Revista Philomatica

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Um viajante entre os nazistas


Na tentativa de fugir do carro das ideias, que, medíocre, hoje chegou quase vazio, volto-me aos livros. O viajante, de Ulrich Boschwitz ainda não ganhou uma tradução para o português, mas aí vai uma dica se você lê francês, inglês, italiano, espanhol, alemão... Bem, você não precisa ser poliglota ou erudito, um idioma estrangeiro resolve o problema, até mesmo porque a menção a esses idiomas ironicamente nos mostra o quanto somos um povo singular; traduzimos best sellers de Gary John Bishop (Pare com essa merda), de Mark Manson (A sutil arte de ligar o foda-se), de David Focker (Seja foda, seja inteligente) e ignoramos solenemente obras não ligadas à moda dos excrementos  ou da escatologia, a coprologia.
Falemos então de O viajante. Como fugir da Alemanha em 1938, quando você é judeu?  A resposta encontra-se nesta obra de Boschwitz, uma obra-prima escrita em 1939 por um autor de 23 anos.
A personagem se chama Otto Silbermann. Difícil ter esse nome na Alemanha, sobretudo após a célebre Noite dos Cristais (novembro de 1938) e passar despercebida. Tão logo negociara apressadamente a venda de sua casa, os nazistas vieram prendê-lo. Escapando por uma porta dos fundos, Silbermann inicia uma odisseia ferroviária. Berlim-Hamburgo-Dortmund-Aix-la-Chapelle-a fronteira belga-Berlim-Dresden-Berlim: o Reich, que fechou suas fronteiras para os judeus, tornara-se uma vasta e perigosa armadilha. A aranha nazista teceu sua teia silenciosa, fazendo de todos os caminhos um beco sem saída, e um pária como Silbermann sentia o laço apertando cada vez mais o seu pescoço, considerando-se que tudo o que tinha não ultrapassava os 40.000 marcos que carregava em uma toalha.
Novo judeu errante, ele passa por um café, depois um restaurante, um hotel, que ele logo deixa; enfim, um fantasma fugindo dos arianos, potenciais denunciantes, cujas vítimas deviam evitar. Tudo o que era simples, de repente tornou-se bastante complicado, a menor certeza vacila e a vida fácil já é impossível. Nos corredores dos trens, nos vagões, Silbermann conhece outras figuras, judeus mais pobres que ele, mas também em fuga, cidadãos sobre os quais ele não sabe o que pensar e que nada suspeitam do seu drama.
Era preciso dizer que ele não era judeu. Mas, a propósito, como é parecer judeu? “Parecer ansioso, alarmado.” Ora, ele estava cada vez mais ansioso. “Os judeus declaram guerra à Alemanha”, lê nas manchetes de jornais. “Que seja a guerra, eu estou bem ciente disso”, disse ele a si mesmo, “mas se fui eu quem a declarou, isto eu não sabia”.
Silbermann lutara na Primeira Guerra Mundial. “Mas nós éramos muitos em ambos os lados. Hoje, sou só eu e tenho que lutar a minha guerra sozinho.” Ele a luta, contudo, mas luta cheio de humor estridente – “ao menos eu descubro a Alemanha”, “eu deveria ter feito uma assinatura” - ou desespero – “o que quer que fazemos, sempre atraímos suspeitas”.  Há muitos sobressaltos, parênteses reconfortantes, mas, diante dos fracassos, ao sabor das traições de amigos que subitamente o ignoram, esse Ulisses confuso acaba perdendo a coragem e a humanidade. Um ódio estridente de seus irmãos acaba por invadi-lo. “Tudo isso é por causa deles. O que eu tenho em comum com eles?” Silbermann tenta o suicídio; a loucura o ameaça, a loucura de um animal que gira em sua gaiola. Um bolero trágico realizado com maestria.
 O viajante também poderia ser chamado de O fugitivo, Perseguido pela morte ou O inimigo invisível. Um inimigo que imperceptivelmente tira do homem tudo o que ele tem e tudo o que ele é. “O que resta de mim?”, ele se pergunta. “O que eles querem de mim?” O leitor sabe bem, e no entanto, se consome ao acompanhar a fuga de perder o fôlego empreendida por Silbermann, torcendo por ele.
Devemos esta obra-prima esquecida a um judeu de 23 anos, Ulrich Boschwitz, que a redigiu apressadamente em Paris, em um mês, depois de ter fugido da Alemanha após o evento da Noite dos Cristais. Essa emergência contamina o texto muito literário, tornando-o ao mesmo tempo engraçado e desesperado, e, paradoxalmente a pressa imprime à narrativa um tom de reportagem: temos a impressão de estar lá, um sentimento tão raro e tão precioso na literatura.
Precocidade surpreendente de um autor, capaz desde 1938 de restaurar, assim, do exterior, a decomposição progressiva de um indivíduo preso nas rodas dentadas de uma máquina infernal. O viajante apareceu nas principais editoras de Londres e Nova York em 1939, nunca em alemão ou francês, e só foi encontrado no final de 2015 nos arquivos de literatura exilada da Biblioteca Nacional de Frankfurt pelo editor Peter Graf, que revisou o manuscrito - o autor ainda queria corrigi-lo, mas não teve tempo. Partindo para Londres antes de 1940, Boschwitz teve o triste privilégio de ser internado como alemão pelos ingleses em um campo australiano. A história, que ainda não havia terminado, não abriria mão dessa esperança da literatura mundial. Quando ele acabou de ser libertado em 1942, contra a promessa de se envolver com os Aliados, seu navio inglês foi torpedeado por um submarino alemão perto dos Açores. Como seu herói, ele não escapou dos tentáculos do polvo nazista.
Por fim, aqui no torrão tupiniquim, é esperar passar a moda dos best sellers excrementológicos e torcer para que um editor se disponha à empreitada de publicá-lo.


