Revista Philomatica

sábado, 21 de dezembro de 2019

Como manter sua sanidade mental

Em dias em que tudo se liquefaz, principalmente as amizades, é sempre bom despir-se de preconceitos. Talvez seja esse o primeiro ponto para que tenhamos uma mente saudável. Por isso, lance mão daquele esquecido livro de autoajuda e folhei algumas páginas à procura de uma ideia qualquer que lhe possa indicar um caminho. É provável que entre uma centena de páginas, você encontre duas ou três que de fato mereçam ser lidas e guardadas no espírito, e só por isso vale a pena.
Não se esqueça de que a leitura é sempre seletiva. Quem não se lembra do homem da tesoura, o guarda-florestal e leitor contumaz mencionado por Antoine Compagnon? Pois bem, nosso leitor afirmava que tinha uma biblioteca pessoal que não servia como exemplo a qualquer outro leitor; nela, dizia, havia livros de todos os tipos, mas, se um leitor comum decidisse abri-los levaria um tremendo susto, pois a maioria deles não continha mais que duas ou três páginas; todos incompletos, haja vista nosso leitor ler com a tesoura nas mãos e cortar tudo o que o desagradava. De Baudelaire dizia ter conservado apenas duzentos versos; de Proust, apenas o relato de um jantar em casa da duquesa de Guermantes.
Na vida, caso queiramos manter a sanidade mental, não devemos nos deixar enveredar pelos redemoinhos criados por aqueles que estão à nossa volta, devemos sim é andar com a tesoura nas mãos. Ao selecionarmos colegas e amizades, resultado de nossas tesouradas, não fazemos nada além daquilo que pedimos ao Altíssimo em nossas orações, qual seja, que nos livre de todo o mal, amém. Não devemos nos sentir arrependidos ou ter remorsos de nos afastar deste ou daquele, até mesmo porque quotidianamente encontramo-nos com os bons e os maus. Há, por exemplo, os vampiros de energia, pessoas que se aproximam de nós com um único objetivo: reclamar da vida e nos colocar para baixo. Reflita: quantos à sua volta são assim? O que fazer? Tesoura neles!
Há também aqueles que são como Monsieur Orgon, personagem de Tartufo, de Molière. Orgon entrega-se instintivamente a algo único que lhe preenche o espírito: tiranizar e atormentar o próximo. É célebre a frase da personagem faire enrager le monde est ma plus grande joie (enfurecer o mundo é minha maior alegria), que dá vazão à sua necessidade instintiva, tornando-o um sádico tirano familiar. A vida não é fácil e, como dizia Sartre, o inferno são os outros, por isso, respire fundo e siga alguns passitos:
1. Medite. Meditar tem lá suas especificidades, para cada um é uma coisa, mas, no frigir dos ovos, nada mais é que desanuviar-se, tranquilizar-se. Ouça uma música relaxante, inspire, expire, pense na sua respiração, procure um lugar calmo, aproxime-se da natureza, escute o som dos pássaros, o vento a tocar nas folhas, ouça o barulho da água. Discipline-se sobretudo, pois isto requer treino uma vez que nos tornamos seres autômatos, guiados pela produção.
2. Tenha um animal. Deixe as frescuras e a viadagem de lado, aquilo de ah! cachorro e gato soltam pelos; cachorro cheira; é preciso limpar cocô; tem que sair para caminhar com o cachorro; e quando eu viajar?, sim esses amigos vão tornar-se bastante dependentes de você, mas o retorno para a sua saúde mental não há Credicard que pague. Eles são seus AMIGOS e amizades precisam ser cultivadas - estão aí a raposa e o Pequeno Príncipe que não me deixam mentir.
3. Reavalie seu estilo de vida. Não podemos nunca transformar nossa mente em uma fortaleza. As paredes são sólidas caso acreditemos que uma situação x será determinante para o futuro de nossa existência. A vida muda, as coisas mudam, as pessoas mudam. Nada é perene. Por isso, seu grande problema de hoje, amanhã, você o verá como algo desprezível e que não valeu a pena toda a energia e o esforço nele consumido. Durma bem. Dormir ajuda a desligar os botões do estresse, da vida profissional, dos vampiros de energia e dos sádicos. 
4. Procure válvulas de escape. Caminhe, cante, cozinhe, movimente-se, enamore-se! Busque a natureza. Leia! Ocupe sua mente. Prefira o simples. Aprecie o céu e as estrelas. Fuja das muvucas, por mais que você seja curioso. A confusão não é contigo? Seja indiferente, ignore, não opine. É com você? Pondere, reflita; às vezes é preciso dar o braço a torcer, faça seu opositor achar que está no controle e recupere sua paz e sua calma.
5. Respeite seus instintos. Relaxe. Ame-se e viva bem! Mesmo que queiramos, não vamos consertar o mundo, por isso, cuide de seu quadrado e seja feliz!



sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Igualdade entre os homens? Só na criaturalidade ou na morte.


