferece-nos uma série de exemplos, dentre os quais, alguns sobre a destruição dos sistemas aquífero, alimentício e climático. Ao fazê-lo, argumenta que os poderosos (e seus cientistas) partem da ideia de que acabada a água e a comida encontraremos um substituto. A pergunta que ela coloca, “há substitutos para as verdadeiras coisas que fazem com que a vida funcione?” soa instigante e desafiadora a certo cientificismo que insiste no substituto. É fato que a comida industrial que ingerimos tem feito muito mal à nossa saúde. Casos são reiteradamente discutidos na imprensa, ainda que sob o filtro do poder da indústria, mas as migalhas que chegam a nós surgem como pérolas de advertência. Talvez por isso um eco de memória me traga aquele americano que dizia ser melhor descascar que desembalar. O fato é que Shiva é de uma lucidez escassa nos dias de hoje, por isso, rara.
A estupidez é profunda; todo o esforço para extirpar do solo a planta, quando muito, resulta em um punhado de folhas que preenche as mãos, é superficial. O orvalho da manhã, a regar o solo, refresca as raízes e evidencia o absurdo da vida à medida que os novos brotos surgem verdejantes.   
A semana foi fértil: na Indonésia, aldeões mataram perto de 300 crocodilos para vingar a morte de um morador, que acreditavam ter sido morto por um dos répteis. Vale lembrar que no país os crocodilos fazem parte das espécies protegidas por lei. O grau de estupidez que regeu os aldeões - espécie sapiens, acredita-se - fica a critério do leitor decidir.
Em ponto pequeno, Hierophant, página das redes sociais, contribuiu com sua dose de estupidez. A remissão do nome a uma pessoa que interpreta mistérios esotéricos, vá lá, justifica-se, haja vista a página ter publicado artigo no qual relaciona a hora em que se acorda durante a noite com a situação do estado físico e emocional da pessoa. E afirma: trata-se de medicina chinesa. Acreditei. Afinal, a China é tão distante e só mesmo com um botão é que podemos matar um mandarim e herdar toda a sua fortuna sem que tenhamos qualquer implicação jurídica. Não acreditas, leitor? Balzac, Rousseau, Monier, Chateaubriand, Machado e outros estão aí e não me deixam mentir.
Mas, convenhamos: a estupidez maior veio com a vitória da França sobre a Croácia. Como todos os jogadores integrantes da seleção francesa são negros, exceto o goleiro - o que não deixa de ser sintomático -, o ulular dos que perderam foi tonitruante. Por todo o planeta, afirmou-se o óbvio ululante, inferindo certo racismo, dado o franco grau de seletividade. Explico-me: tratando-se de um imigrante africano pobre, o origem bleue normalmente lhe é renegada, porém os francos, ao vê-lo tornar-se vitorioso, outorgam-lhe o status de um français de souche (francês da gema).
Os franceses, é claro, multiculturalistas, afirmam ser os comentários racistas; para isso lançam mão de todo o arsenal teórico que entope mentes e bibliotecas e dizem se orgulhar de sua nação multicultural, ignorando o paradoxo que, por tradição, não explica o porquê de embora seu tataravô, bisavô, avô e pai terem nascido ao lado da cabana de Astérix, você ainda ser sempre un français d’origine brésilienne – isto, é claro, se seu tataravô um dia abandonou o calor das tropicais florestas tupiniquins para sentir os ares gelados da Bretanha. E voilà, de estupidez entupimo-nos todos, nos trópicos e nos meridianos - e quotidianamente.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Onde nascem os fracos


“Onde nascem os fortes”, título de um folhetim em cartaz, revela-se sintomático se confrontarmos a ficção à realidade. Questões de verossimilhança à parte - até mesmo porque sequer conheço o enredo do tal folhetim, portanto, qualquer coisa que venha a dizer seria pura especulação -, atenho-me ao título, que sugere um grupo de homens e mulheres perseverantes, resistentes às intempéries, cuja têmpera vigorosa vai de encontro às vicissitudes da vida.