* A partir da reportagem de François-Guillaume Lorrain, Le Point.
Ulrich Boschwitz. Le Voyageur. Ed Grasset. Trad de l'allemand par Daniel Mirsky. 340 p. 19 €.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Sobre sobremesas


O ano começa e, parece-me, as notícias ainda não se reciclaram ou não se deram conta de que o calendário mudou. A balela veiculada pelos emburrecedores (e embrutecedores) programas de TV e portais de notícia de que é preciso se vestir de verde amarelo rosa azul-anil para ter dias felizes no próximo ano, as notícias, impávidas, olharam indiferentes para o vozerio e continuaram a oferecer o café amargo do dia a dia que, embora delicioso, para os açucólatras lembra o lado cruel e amargo da vida.
As ameaças dos países centrais e periféricos estão na ordem do dia. Cada um acusa à sua maneira e também usa seu poderio militar e terrorista a seu modo – e que vença não o melhor, o mais ético, mas o mais forte. Afinal, o que dizer? Melhor é se conformar como o povo ovelha que, diante do aumento dos combustíveis, em um raro dia em que vi os noticiários na TV, dizia: “fazer o quê, né?, é sempre assim, não muda nada.”
Não à toa Leibniz dizia lá nos tempos de antanho que vivíamos no melhor dos mundos possíveis. Ainda que tenha sido ridicularizado por Voltaire, a máxima mostrou-se tão obstinada quanto a craca na crosta do navio, é preciso tempo e paciência para soltá-la.  Darwin, por sua vez, anteviu toda a bandalheira de hoje e de sempre com a sua teoria da evolução e a seleção natural. Não à toa, repito, o evolucionismo tornou-se a religião dos governos no século XIX e, hoje, vemos os governos e os poderosos solapando a massa sem dó nem piedade, e a massa, a massa, meu Deus, diz “fazer o quê?”. Achando-me revoltado, obtuso leitor? Você viu a notícia de que deputados e senadores, e toda a canalha que habita a ilha da fantasia Kubitschek, gastaram nada menos que R$ 3.100.000.000,00 (isso mesmo!, três bilhões e cem milhões de reais) em trajetos para Paris, Roma, Nova York e Las Vegas??? E o presidente interrompe sua pausa entre o Natal e o Réveillon para assinar um salário mínimo de R$ 1.039,00? E a massa que desconhece a ironia diz “fazer o quê?”
Isso só acontece, creio eu, em razão do esforço conjunto da mídia, de políticos, sociólogos, antropólogos, futurólogos, ideólogos, obtusólogos e todos os ólogos existentes que, consubstanciados com o poder, alienam e inculcam na massa que ela deve morrer de trabalhar porque trabalhar dignifica o homem. Não discordo, mas, pergunto-me ao ler tais notícias quais homens são ou serão dignificados.
Enquanto isso, parte da mídia alimenta o imaginário da massa com sobremesas. Machado de Assis há muito dizia que temos o hábito de comer a sobremesa antes do prato principal. Você viu que em algumas capitais, nas comemorações de Ano Novo, as escolas de samba já saíram à rua para dar, digamos, uma canjinha, para entreter a massa? Esta, dopada, drogada, surtada e descompassada não sei com o quê, ri às desbragadas, fica feliz e mostra o cartazinho às câmeras com os dizeres “mamãe, eu estou na Globo”. E assim la nave va.
