Revista Philomatica

quinta-feira, 28 de abril de 2011

11 de setembro de 2301: história ou crônica?

Como contar o que está à volta? Como agenciar as palavras e transmitir a fisionomia da vida atual àqueles de amanhã? É certo que nem tudo o que vivemos passará à história. O 11 de setembro de 2001 passou à história e com ele uma enormidade de teorias conspiratórias; grande parte, porém, pura fabulação.
Mas, e hoje, 11 de setembro de 2301, ao correr os olhos pelas linhas deixadas por um pequeno comerciante que estava numa esquina próxima, quando o primeiro dos aviões chocou-se com uma das torres, como devo referir-me a ele? Historiador? Seu relato é minucioso: traz informações e dados oficiais que posso comprovar em qualquer biblioteca virtual e até mesmo nos arquivos referentes à Terra, depositados nas colônias de Marte.
Ou trata-se de um cronista? Afinal, além de migalhas do oficial, o relato do meu singelo comerciante tem vida e traz um pouco do ar empoeirado do dia. Ali, descubro como milagrosamente conseguiu escapar à tragédia, acompanho seu périplo pela cidade e me surpreendo com sua habilidade de narrador. Observo como descreve a incredulidade de seus contemporâneos, seguida pelo medo crescente. Pressinto o terror face à constatação de que a vida não poupa nada e ninguém. Desço os olhos pelas linhas, noto a sinuosidade nada comum das frases denunciando o gesto trêmulo do instante da escrita que perpassa pelas letras - parece-me que redigiu seu testemunho em meio à catástrofe -, quando, misturado à descrição do desespero das pessoas, um fato singular, miúdo, ínfimo, me chama a atenção: meu relator observou uma revoada de pássaros, notou que acabavam de banhar-se no pequeno lago da praça onde estava e comparou a fadiga humana à paz das aves.
Leio mais algumas linhas e constato que meu narrador é arguto observador: fala das árvores que instantaneamente perderam o verde em razão do pó que se espalhou pelos arredores, do barulho, das buzinas, de gritos lancinantes, choro, pessoas desorientadas, uma mãe que arrasta a criança feito um pacote procurando ganhar distância, às pressas... um cão, que perdido no redemoinho da confusão, move a cabeça tranquilamente para a direita e para a esquerda. Meu narrador vai mais além e conjectura com o cão que, capcioso, lembra-se do pregador e diz: vanitas vanitatum, et ominia vanitas.
Considero a sensibilidade do meu narrador e pergunto: trata-se de um historiador ou de um cronista? Longe, ouço o miado de um gato. Logo depois, sinto o peso e o caminhar sobre meu corpo. Adormecido ainda vejo planetas, constelações, estrelas... meus olhos ardem tal a luminosidade de uma nebulosa... Acordo!
Constato que minha intenção era falar sobre os chroniqueurs e historiens medievais, mais precisamente sobre algo que lera a respeito de Grégoire de Tours, chroniqueur medieval e, num átimo, viajei três séculos adiante, sentido contrário!
Sem pretensão de achar a justa resposta porque, afinal, o cansaço teima em bater à porta, lembra-me de ter lido que Heródoto, considerado o primeiro historiador, ao justificar a escritura de seu livro História, disse que ele era o relato de sua busca para impedir que o passado dos homens não fosse esquecido com o tempo e , assim, evitar que conquistas admiráveis​​, tanto do lado dos gregos quanto dos bárbaros não se perdessem na poeira dos tempos e, o mais importante, contar a causa da guerra a que eles se entregaram.
Muitos comparam o trabalho do historiador ao do jornalista de investigação. Mas, isso é para os teóricos na matéria. Por hora, lembrei-me de assuntos que li na imprensa nos últimos dias e, confesso, fariam a alma de Heródoto cair ao chão: em Itamaracá, no Pernambuco, mãe mata o filho por engano com facada no coração - o que, nas mãos de Ésquilo, resultaria numa boa tragédia; um estudo divulgado na revista Current Biology afirma que pessoas com inclinações políticas liberais têm cérebros estruturalmente diferentes dos conservadores; cientistas tchecos encontraram o que acreditam ser o esqueleto de um homem pré-histórico que viveu entre 4.500 e 5.000 anos atrás e - detalhe, afirmam que o dito-cujo era homossexual ou transexual... um caso de precisão cirúrgica surpreendente, enfim, de fazer inveja aos nossos olhos mal treinados que, não raro, trocam gato por lebre.
E la nave va! O Grégoire de Tours que espere!