Vá lá, por isso que a ficção é inebriante: quem não se lembra se Robinson Crusoé, que bateu os pés contra os pais, que o queriam advogado, para lançar-se ao mar em esplêndida aventura? Quem não se lembra de Julien Sorel, de aparência frágil, traços irregulares e nariz aquilino, que enfrenta toda sorte de pressões impostas pela sociedade e, malgrado sua origem modesta, revela-se ambicioso e sedutor, ultrapassando as mais diferentes dificuldades?
É possível que em um momento ou outro de suas narrativas, Defoe e Stendhal tenham transferido características de seus contemporâneos às suas personagens. Não quero dizer com isso que nos séculos XVIII e XIX não tenha havido seres bastante suscetíveis e fracos. Mas, convenhamos, eram outros tempos, aliás tempos em que as dificuldades se interpunham com muito mais frequência, não importa quais fossem as iniciativas a que se propunha o homem.
Mas, como disse, isso é ficção. Não por outra razão escritores usam de artimanhas para criar seus heróis, eternizando-os por meio da escrita, ao passo que toda uma raça de mortais, que vive no anonimato, não se esforça por deixar um vestígio, uma trilha, uma marca. Falo dos jovens de nossos tempos.
Vivemos época de muito falatório em que os discursos mais apreciados por essa geração de fracos são aqueles que reverberam a vitimização. Alguns educadores creditam o início do chororô atual a uma geração de pais que quiseram poupar seus filhos das agruras que, no passado, viram-se obrigados a vivenciar. A palavra “não” sofreu rápido interdito. Jovens, e muitos adultos de nossos dias, foram poupados de todo o sofrimento e de toda a frustração. Exímios e hábeis em determinadas atividades, são absolutamente desprovidos de crítica, deixam-se ser manipulados e sequer dão conta de que estão sendo alienados a cada instante em que repetem exaustivamente a cartilha deste ou daquele. O emocional desses jovens é frágil, não têm resistência alguma, sentem-se vítimas do sistema, dos pais, dos professores e de quem porventura lhes disser um sonoro “não”.
Se a criação dessa geração de fracos começou no recôndito do lar – que clichê! -, hoje ela tem continuidade nas escolas e universidades. Os estudantes – refiro-me quase sempre aos estudantes de humanas, com os quais tenho contato -, são politicamente atuantes, militantes, conhecem direitos das mais diversas naturezas, de todas as classes que compõem a comédia humana e versam sobre leis – nas redes sociais mostram-se juristas especializados em constituição, criminalística etc e etc. Professam uma erudição funkeira que urge contra aqueles que ousam desdizer suas afirmações categóricas, ao mesmo tempo em que defendem a liberdade de expressão, para, no fim, valer a máxima de que só aceitam que o outro diga o que querem ouvir, caso contrário, a tão propalada alteridade será constituída pela execução sumária daquele que contradiz o que tomaram por dogma. E, é claro, há sites e blogs especializados em entorpecer os fracos.
Como dizia, essa geração de jovens experts em tudo, mostra-se fraca e coloca-se como VÍTIMA quando deve cumprir com suas obrigações. Peça a um estudante para ler quatro, cinco livros, no semestre e o que se há de ouvir é choro e ranger de dentes. O primeiro a ser posto contra a parede é o professor, depois reclamam para outros professores e coordenadores. Muitos professores, sabendo que podem cair em desgraça, edulcoram a pílula, ou seja, reduzem a carga de leitura, escolhem os livros mais palatáveis, etc.  Da esterilidade intelectual partem para a sentimentalização. E, é claro, sempre encontram uma Delphine Roux pela frente a lhes oferecer o ombro e a incensar a vitimização.
Evidente que não generalizo, mas assusta o aumento de vítimas sem que ao lado imperem seus opressores; estes, para essa geração de fracos, são exponenciais e institucionalizados, de modo que hoje é comum ouvir professores universitários, por exemplo, creditar o baixo desempenho de alunos à opressão imposta pelo sistema.
Por fim, o que me surpreende é esses jovens não se responsabilizarem por seus atos, características dessa geração, afora a preguiça e o marasmo em enfrentar as vicissitudes da vida, transpor barreiras do quotidiano, de modo que os fracos – e aqui vou plagiar o modo de ser desses jovens, ou seja, culpabilizar alguém – nascem como resultado dessa sociedade que abomina os fortes. Talvez porque o lugar destes seja na ficção. É uma pena que não leiam! A leitura inspira!

