Revista Philomatica

terça-feira, 27 de julho de 2010

Machado de Assis sob a aura de André Roswein

Não raro, quando estamos às voltas com o ensino e aprendizagem de um novo idioma, deparamo-nos com as tais expressões idiomáticas. Na transposição de um idioma para outro algumas sofrem transformações radicais; outras, no entanto, não se sabe bem por quê, guardam certas semelhanças. Vejam, por exemplo: voltar à vaca fria, expressão que comumente usamos para retornar ao assunto principal duma conversação; os franceses, na mesma situação, valem-se de revenons à nos moutons (voltemos aos nossos carneiros). A fauna permance e não se sabe qual o motivo. Poderíamos muito bem dizer - voltemos ao jardim, voltemos à sala, o que falávamos mesmo?, voltemos ao início, ou ainda, voltemos ao que eu tinha pensado... Mas essa, leitor, só vale para o enunciador, o narrador, o que tem a chave do segredo, enfim, é uma saída extremamente egoísta. A não ser que o outro resolva dividir o que pensava ou pensou.
Pois vá lá, em épocas em que o politicamente correto é dividir tudo, desde a terra até os óculos e a escova de dentes (eca!), dividamos as ideias, o que pensamos, ainda que o assunto não tenha lá a profundidade exigida dos acadêmicos, ávidos por citações e pela verborragia que condiciona o leitor - não raro - ao inelutável vai-e-vem, ou seja, desvendar Proust, Barthes, Céline, Stendhal, Guimarães Rosa, Clarice, Machado, Céline, ou ou ou ou ou passa a ser um eterno retorno ao início do parágrafo, um martírio. Leia o grande teórico LUCOLI (Uma espécie de anagrama, claro; afinal, não vou dar minha cara a bater por causa de um comentariozinho qualquer! rsrrsrsrs) e vejam só!!! Aposto, leitor, que concordará comigo. Como já disse, aqui terás não mais que um comentário e, em se tratando de tal, não espere muito.
De fato, pensava em comentar sobre Octave, personagem central de Confession d'un enfant du siècle, sobre o qual já foram escritas milhares de páginas. mas, vejam só, assim como Brás Cubas soube pelo pai que sua possível noiva chamava-se Virgília a partir do verso de Virgílio que escrevinhava sobre o papel, deu-se o mesmo comigo: parti do Octave, de Musset e, à força dos homônimos, acabei em André Roswein, de Octave Feuillet. Ignore você, leitor, a relação personagem/autor, autor/personagem.
Ocorreu-me, num estalo, a quantidade de referências que Machado de Assis faz à personagem André Roswein, de Feuillet. Obra e personagem transitam pelas crônicas, críticas e poesias de Machado a tal ponto que Sílvio Romero[1] ao pensar a poesia machadiana, tasca: "A poesia para ele é uma abstrata mansão, onde habitam a esperança e a saudade, é um refúgio tranqüilo, um sossegado asilo, terra pura e santa, onde há um suave remédio para os tristes, onde a musa verte seus bálsamos e converte as lágrimas em pérolas, onde se transforma o viver, acalma-se a tristeza, a dor se abranda e cala, canta a alma e suspira; enfim, alguma causa de comparável à Alemanha por que sonhava a ingênua moça, amante de André Roswein, no drama Dalila de Octave Feuillet!...
Farpas de Sílvio Romero à parte, revenons à nos moutons: quem é André Roswein? Roswein, protagonista do drama Dalila, de Feuillet, é um jovem artista que se apaixona por Marthe (Amélia, na versão brasileira), filha de Sertorius, seu antigo professor de música. A história tem início justamente em dia de grande ansiedade para Roswein e todos os outros, afinal, é a apresentação da primeira obra do antigo pastor de cabras. Roswein promete a Marthe que ao voltar, caso obtenha sucesso, aproveitará o momento para pedir sua mão em casamento. Como em toda boa trama, no outro extremo acha-se Carnioli, protetor de Roswein e louco amante da música. Carnioli, grande inimigo do casamento, acredita que as esperanças matrimoniais do jovem maestro será o suicídio do artista, a quem ama como a um filho. Na esperança de dissuadí-lo da ideia, faz entrar em cena a princesa Falconieri, mulher experiente, sedutora e de muitos amantes que, como bem afirma Dumas[2], será "Le vampire à la robe de dentelles et au collier de diamants [qui va soucer] a sucé tout le sang du beau jeune homme, tout le génie du pauvre maestro..."
Como toda boa história romântica há encontros e desencontros, lágrimas, sofrimento e a morte dos jovens amantes fadados a perecer pelo abandono: Marthe, ante a indiferença de Roswein e esse, que segundo Carnioli, não era um músico, mas a própria música, com o desprezo de Falconieri, que parte para Gaëte com um tenor que interpretava Boadbil.
O interessante é comparar a crítica feita por Alexandre Dumas para Le Monte-Cristo, Journal Hebdomadaire, em 18/6/1857 e a de Machado de Assis para a Revista Dramática[3], no Diário do Rio de Janeiro, em 13/4/1860. Ambos, em princípio, demoram-se mais em contar a trama que tecer um comentário crítico da encenação teatral em si. Machado opta por um viés ligado ao mito bíblico da mulher fatal, Dalila, e, a partir disso, reconta o drama de um André Roswein meio ingênuo e enredado pelos enleios da Dalila Falconieri, porém, entre a fragilidade da arte e um amor fadado à ruína, opta por comentar a derrota desse amor. Dumas, contudo, escolhe um tom em que procura mostrar a arte que se exaure frente às intempéries do amor. Roswein de maestro prodígio, termina com o coração e talento corroídos pela paixão e ao fim de seus dias "n'est plus qu'un homme ordinaire, ne pouvant pas exécuter l'opéra qu'on lui a payé d'avance, et vivant, comme les domestiques, au compte de la princesse".
Porém, ambos os críticos são unânimes quanto ao vigor literário da obra de Feuillet. Machado inicia sua crítica afirmando que "Octave Feuillet, à imitação de muitos, escreveu a Dalila, como um romance em diálogos. É assim o Aldo de Georges Sand, e as cenas dramáticas de Alfredo de Musset", conclui. Dumas começa por afirmar que o Vaudeville apresenta uma obra distinguée et vivante e completa, cheio de entusiasmo: "Comme œuvre, c'est remarquable, distingué, littéraire surtout; l'auteur y a mis tout son tempérament, c'est maladif et fiévreux, enfant et vieillard. Si quelque chose fait défaut dans l'œuvre, ce n'est ni le sentiment, ni la délicatesse, ni la poésie. C'est la virilité ! Le drame est taillé en plein dans le manteau étoile de la fantaisie, il côtoie presque constamment ce précipice, qu'on appelle en art, le faux, mais s'il y penche souvent.' il n'y tombe jamais"[4].
Bref, mais uma prova de que mesmo em pensamentos, ao divagar, sempre há uma boa razão para se voltar às vacas frias e aos moutons!


Imagens: Samson et Dalila (1882), de Gustave Moreau; Octave Feuillet e página de Le Monte-Cristo, o jornal editado por Dumas.

[1] ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 5ª Ed. Organizada e prefaciada por Nelson Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. V. 5, pp. 16171638.
[2] DUMAS, Alexandre. Le Monte-Cristo, Journal Hebdomadaire de romans, d’histoire, de voyages et de poésie. Paris : Délavier, Éditeur, 1857, p. 139-143.
[3] ASSIS. Machado de. Crítica Teatral in Obras Completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Editores, 1955, p. 153-162.
[4] DUMAS, Alexandre. Op. cit., p. 139-143.

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