Imagens: 1. La Bataille de Crécy, em 1346, Illuminure; 2. Nebulosa Solagrafix. Todas disponíveis no Google Images.


quinta-feira, 21 de abril de 2011

Chateaubriand, os sinos e o mau humor

Em um capítulo de Le Génie du christianisme que trata da submissão do Paraguai, Chateaubriand nos conta como os jesuítas tiravam proveito da sensibilidade dos selvagens à musica para convertê-los. Acompanhados de alguns neófitos - não coloco aqui catecúmenos porque duvido que alguém continuaria a deslizar os olhos linhas abaixo -, os missionários a bordo de suas pirogas subiam pelos rios entoando cânticos. Os neófitos, então, cantavam para o ares à maneira dos pássaros que, privados da liberdade, são usados como isca e cantam para atrair outros pássaros selvagens - e livres. Os guaranis, escondidos entre os arbustos da margem, jogavam-se na água e seguiam a barcaça encantada. Pura magia e a força pagã da música a serviço da igreja.
Acontece que o encantamento não ocorria somente entre os selvagens. Os cristãos dos tempos anteriores à Revolução também eram sensíveis a esse tipo de sedução. O capítulo dos sinos, que abre a quarta parte do Génie, mostra como a vida cotidiana de outrora era ritmada, de modo quase mágico, pelo apelo dos sinos das igrejas. Nele há inúmeros exemplos de como os sinos ligam uma comunidade ao seu espaço e como suas badaladas pontuam sua temporalidade e ritmam seus acontecimentos: os dobres fúnebres, os carilhões convocando paras as festas, os sinos de alarme ou encarregados de transmitir uma mensagem moral aos homens, convocando-os a olhar ao próximo e a Deus, enfim, uma forma de comunicação que recolhia afetos e sugeria condutas.
Este capítulo de Chateaubriand vem dos Natchez, segundo informa uma carta de 19.10.1799, escrita no momento em que o autor extrai do livro indígena as passagens que farão parte de sua apologia cristã. René, relato inicialmente inserido nos Natchez, tornou-se referência no Génie, contendo um parágrafo dedicado aos sinos, uma história misturada de magia religiosa e felicidade nostálgica: "Les dimanches et les jours de fêtes, j'ai souvent entendu, dans le grand bois, à travers les arbres, les sons de la cloche lointaine qui appelait au temple l'homme des champs. Appuyé contre le tronc d'un ormeau, j'écoutais en silence le pieux murmure. Chaque frémissement de l'airain portait à mon âme naïve l'innocence des moeurs champêtres, le calme de la solitude, le charme de la religion, et la délectable mélancolie des souvenirs de ma première enfance. [...] Tout se trouve dans les rêveries enchantées où nous plonge le bruit de la cloche natale..."[1]
Machado de Assis, em crônica de 22.9.1872, ao recontar as notícias da semana relata que em Porto Alegre havia grandes queixas contra as badaladas por ocasião das cerimônias fúnebres, indício de que o romantismo de Chateaubriand já perdia força entre o populacho, uma vez que até entre os fluminenses os toques fúnebres no sul soavam algo exótico. O cronista, nostálgico, relembra 1854, à época em que as badaladas fúnebres foram extintas na Corte e um folhetinista do Jornal do Comércio publicara algumas belas linhas pedindo a vinda de algum Chateaubriand. Machado, desencantado, conclui: "Não é preciso dizer que o Chateaubriand não veio." O autor francês e seus sinos são lembranças recorrentes nas crônicas machadianas, prova do intenso exercício de memória literária do cronista.