Mas não só os opressores e poderosos que subjugam e embrutecem as massas não. A massa, quando pode, não perde a oportunidade de explorar seu igual. Anotem esta historieta que presenciei na feira sábado passado. Aproximei-me de um banca em que um agricultor expõe milho, limões e mandiocas que cultiva, na esperança de lucrar algum dinheiro para seu sustento. Como o milho não advém do agronegócio, as espigas são díspares, algumas plenas de grãos e maiores, outras, talvez em razão do solo ou das intempéries, não se mostram tão atrativas e suculentas. Por isso, o agricultor teve a ideia de separá-las e a elas atribuir preços diferentes. Nada que qualquer outro comerciante não faria.
Uma jovem, ao analisar o milho decide pela compra das melhores espigas. Ao ser informada do preço, reage com desdém e diz: “Mas isso é muito caro. Eu não quero pagar isso!” O agricultor sequer teve tempo para a resposta, pois o Iphone 11 da jovem começou a soar insistentemente. Resolvida a ligação que a interrompera, a jovem volta-se para o agricultor que, com suas mãos grossas pela lida do trabalho e o contato diário com a terra, descascava umas outras espigas e continua: “Já disse que não posso pagar isso!”, ao que o agricultor replica: “Moça, mas essas espigas foram selecionadas, por isso o preço é diferente das outras.” A jovem, por sua vez, insiste: “Veja, até mesmo as outras acho caras. Vou explicar: eu tenho calopsita!”
O agricultor: “Eu sei, mas é o melhor preço que posso fazer. Se você procurar pela feira vai ver que o meu preço não é maior que o dos outros que vendem milho.” A jovem: “Parece que o senhor não entendeu. Eu tenho calopsita. Não posso pagar esse preço. O senhor vai ter que fazer um preço diferenciado pra mim. Eu tenho calopsita!”
Irritado, deixei a banca, pensando na facilidade em que as pessoas transferem suas responsabilidades aos outros. A calopsita, assim como as farras em Las Vegas e a escola de samba animando a massa, tudo se insere na ordem das sobremesas. A calopsita, a jovem decidiu por vontade própria comprá-la, porém, na hora de pagar pela alimentação do pássaro, decidiu transferir o ônus para o pequeno agricultor que conta os poucos caraminguás que junta com a venda do milho para sobreviver; a canalha política, torra o erário sem qualquer medida abusando da sobremesa, enquanto ao pobre sequer o prato principal lhe é permitido colocar à mesa e, por fim, para esse pobre, oferecem a ele o samba como sobremesa, afinal, não é de hoje que o mundo gira sobre a roda do panem et circenses.

Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/sobre-sobremesas-o-ano-comeca-e-parece-me-as-noticias-ainda-nao-se-reciclaram-ou-nao-se-deram-conta-de-que-o-calendario-mudou/