Há um aforismo popular a dizer que devemos andar pra frente e esquecer o passado. Também dizem que a voz do povo é a voz de Deus, por isso acredito nos adágios e ditos populares, mas, como trago na alma um ceticismo ferrenho que não me larga nem quando acontece aquela explosão no espaço que vai da fruta ao caroço, vivo desconfiado, razão pela qual bato o pé e insisto nas releituras.
É certo que em meio à descrença não deixo de me lembrar de Santo Agostinho e sua reflexão sobre o tempo, quando o religioso comenta sobre os conceitos de passado, presente e futuro. Budistas também preferem o caminho do meio, não ficam remoendo o passado – e ali vivendo –, penso que nem mesmo planejam um futuro incerto. Já os cristãos, estes se culpam pelo passado, penitenciam-se, não se perdoam.
O fato é que o passado nos deixa fortes quando o canibalizamos, e, se na vida o tempo escorre pelos vãos dos dedos sem que possamos recuperá-lo, nos livros conseguimos preservá-lo e dele tirar lições – e quem sabe algum rumo para continuar nossa aventura até que nos tornemos todos iguais. Sim, pois só a morte traz a igualdade entre os homens, o resto é retórica, filosofia, sofismas – balela.
E como falei da releitura como veículo para voltar ao passado, passo a comentar um texto de Auerbach, em que o autor chama a atenção para o conceito de criaturalidade, isto é, o sofrimento a que o homem é submetido como criatura mortal, algo comum e que se aplica a todos nós mortais, que nela nos irmanamos.
Basta olhar para o passado e lá encontramos traços da criaturalidade desde os primórdios do homem. Tome-se por exemplo a antropologia cristã, que ressalta a condição criatural do homem, sujeito a sofrimentos e à mortalidade. A Paixão de Cristo surge como o mais insigne exemplo desse modo de pensar, isto é, para se chegar à salvação é preciso sofrer – e muito! E olha que nem falo de toda a santaiada criada pela Igreja...
Nessa lógica, acontece uma relativização e uma desvalorização da vida terrena; não à toa, no século XVIII, os Iluministas clamaram pela felicidade agora, já! O paraíso? Deixa pra lá, depois a gente vê. Segundo Auerbach, “nos primeiros séculos da Idade Média ainda estava muito vivo o conceito segundo o qual a sociedade terrena tinha valor e metas”. Dante surge como “exemplo de um homem para quem o planejamento secular e o esforço político por parte dos indivíduos e da sociedade humana em geral eram esteticamente importantes, altamente significativos e decisivos para a salvação eterna”.
Velhos tempos. O que há de diferente entre este homem do antigo humanismo e o homem atual, que ejacula alteridade quotidianamente, clama por igualdade, mas é indiferente à exploração e à miséria? Nesses nossos tempos cruelmente particularistas e regidos pelos interesses, em que os novos acontecimentos são incompatíveis com as ideias genuinamente humanistas, em que fingimos ser, guiando-nos pelas aparências, já não conseguimos mais interpretar e ordenar esteticamente as novas formas políticas, econômicas e artísticas. A arte tornou-se um amontoado de fragmentos que responde às individualidades, em detrimento do coletivo. Este, determinado pelo consumo, deixa-se alienar e trata a cultura de massa como arte genuína. E paro por aqui, porque senão...
Vivemos um tempo de cansaço, esterilidade e aparências. Somos egoístas, venais, mas sequer admitimos isso, porque antes de tudo somos vis e hipócritas! E, como o tempo é curto, volto à minha releitura, mas não sem antes deixar um pequeno entrecho de Auerbach, que ecoa lá do passado: “O que há de peculiar nesta imagem radicalmente criatural do homem, o que está em nítido contraste com as características do antigo humanismo, reside no fato de que, por mais respeito que demonstre diante da roupagem terrena e social que o homem veste, perde todo o respeito diante dele mesmo, tão logo a despe; por baixo desta vestimenta não há nada além da carne, que será ofendida pela idade e pela doença, que será destruída pela morte e pelo apodrecimento.”
Por isso, no sofrimento e na morte, enfim, somos iguais, por mais que na vida tenhamos sido Gugu.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Homens: hipocrisia, barbárie e literatura