O porquê dos sinos? Simplesmente porque vieram à tona ao longo da semana. Em Piracicaba, interior de São Paulo, um aposentado que - não vou citar o nome em protesto a favor dos sinos - acordava às cinco da manhã com enxaqueca, revoltou-se contra os sinos. Segundo ele, não precisava levantar tão cedo, mas os sinos do Mosteiro das Carmelitas o obrigavam a isso. O que fez o ilustríssimo senhor? Entrou com uma ação na justiça contra o Mosteiro e calou os sinos. Em meio a todo esse imbróglio há algo que escapou à impressa e me chamou a atenção: a razão da enxaqueca. Afinal, não poderiam ser os sinos, uma vez que começavam a badalar às cinco, justamente quando o cristão - se é que professa o credo, era expulso dos sonhos.
Como em toda polêmica, os contrários ganham voz de ambos os lados: as carmelitas acenam com a tradição, que para muitos é garantia de boa música, e os incomodados agitam laudos, provando que as badaladas atingem 57 decibéis, portanto, são consideradas poluição sonora. Divergência de vilarejo, naturalmente, pois se a regra fosse nacional e valesse nos grandes centros, eu entraria, agora, com ação para que se proibisse o trânsito de ônibus e motos na Nove de Julho. Os fogos em dia de jogos, arrrrhhhhhh!!!!, nem se fala! Final da história? Mais ou menos: o fato é que o juiz da cidade reconsiderou o caso e as freiras tiveram que se adaptar a esses novos tempos em que já não existem mais aposentados carolas. Agora, as badaladas devem soar a partir das sete da manhã. As freiras que antes tocavam os sinos dez vezes ao dia, agora só poderão fazê-lo no dia 30, Dia do Jubileu, quando sugiro que o dito aposentado mantenha estoque razoável de analgésicos.
Caso semelhante ocorreu em Santos Dumont, Minas Gerais. Lá, o morador diz que o sino é muito irritante. Como toda moeda tem dois lados, outros acham que ele é que é muito irritante. Até aí, nada demais, são opiniões e, como dizia Pascal, vérité au deçà des Pyrénées, erreur au delà! Porém, o que agrava a questão em Santos Dumont é a origem do povoado, sesmaria ligada à capela filial da matriz do Engenho do Mato, município de Barbacena. A situação sine qua non para que o povoado pudesse se desenvolver foi a provisão de 27.2.1778, que autorizou a remoção da capela de São Miguel e Almas do sítio de João Gomes para o de dona Clara Maria de Jesus. Em 27.6.1827, a capela de João Gomes foi restaurada e o povoado começou a crescer; em 31.12.1867, foi elevada à categoria de paróquia e paro por aqui, porque minha intenção fora mostrar que o tal cidadão não só é irritante, mas desconhe o berço em que foi badalado, digo, embalado.
Parece-me que aos sinos, hoje, foi reservado apenas São João del-Rei. Lá, são tradição e exatamente por isso a cidade recebeu a alcunha de Terra onde os sinos falam, já que é a única no Brasil onde os sinos ainda podem ser ouvidos de dia e à noite, com grande variedade de toques. Muitos desses toques tiveram sua origem em Portugal e foram trazidos pelos colonos. Conta-se que em 1740 foi trazido um toque do vaticano, criado pelo Papa Bento XIV e colocado em vigor pelo Bispo de Mariana, em 1757. O toque que relembra a morte do Senhor ainda é executado nos dias de hoje. Muitos outros toques foram criados pelos próprios sineiros, uma tradição passada de pai para filho. E isso só existe porque em São João del-Rei os problemas de enxaqueca e estresse não atingem as alturas - dos sinos.
É certo que em tempos de celulares e torpedos, a linguagem dos sinos soa obsoleta e, no caso das carmelitas e de Santos Dumont, não soa. Para por fim à prosa, foi o mau humor que calou os sinos.