Textos que ninguém lê


A semana revelou mais um pouco da perversidade humana. O revelar-se recai em pura redundância, uma vez que até o mais obtuso dos humanos conhece a si próprio e aqueles que o rodeiam, portanto, sabe de que barro é feito e não ignora que em meio algumas pitadas de ética, bondade e retidão, a grosso modo, o que dá consistência à matéria são ingredientes à disposição em qualquer prateleira da esquina: hipocrisia, vilania, ganância, violência, covardia, estupidez e muito mais. A diferença entre esses itens e qualquer outro produto é a disponibilidade do cidadão em prová-los, principalmente porque por eles não se paga.
Por isso, é só por isso, covardes, violentos e gananciosos são os 41 homens que foram presos por patrocinarem rinhas entre cães em Mairiporã. Dentre eles, destacam-se um veterinário, um médico e um policial. No frigir dos ovos, a balança da justiça pendeu para a injustiça, que aos olhos da lei deve ser perpetrada sempre. Dos 41 espúrios, só um ainda continuava preso - e duvido que continue. O que esperar da humanidade em tempos em que todos se voltam para o nascimento do Cristo e, hipocritamente, pregam a bondade, a nobreza e a retidão de espíritos?
A perversidade dos homens em seu quotidiano ressoa na literatura. Machado de Assis, por exemplo, demonstrou genialidade incomparável ao tratar da essência do espírito humano sob o crivo da ironia. Shakespeare fez das intrigas palacianas o fermento para obras monumentais. Outros, mais contemporâneos, buscam na curiosidade do leitor pelo desconhecido, sua intemperança, seu desespero e suas atribulações o mote de suas obras e com isso se dão muito bem. Dan Brown e Paulo Coelho estão aí a faturar milhões de caraminguás e a encher suas burras!
Mas nem todo mundo lê. É claro, não devemos culpar o leitor, jamais, agindo como agem as facções políticas de nossos dias, que preferem a animosidade ao entendimento. Mas o fato é que não raro o escritor escreve para um leitor ideal, conjecturando que um dia será lido, por isso a premissa de que todo mundo que escreve, escreve para ser lido.
As razões de textos não serem lidos têm suas variantes e, às vezes, isso parte de uma autocrítica. Kurt Wolff em Memórias de um editor conta o périplo de Kafka que, antes de morrer, recomendou a seu amigo Max Bord que destruísse o que escrevera, pois o considerava de baixa qualidade. Felizmente, Max Brod o desobedeceu. Há casos, como de Emily Dickinson, que, reclusa, escrevia em cadernos e cuja obra só veio à luz por causa de amigos.
Dito isso, a caça aos leitores depende de marketing – e Paulo Coelho está aí como prova de que não estou mentindo. Leandro Karnal, Mário Cortella e Mark Manson com seu A sutil arte de ligar o foda-se, entre tantos outros, também estão aí para trazer respostas rápidas a problemas incômodos.
Não vou entrar na questão da literatura de massa, a despeito de as subcelebridades em suas redes sociais recomendarem o foda-se; penso em Kafka, não porque eu seja um leitor melhor que os outros, mas porque procuro algo que me fale ao espírito e não somente às partes baixas – sejam elas intelectuais ou físicas. No mais, reflito no porquê de ninguém lerem meus textos e eu insistir em escrevê-los a mim mesmo: li que textos na internet devem ser curtos, cheios de espaços, fotos, insistir nas palavras-chave que os sistemas lembrem quotidianamente e, o mais importante, devem ser curtos, bem curtos, sempre curtos. Curtíssimos.
Portanto, já passei da medida. As intersecções entre a vilania do homem, sua representação na ficção e o fato de ninguém querer ler textos que a elas se referem, se não ficou claro, definitivamente não leia Lukács ou Auerbach, mas veja TV ou leia qualquer livro que traga a palavra foda-se ou merda na capa, e isso por três razões: subcelebridades como Marília Mendonça e Juliana Paes os recomendam, editores dizem que são irreverentes e, o mais importante, a vida sob a máscara da ignorância é muito mais bela.
Portanto, se chegou até aqui leitor, considere-se “o cara”, pois terá sido um dos poucos ou quem sabe o único a ler essas garatujas. Sendo assim, recomendo A morte de Ivan Ilitch, de Tólstoi, ou Almas mortas, de Gógol.