Colocando os pingos nos is: cansado da hipocrisia, da lisonja e do politicamente correto que, como qualquer um, trago no espírito como arranhões, ao referir-me a homem falo dos dois gêneros tradicionais e dos outros cinquenta e tantos que a diversidade nos trouxe com a flâmula da liberdade desses nossos tempos mais livres, porém, não menos ignorantes, bárbaros e bestiais.
Hoje, ao ler uma daquelas reportagens absolutamente dispensáveis, que jornais e sites de notícias produzem como uma mancha de tinta, só para não manter o espaço em branco – talvez seja o caso desta crônica –, consegui ainda me surpreender com a ética, o respeito, a humanidade, a compreensão, a alteridade, a bondade, enfim, a cristandade dos internautas em seus comentários. Ali, tem-se a impressão de que vivemos no melhor dos mundos possíveis e, arrisco afirmar, é provável que já estejamos vivendo a Era de Aquarius tal a generosidade, a gentileza e a empatia que brotam do espírito dos homens na convivência do dia a dia; tudo é tão intenso, tão eufórico, que acredito ter havido uma total inversão da ordem: estamos nos céus e não nos demos conta – algo difuso tem vedado nossos olhos –, a harmonia é tanta, o amor está no ar, tudo é tão bom que o inferno evaporou nos ares ou adentrou às páginas dos livros de literatura, este espaço inominável em que perversos e libertinos insistem em invencionar e garafunhar sobre páginas em brancos a vida obscura e devassa de personagens que a ficção tem produzido sem qualquer verossimilhança com este nosso mundo real, caridoso e magnânimo, uma prova de que também o realismo e a mimeses já não têm razão de ser, acabaram-se, por mais que tentemos endeusar Aristóteles ou reler Auerbach.
O século XXI é a glória, sobretudo se comparado ao anterior, que hoje jaz silencioso entre as páginas de livros cujas bordas e miolos acumulam o pó que também cobriu a desfaçatez, a corrupção e o mal caráter do homem, fazendo deste um ser sublime e etéreo que desliza pelos caminhos do céu terreno.  
Vivemos um pós-realismo metafísico em que nossas vestes, alvas, sequer imaginam a vida pregressa de aventuras que os livros escondem – e que não nos atrevemos a curiosar, até mesmo porque já não temos mais paciência para a leitura, afinal, para que ler 200, 300, 400 páginas se temos o Twitter, o Facebook, áudios e as imagens no Instagram? Para que precisamos aprender a escrever se até recentemente insistiam em nos dizer que devíamos nos arvorar contra tudo e contra todos que ousassem nos corrigir ou nos ensinar? Felizmente em nossos dias já não há mais preconceito linguístico, e o mais genial, já não há mais qualquer preconceito, já não há mais nada!, pois somos lindos, felizes, humanistas, somos da Era de Aquarius! Tudo isso está lá, nos comentários das redes sociais e das reportagens publicadas em sites de notícia. É como se lêssemos um diário celestial. Atingimos a perfeição! Quem imaginaria? Rousseau? Este se foi há muito tempo...
Alguém arriscaria a dizer o contrário? Ninguém, claro! Só se quisesse passar uma temporada na Casa Verde... bem, deixe-me explicar dado que já não lemos, a Casa Verde, conhecem? Sim, aquela, aquela lá de Itaguaí, a do Alienista...
Quem arriscaria a dizer que no século passado ainda éramos cruéis, hipócritas e corruptíveis? Quem ousaria afirmar que usamos muito de nossa criatividade para criar um mundo de horrores, duas guerras mundiais, governos fascistas e totalitários, e proibíamos as pessoas de ir e vir? E tudo sob a desculpa de espalhar a igualdade? Quem arriscaria uma temporada na Casa Verde, sob o risco de imitar Lúcifer e ser expulso desse paraíso em que vivemos hoje? Só para ter o gostinho de afirmar que criamos técnicas de extermínio em massa, câmaras de gás, campos de concentração, muros, cercas eletrificadas, sequestros, terrorismo, o maniqueísmo da direita-esquerda, e que implantamos tudo isso em nome dos direitos do homem, da igualdade, da justiça e da liberdade? Eu não!
Orgulhosos, criamos as revoluções culturais, a libertação dos povos, as teologias da libertação... criamos tudo isso e muito mais! E tudo, repito, pensando nessa nossa Era de Aquarius que ora vivemos e desfrutamos sem sequer nos darmos conta! Os livros, ah! os livros... para que lê-los? A ignorância e a hipocrisia são tão pacíficas, belas e aprazíveis... Para que fuçar em Tolstói, Dostoievski, Bradbury, George Orwell, Machado, Voltaire, Bielinski, Herzen, Turgueniev e tantos outros? Por que acreditar nesses homens espúrios que denunciavam a falaciosa autonomia do homem e que, a exemplo de Franz Werfel, afirmava que tudo terminaria em uma “confusão fatal da liberdade com a anarquia moral” – e acrescento, ética!? Pra quê? Pra vermos a mentira e nos cegarmos com a verdade, sermos expulsos desse nosso mundo céu paradisíaco? Afinal, quem se atreveria a dizer que não vivemos no melhor dos mundos possíveis? Está tudo tão perfeito... ontem mesmo, leitor, tivemos a prova disso: quem não soube do ministro do STF homenageado pela câmara dos deputados por serviços prestados a esse mundo que não é o nosso, mas deles?