[1]René in Oeuvres Illustrées de Chateaubriand. Paris: Hippolyte Bolsgard, Éditeur, 1852, p. 2.
Para saber mais:
1. Sobre Santos Dumont acesse: http://www.ferias.tur.br/informacoes/3813/santos-dumont-mg.html;
2. Sobre os dinos de são João del-Rei acesse: http://www.sjdr.com.br/historia/igrejas_monumentos/sinos/indice.html

Imagens: 1. Sino do Château de Caumale; 2. Mosteiro das Carmelitas, em Piracicaba; 3. François-René de Chateaubriand.


quarta-feira, 13 de abril de 2011

Na falta de comoções públicas: documentos das Forças Armadas, a guerra franco-prussiana e a Comuna de Paris

Machado volta e meia dizia que os mortos governam os vivos. Passados cento e poucos anos, nada mudou. Na falta de comoções públicas, como as ocorridas na semana passada, é preciso recorrer aos espectros. Hoje, falou-se da divulgação de milhares de documentos de inteligência liberados pelo comandante da Aeronáutica ao Arquivo Nacional. Segundo a imprensa, os documentos revelam que as Forças Armadas monitoravam partidos, políticos e organizações de esquerda após o fim da ditadura militar, mais precisamente até os anos de 1994, o que significa dizer que enquanto a modelo Lílian Ramos era flagrada na Sapucaí, sem calcinha, ao lado de Itamar Franco, você, leitor rebelde, caso fizesse parte de alguma organização de esquerda, bem poderia ter um marmanjo na sua cola. Questão de escolha.
E os fantasmas não param por aí. Há dias, também comentou-se sobre a cerimônia saia justa, no Salão Nobre do Planalto, quando Dilma Rousseff não recebeu continências durante a solenidade de promoção de oficiais das Forças Armadas: limitaram-se ao usual aperto de mãos. Nada mais civilizado, afinal, ali, ninguém morre de amor por ninguém. Imagens para posteridade? Qual nada! Ao contrário de Ronaldinho Gaúcho, intruso na ABL, que exibiu às desbragadas a medalha Machado de Assis, Dilma Rousseff, discreta, não se deixou fotografar ao receber a Ordem da Defesa, maior comenda da área.
Na França, também os mortos vieram à vida. Em 5 de abril uma questão bastante incomum foi colocada aos deputados franceses: se concordavam, ou não, de tornar públicas as discussões à porta fechada de seus predecessores durante a guerra franco-prussiana de 1870 e às vésperas da Comuna de Paris.
A exumação desses relatórios data de 2009 e é fruto da curiosidade de um funcionário do serviço oficial da biblioteca e dos arquivos que, um dia, percorrendo entre os arquivos antigos, deu de cara com os documentos das sessões, catalogados como comité secret, algo que nenhum historiador jamais mencionara. Preservadas por cento e quarenta anos no fundo de um cofre localizado no subsolo do Palais-Bourbon, as 723 páginas, hoje submetidas ao voto dos deputados, remetem os franceses a alguns dos momentos mais dramáticos da época.
Um deles foi em agosto de 1870, quando a oposição republicana a Napoleão III pediu - sem sucesso - uma mobilização maciça dos parisienses contra os prussianos. O outro, ocorreu em 22 de março de 1871, quando alguns homens de boa vontade, capitaneados por Clemenceau, tentaram um conciliação impossível entre Paris e a Assembleia Nacional, instalada em Versailles, afim de evitar que a capital caísse nas mãos daqueles que viriam a ser conhecidos por communards.
No final da tarde do dia 5, pouco antes das cinco da tarde, por unanimidade, os deputados franceses autorizaram a publicação dos anais destas sessões realizadas à porta fechada por seus predecessores. Nos termos do artigo 51, parágrafo 3o do Regimento da Assembleia Nacional, esta votação foi a condição sine qua non – ainda que os fatos datem de 140 anos - para que a publicação dos documentos fosse possível. No total, as 723 páginas são o resultados de quatro comités secrets, tendo os três primeiros ocorrido em agosto de 1870 e o último em 22 de março de 1871.
Segundo alguns privilegiados que já os analisaram, eles contêm alguns belos trechos de eloqüência e, percebem-se, claramente as vozes de alguns jovens parlamentares que teriam futuro brilhante: Jules Ferry, Léon Gambetta e Georges Clemenceau. Durante a apresentação dos documentos, que se seguiram à votação, em um salão do Hôtel de Lassay, o presidente da Assembleia Nacional, Bernard Accoyer (UMP), informou que os textos serão publicados no próximo outono pelas Editions Perrin. Os documentos terão anotações e introdução do historiador Eric Bonhomme, especialista em Terceira República.