A ressurreição e morte de Eva Todor


Em busca do carro das ideias, deparei-me, uma vez mais, com a obtusidade que permeia as redes sociais. Ontem, muitos lamentavam a morte da atriz Eva Todor. Eva Todor morreu?, perguntavam os internautas entre boquiabertos e surpresos. Sim, uma grande atriz, mas viveu bem, faleceu aos 98 anos, constata um senhora. Outro, maldiz 2019 por levar mais um representante das nossas artes, estabelecendo comparações com a mediocridade, leme das celebridades de nossos dias. Há ainda aqueles que relembram personagens interpretadas pela atriz e, saudosos, choram a sua perda.
Ocorre que Eva Todor partiu em 10/12/2017. As redes sociais têm dessas coisas. Ali, sem qualquer risco que traz as generalizações, ninguém lê. Quando lê, lê as manchetes, pouco se importando se a notícia é de hoje, ontem ou será a de amanhã. O que interessa é repassar o que tomam por uma notícia quente e fresquinha, com todo o oximoro de direito. Não é preciso dizer que o grosso dessa lama toda são as chamadas fake news, anglicismo desnecessário diante das nossas notícias falsas, calúnias e fofocas. Também não é preciso dizer que no caso das notícias falsas, elas só são propaladas porque interessam às forças envolvidas no exercício da defesa de suas cabalas. Sabem como é, o ditado popular é impiedoso, nada resiste ao “onde há fumaça há fogo”, e, nesse ponto, o adágio assemelha-se às notícias divulgadas na internet, razão pela qual a expressão “cair na rede” equivale à marca de ferro quente no dorso do gado ovelha.
Diante do nada a partir do qual se produziram as notícias da semana, sobraram-me me os livros. Corro os olhos pela estante e Aqueles que queimam livros, de George Steiner, salta-me aos olhos. Cético e pessimista, Steiner é um daqueles humanistas que questionam a contradição entre a riqueza da cultura e do pensamento ocidental e sua capacidade de produzir genocídios que assustariam até mesmo o mais ingênuo dos neandertais. Não por outra razão, diante da incredulidade, Steiner começa seu livro com a afirmação: “Aqueles que queimam livros, que banem e matam os poetas, sabem o que fazem. O poder indeterminado dos livros é incalculável.”
Contudo, ao ressaltar o caráter dialético do livro, Steiner traz um sopro otimista ao afirmar que “precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores”, cabe aos lúcidos a tarefa do convencimento, já que nem a hermenêutica e nem a psicologia podem prever os estragos que uma obra mal lida pode causar. Não por outra razão muito da barbárie conhecida foi gerada no seio da alta cultura por homens letrados e intelectuais que sistematizaram o horror e banalizaram a virtude, razão pela qual o autor sustenta que “na experiência humana, não há fenomenologia mais complexa do que aquela dos encontros entre o texto e percepção, ou, como observa Dante, entre as formas da linguagem que ultrapassam nosso entendimento e os níveis de compreensão em relação aos quais nossa linguagem é insuficiente”.
Por isso, se o livro e a literatura, por mais singelos que sejam, são a chama ínfima que ilumina o espírito perdido na escuridão da ignorância e do fanatismo, também pode ser a flâmula que alimenta o obscurantismo, tal a hibridez das ideias que o objeto livro pode abrigar. Mas nem por isso devemos nos desanimar, sobretudo diante do muito que tem sido produzido em nossos dias - falo das obras efêmeras e oportunistas que, segundo Steiner, são de apelo fácil à violência, à intolerância, à agressão social e política -, pois, acreditem, o autor, otimista, afirma que os “livros são a chave de acesso para nos tornamos melhores”; diante de tal afirmativa, é claro, não se pode esquecer o leitor, este ser repleto de ilusões e desilusões, esperanças, desesperanças e expectativas. Se a obra pode suscitar o mal, também pode ser paliativo ao espírito e afugentar o mal: quem não se lembra de Primo Levi, que recitava Dante a seu amigo Pikolo, em Auschwitz?
O poder da leitura é inquestionável e os livros com suas alegorias e metáforas desconstroem clichês e preconceitos, provocam discussões e nos elevam o espírito, até mesmo diante do real que, ficcionalizado, ressuscitou Eva Todor, só para matá-la uma vez mais e entristecer internautas incautos. Que venha 2021, quando então poderemos prantear o novo luto de Eva Todor. E há incrédulos que não creem na ressurreição do Cristo!


Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/a-ressurreicao-e-morte-de-eva-todor/