Gritos patrióticos


Panis et circenses! Beatitudo est communis! Assim terminei minha crônica da semana passada. Como estamos a pleno vapor na Copa do Mundo, um dos parâmetros que uso para medir a alegria e a satisfação popular são os gritos histéricos que ouço durante os jogos. Não condeno o futebol, mas também não é algo com o qual perco meu tempo. Sim, leitor, a vida escorre pelos vãos dos dedos e 90 minutos, duas, três vezes por semana, ao final, enferrujam o espírito, entorpecem o cérebro, atrapalham as sinapses.
Hoje, enquanto leio Roth, ouço gritos histéricos de senhoras e marmanjos. Mais cedo, senti-me um estranho em meu país, uma vez que vestia cinza; escolha involuntária, pois nem mesmo me lembrara da canalha, cujas quadrilhas orquestram-se em todos os poderes e esferas da República. Há um trio no STF que é imbatível! Exportamos tanta coisa: os dribles, as jogadas capciosas, a alegria, o samba! Não demora e exportaremos uma máfia diferente, legalista, amparada na constituição e no cabedal de leis que, agregado a ela, só vale para o povo miserável que, vestido de verde e amarelo, se embriaga com jogadas milionárias e grita satisfeito com as migalhas que caem da mesa da canalha e seus asseclas. Estes, por sua vez, povoam e sugam as tetas da República - de hospitais a universidades. 
Não que o povo não mereça algum circo, vá lá, ninguém é de ferro! Também, convenhamos, não é necessária tanta amofinação e agastamento no dia a dia! Contudo, nos tempos em que vivemos, a despeito de tanta informação que jorra da internet e da tão propalada democratização do conhecimento, o que se vê é a inteligência perdendo de 7 a 1. Quando digo isto, refiro-me sempre aos textos que leio, na maioria das vezes, territórios inóspitos a qualquer raciocínio. Por outro lado, há times cujo objetivo é provar que democratizar o saber é relativizá-lo, donde infiro certa arrogância dessa gente, já que isto pressupõe alguma ascendência sobre o outro.
Assim, grupos de pesquisa constituem-se para estudar, por exemplo - exemplinho bobo este, o caldo é muiiito mais grosso -, o preconceito linguístico na universidade, onde os ‘pobrema’ são expostos, cada um apresenta seu relato vitimista e todos se irmanam na tentativa de tornar o amanhã melhor na universidade, lugar em que supostamente as pessoas frequentariam justamente no intuito de adquirir um saber variegado e que, por isso, só por isso, enfrentariam desafios para irem além daquilo que já dominam. Hoje, não só a carne é fraca, como os espíritos, sobretudo, perderam a rigidez!
Não por outra razão, caso, você leitor, ainda acredite no clichê de que nas universidades só encontrará pessoas cultas, engano o seu! Claro, há exceções, mas em geral é isto. As faculdades de letras, por exemplo, tem-se tornado espaços áridos e inóspitos para a literatura. Creia-me. A narrativa, a fábula, a ficção, têm sido vilipendias e vergastadas por todos os lados. A erotização do corpo, os preconceitos, os rótulos e seus estudos, a configuração geográfica da produção literária, tudo isso e muito mais tem sido o parâmetro para a negação de determinadas obras e autores, a eleição de obras pretensamente literárias e a produção de estudos também pretensamente críticos.
Vá lá, em tempos em que o livro e a leitura têm-se tornado algo abjeto, como redimir e/ou manter espíritos embotados? Não sabe? A canalha sabe, ainda que boa parte dela não tenha lido sequer um soneto, a sabedoria trapaceira tem sido digna de títulos honoris causa. Mas, só a canalha? Evidente que não. Como disse uma senhora expertise da causa, a corrupção é uma velha senhora, por isso é muito conveniente um povo vestindo cores fortes, feliz, risonho e cordial, amante do populismo, inebriado com suas vitórias futebolísticas efêmeras e a dar mostras de que a sobremesa é deliciosa. Enquanto isso... a canalha janta o copioso prato principal. Panis et circenses! Beatitudo est communis! Hurra!!!