Como se vê, na falta de comoções públicas, um bom fantasma, se não assusta, faz passar o tempo.


Imagens: Le Siège de Paris, de Jean-Louis Ernest Meissonnier, de 1870 e cartaz do filme de Peter Watkins. Todas disponíveis no Google-Images.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Ronaldinho Gaúcho na ABL: que merda é essa?

Não! É o apocalipse! Confesso: não pude esperar e tenho que dar meus pitacos. Ontem – acreditem - Ronaldinho Gaúcho recebeu da Academia Brasileira de Letras (ABL) a mais alta honraria da casa, a medalha Machado de Assis, que a Academia, num oportunismo atroz, vangloriou-se por tê-la entregue, pela primeira vez, a um jogador de futebol.
Logo que ouvi a notícia – surpreso - tive frêmitos: temi por Machado. Em que posição ficaria agora, depois de ter se remexido no túmulo? E mais: incomodou-me o forte zumbido que teimava soar em meus ouvidos: o que tem a ver alhos com bugalhos - aqui, na versão nada preconceituosa e provavelmente mais próxima do jogador: o que tem a ver o c... com as calças?... Claro, hoje corri para ver o que se publicou a respeito.
Soube que entre imortais da Academia, sempre pomposos, o jogador, de camisa semi desabotoada exibia seus grossos cordões de ouro, encimados pela boina preta que não retirou da cabeça, certamente uma forma delicada de sugerir aos anfitriões a modernização dos antigos, clássicos, pesados e nada confortáveis fardões, por eles adotados. Mas o que estaria ele fazendo em campo tão diverso do seu, ao lado de uma entourage que incluía a cúpula do Flamengo?
Ora, a Academia, ciosa em manter-se nas colunas dos jornais, tal qual as celebridades BBBs, lembrou-se de que um de seus membros um dia fora torcedor flamenguista. Exumaram José Lins do Rego e, de quebra, envolveram Machado no imbróglio.
Os 110 anos do nascimento do escritor paraibano dispensaram colóquios de estudiosos, contudo, receberam sinceras homenagens que, nas palavras da ilustre presidente do Flamengo, a Sra. Patrícia Amorim, enalteceram a figura do escritor. Segundo ela, com seus “romances e poemas”, Lins do Rego conseguia transmitir a alegria de ser rubro-negro. Dizem que a filha do escritor, Maria Cristina, diplomática, ao saber da novidade, deixou escapar que seu pai jamais escrevera poemas. Mas isto não é nada: o que interessa é que Marcos Vilaça, presidente da ABL, esteve exultante e, de mais a mais, as dúvidas deverão ser dirimidas pela Sra. Amorim, conhecedora de Lins do Rego. Penso que toda a homenagem veio porque o autor de obras como Fogo Morto e Menino de Engenho, morto em 1957, entre os anos de 1942 e 1954, foi secretário-geral da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), atual CBF.
Talvez o mais lúcido durante o galanteio tenha sido o próprio jogador que, ao ser inquirido sobre qual era seu livro preferido, reconheceu que o mundo literário não é sua praia. Enfim, fez aquilo que sabe, driblou a imprensa e respondeu: “Não tenho livro preferido, não é muito a minha, mas adorei a homenagem e vou pegar umas dicas com o pessoal daqui.” E acrescentou: “Cultura nunca é demais.”, dicas, aliás, logo atendidas, pois Vilaça presenteou o jogador com um livro de Lins do Rego.
Vilaça prosseguiu: “Queria aproveitar este momento para fazer a iniciação literária do Ronaldinho com Flamengo é Puro Amor, de José Lins do Rego, que era apaixonado pelo clube.” Flamengo é Puro Amor é uma coletânea de 111 contos e crônicas do autor, todas sobre futebol. No livro, Lins do Rego revela os bastidores dos clubes e seus dirigentes - especialmente do Flamengo - seu clube do coração, além de contar histórias sobre alguns ídolos de sua época como Heleno de Freitas, Ademir, Jair da Rosa Pinto e Zizinho.
Até aí, tudo bem, ótimo, maravilha: mas tinham que meter Machado no meio?


Imagem: disponível no Google Images. Caricatura de Baptistão.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Zadig et Voltaire, de Frédéric Lefebvre

E a bola da vez na internet foi o senhor Frédéric Lefebvre, Secretário de Estado do Comércio, da França. O vídeo em que ele aparece declarando ao LeFigaro.fr qual é o seu livro de cabeceira bombou na rede. Trata-se nada mais nada menos da célebre obra clássica Zadig et Voltaire. Ops! Não seria Zadig, de Voltaire?
Convencido da importância do livro em sua vida, Lefebvre afirma: "É uma lição de vida, mergulho nele muito frequentemente". A confissão ocorreu por ocasião da Journée du livre politique. Logo, a gafe do secretário, que transformou o conto filosófico de Voltaire em marca de prêt-à-porter, foi parar na rede e está disponível em dezenas de sites e blogs.
Quanto à obra do Secretário de Estado, trata-se de Le mieux est l'ami du bien, Éditions du Cherche Midi, apresentada ao longo da journée, e que acaba de ser selecionada para o Prix Edgar Faure, que premia o melhor livro político literário do ano.
A origem de certas passagens de seu livro já tinham, há alguns dias atrás, criado certo burburinho na rede. O livro inclui passagens e explicação técnicas, muitas das quais, afirma-se, escritas através da técnica copiar-colar da Wikipedia, e, um ou outro trecho, da Agence France-Presse, diga-se, em ambos os casos, sem qualquer menção de seus autores, como reconhece sua editora.
Numa saída à francesa o Secretário afirma: "L'origine des citations figure expressément dans le livre. Celles qui ont échappé à ma vigilance seront réintégrées par l'éditeur lors de la réimpression" (A origem das citações aparece expressamente mencionada no livro. Aquelas que escaparam à minha atenção serão reintegradas pelo editor à época de uma reimpressão).
De fato, quanto ao seu livro favorito, a confusão de Lefebvre foi mínima: o Secretário trocou um de por et, e com isso citou a rede de lojas prêt-à-porter para mulheres chamada Voltaire et Zadig. Foi o suficiente para que internautas brincassem com o falha do Secretário.
Quanto ao copiar-colar, se fosse na USP, ah! o Rodas, sem dúvida, mandaria para casa (rsrsrs).
Algumas sugestões dos internautas para livros de cabeceira:

. La vache qui rit, de Victor Hugo . L'Audi 7, de Homère . Auchan en emporte le vent, de Margaret Mitchell . L'assassin habite au Century 21, de S.A. Steeman . Triste Tropicana, de Claude Lévi-Strauss . Le Spécial K, de Dino Buzzati . Le désert des steaks tartares, de Dino Buzzati . Le Cidre, de Corneille . En rouge et noir, de Stendhal . Ainsi parlait Zara, de Nietzsche . Les justes prix, d'Albert Camus . Les frères Bogdanov, de Dostoïevski . L'école des fans, de Molière . Le Monde selon Gap, d'Irving . Le dernier livre, de Christine Mango . Ushuaïa, mon amour, de Duras . Les Versace sataniques, de Rushdie . Les Fables de Bataille et Fontaine . Les Misérables, de Hugo Boss . Omelette, de Shakespeare . Alpha Roméo et Juliette, de Shakespeare . Légumes du jour, par Boris Viande . La possibilité d'une île flottante, de Michel Houellebecq (variante fumeuse : La possibilité Dunhill) . Philippe Bouvard et Pécuchet, de Flaubert . On ne badine pas avec Zemmour, d'Alfred de Musset . 1664, de George Orwell . Le Malade Imagin'R , de Molière.

E la nave va...

Imagens: 1) Cartaz da Zadig et Voltaire; 2) Raymond Savignac (1907-2002), caricature de Voltaire sur l'affiche annonçant une exposition de Voltaire à la Bibliothèque nationale, 1979.(Musée de la publicité, Paris).


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Tragédia em Realengo: pare o mundo que eu quero descer

Há uma semana coleciono notícias; não aquelas que movimentam os chopins do Planalto e, portanto, escorregam para a manchete do dia. Procuro as míudas, as que encantam a musa da crônica, vária e leve com seus sapatinhos de cetim, como dizia o grande mestre.
Ao longo da semana, ao deslizar os olhos pelas páginas, dois assuntos me chamaram a atenção: a escola e os animais, - e acreditem - infelizmente desprovidos do encantamento que, em geral, trazem consigo. Hoje, mesmo que tivesse deixado passar Engenho de Dentro, não sei se conseguiria saltar em Realengo. Estou enojado, cansado, assustado. Talvez nunca mais queira saber do próximo baile em Realengo. Pobre Realengo. Que Deus o proteja, e a seus filhos.
A escola foi notícia durante a última semana: em Embú, São Paulo, a polícia fez a reconstituição da morte de um garoto de 9 anos, assassinado dentro de uma sala de aula, em setembro último. E o que há de novo? Mistério, mistério - relembrando o célebre bordão da personagem de Miriam Pires. A escola e os pais do aluno - supostamente autor do crime - sentaram em cima do rabo e dão tempo ao tempo, como habitualmente se diz lá no interiorzão. Mas não foi só isso, nananinanão: houve também o vídeo relatando um caso de bullying homofóbico, gravado no território aberto de uma escola pública de Alagoas e que vazou na internet. As cenas são revoltantes. Embora o aluno já tivesse um pedido de transferência de turma negado pelo diretor da escola, este desconhecia qualquer agressão. Quem o viu na TV, se compadece. Uma ingenuidade que dá gosto! No Pará, após uma briga, um rapaz perfurou as costas de um de seus agressores - dentro da escola. Na Bahia, no bairro de Imbuí, um aluno de 11 anos foi covardemente espancado por seus colegas no pátio da escola. Em São Paulo...
Quer saber? Cansei. Vou apelar para o famoso copiar-colar para que você, leitor, tenha uma ideia dos absurdos da semana (na pesquisa, hoje, colei só as notícias da primeira página!!!): Adolescente de 14 anos agride professora de escola pública ‎EPTV - 3 horas atrás Professora é agredida por aluno após pedir silêncio em SP‎ - Terra Brasil Professora diz que foi agredida por garoto de 8 anos‎ - Estadão 'Estou com medo', afirma professora agredida após voltar a escola ...‎ - Adolescente de 14 anos agride professora de escola pública em ... ‎O Globo - 1 hora atrás Professora é agredida durante briga de alunos no interior de SP‎ - G1.com.br Estudante leva facada de colega em escola ‎Diário do Pará - 20 horas atrás Aluno esfaqueado por colega em sala de aula recebe alta de hospital‎ - G1.com.br Vítima de bullying deve deixar curso em instituição ‎Jornal A Cidade - 1 dia atrás Faculdade afasta suposta agressora de aluna vítima de bullying‎ - Folha.com Aluna agredida em Ribeirão Preto será ouvida nesta quarta-feira‎ - EPTV Universitária que teve nariz quebrado por colegas não voltará às ...‎ - O Globo Aluno agride colega ‎Correio da Manhã - 34 minutos atrás Agredido a soco regressa às aulas ‎Correio da Manhã - 4 horas atrás Imbuí: Aluno é agredido em escola de engenharia ‎TÔSABENDO.COM - 2 dias atrás Vítima de bullying diz que quase desmaiou ao ser agredida em escolaProfessor agredido por aluno em Setúbal ‎TVI24 - 1 dia atrás Aluno agride professor a soco‎ - Ciberjunta Soco de aluno deixa professor com traumatismo craniano‎ - Jornal de Notícias.
E o Conselho Nacional de Educação (CNE) preocupado com as Caçadas de Pedrinho... Faz-me rir! Talvez agora, você, leitor, tenha entendido o porquê dos chopins. Ah! Aqui em São Paulo (notícia velha, do dia primeiro) os ex-deputados paulistas ainda mantêm os apartamentos funcionais. E você contribuinte, faz o quê? Paga! Paga! Paga!
Bem, havia mencionado os animais e não o fiz em razão das alegrias que eles nos proporcionam, mas, infelizmente pelo mal que o homem lhes proporciona. Parece-me ainda ouvir a voz de Schopenhauer: "O Homem tem feito na Terra um inferno para os animais". E não é para menos: em Jaguariúna, próximo a Campinas, foi notícia o pequeno Burne, um filhote de pit bull encontrado todo queimado com - suspeita-se - óleo quente. Recolhido por dois funcionários da prefeitura perto de uma linha férrea, o cãozinho não conseguia abrir os olhos e nem se mexia. Levado à clínica do veterinário Danilo Testa, o filhote estava em estado de choque, desnutrido e desidratado. Também pudera! Deu de cara com um animal racional, de rapina.
Indignado, o irmão do veterinário postou fotos de Burne no Facebook e um vídeo no YouTube, que recebeu cerca de dez mil acessos num só dia.
Segundo li, Burne está sendo disputado por interessados na adoção, há até gente do exterior querendo adotar o bichinho, que talvez venha a ser o mascote da clínica. De acordo com Daniel Testa, o tratamento do animal foi difícil. O cachorrinho chorava muito quando era necessário manipular as feridas. Quase um mês depois, Burne já consegue se alimentar e passa o dia brincando com uma poodle que também vive na clínica. Na próxima semana, Burne passará por uma cirurgia plástica reparadora para a reconstituição das pálpebras. O objetivo é uma correção fisiológica para a lubrificação dos olhos, hoje feita à base de colírio. O sofrimento de Burne ainda não acabou: a cirurgia deve demorar cerca de 50 minutos e deve ser utilizada pele do dorso para o enxerto. A chance de sucesso é de 95%.
Foi notícia também o caso da ursa ocorrido na fronteira da cidade de Belgorod, oeste da Rússia. Um cidadão ucraniano transportava o animal sob um cobertor em sua van, sem qualquer documentação. O animal pertence à espécie dos ursos marrons sírios, ameaçada de extinção e, desnecessário dizer, não têm o hábito de passear de van, sobretudo, cruzar fronteiras sem passaporte. O dito cujo afirmou trabalhar num circo; a ursa, disse, é como alguém de sua família. Parece-me que lá, como em algumas cidades brasileiras, o homem, indolente, ainda ganha o vil metal às custas de animais que, duvido, tenham justa recompensa.
Notícia boa para eles? O cavalo, em Goiânia: resolveu tomar um banho e não conseguiu mais sair da piscina. Precisou da ajuda dos bombeiros. Final feliz.
Final feliz não foi o que proporcionou o passageiro que passou por Engenho de Dentro e resolveu saltar em Realengo. A tragédia foi imensa. Crianças assassinadas dentro de uma escola: doze almas já partiram, sem contar os feridos. O porquê? Muito se especula, pouco se sabe. Os traumas? Para os envolvidos e suas famílias, talvez sejam para uma vida toda. Inacreditavelmente, no meio deste imbróglio todo, o carniceiro do Realengo deixou uma carta doando sua casa para uma associação de proteção aos animais. Freud help us.
Pare o mundo que eu quero descer, afinal, como dizia o pregador, vanitas vanitatum, et ominia vanitas. E a crônica deixou de ser leve.

Imagens: Todas disponíveis no Google Images: 1) Burne com o veterinário Murilo Testa, publicada no site da UOL Notícias, sem créditos; 2) a ursa e 3) o chopim do brejo, pássaro que "obriga" outro pássaro a cuidar de seus ovos e pune os que se recusam a fazê-lo. Os ninhos rebeldes têm seus ovos destruídos e acabam produzindo menos filhotes. Algo parecido com que o governo faz com você e seu dinheiro. A foto é de celsoparis@gmail.com (2008) disponível também no Google Images.