Revista Philomatica

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Nem só de livros vive o homem

Ao narrar a tentação de Cristo, no deserto, Mateus retoma o Mestre naquela fala que já foi tão versejada ao longo da circulação das ideias literárias: "Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus". Hoje retomo Antonio Candido ao falar de José Mindlin: "Nem só de livros vive o homem", isso porque José Mindlin, bibliófilo inigualável, sempre ao contar suas aventuras para conseguir um exemplar raro, tinha uma história que vinha de arrasto. Tive a oportunidade de ver, há cerca de dois anos, esse dois mestres, juntos, em conferência na Universidade de São Paulo. Lá, Mindlin contou como conhecera Guimarães Rosa, em Paris. Lá também, relembrou a saga para conseguir a primeira edição de O Guarany, de José de Alencar. Mindlin, em seu livro Uma vida entre livros, Reencontros com o tempo, conta como começou a juntar livros e o fez não só por notar sua importância do ponto de vista físico, mas também pelo histórico, ou seja, a qualidade do exemplar, a importância da primeira edição, sua raridade e sua beleza. José Mindlin morreu hoje, aos 95 anos. Uma perda irreparável. Era leitor refinado. Dizia: "Desconfio dos livros de sucesso, e desses, em geral, só vou ler os que tiveram um tempo de decantação. Se os próprios escritores, especialmente os principiantes, pusessem o livro na gaveta, depois de escrito, por um ou dois anos, e depois disso vissem se o texto resistiu a uma releitura - é provável que a massa imensa de livros que se publicam no mundo se reduzisse substancialmente". Tinha afinidade por Montaigne, Proust e Guimarães Rosa. Dizia também que o coração batia mais forte quando, depois de anos de procura, encontrava um livro raro. Colecionou livros a vida inteira. O resultado? Uma das mais importantes bibliotecas privadas do país, que começou a formar aos 13 anos e, em 2006, doou os cerca de 45 mil volumes, entre coleções e folhetos, para a Brasiliana USP, no campus da universidade, em São Paulo. Não teve tempo de ver a biblioteca concluída. Foi-se Mindlin, mas ficaram seus livros e suas histórias. Em Uma vida entre livros, conta as aventuras para comprar O Guarany, primeira edição, de 1857. Tudo começa em 1960, no Rio, quando um grego oferece o exemplar por mil doláres. Nenhum colecionador se interessou em comprá-lo. Mindlin, quando soube, já não mais conseguiu falar com o tal grego, que tinha ido embora. Ficou por quase dez anos atrás do grego até que, um dia, o exemplar aparece no catálogo de um leilão na Inglaterra. Mindlin manda um telegrama para um amigo livreiro, pedindo que efetuasse a compra. Ansioso, pergunta ao amigo quanto ele achava que custaria o livro: "Umas vinte libras", responde o outro. No dia do leilão, Mindlin, que estava em Nova York, telefona ao livreiro para saber da compra. "Ah, não comprei, porque tinha falado a você em vinte libras, de modo que, quando chegou a sessenta, parei, pensando que você poderia ficar aborrecido." - "Bem, aborrecido estou agora", retruca Mindlin. Em 1977, em Paris, num leilão de livros raros, lá estava novamente o grego, que ora pediu muito mais pelo livro do que havia pedido há anos atrás, no Rio. De posse do livro, o bibliófilo volta para o Rio com o exemplar "no colo". Na ponte aérea Rio-São Paulo, ainda no avião, abre a pasta e constata que o livro não estava mais lá! Acredita que adormeceu, deixando o livro cair no vôo Paris-Rio. Ao chegar em casa, disse à Guita, sua mulher: "Sabe o que comprei em Paris? O Guarany", "Não diga!". "É, mas já perdi." Felizmente, Mindlin deixara suas informações na Air France que, três dias depois, lhe informou que o livro tinha fora achado - tinha ido para Buenos Aires, destino final do vôo. Vale a pena a leitura das aventuras bibliófilas de Mindlin. Mindlin partiu mas ficaram seus livros e suas histórias, afinal, nem só de pão vive o homem, mas também de bons livros e boas histórias.

Nota: Uma vida entre livros, Reencontros com o tempo, José Mindlin, EDUSP; Companhia das Letras, 1997.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

E Péricles, o que acharia disso?

Hoje, ouvi muito rapidamente que a Grécia está sob uma greve geral. Pra ser sincero, não prestei lá muita atenção aos problemas dos gregos. Talvez pela distância e por acreditar que, cedo ou tarde, às horas mortas, os deuses hão de se voltar a favor dos gregos e parar com suas brincadeiras de lá do alto do Olimpo. Soube, depois, que a greve que se arrasta fez com que Atenas andasse mais devagar e mais confusa nesta quarta-feira, razão de uma manifestação contra o plano de austeridade do Executivo de Papandreou. Soube ainda que o resultado prático mais visível da greve geral foi apenas acentuar o caos no trânsito da capital. Nada que um paulistano não esteja habituado e, diga-se, sem greve alguma. Na Grécia, o caos estendeu-se aos transportes públicos, serviços de saúde - só funcionaram os plantões de emergência, algumas lojas e agências bancárias que encerraram mais cedo seu expediente, além, é claro, aos aeroportos. Talvez o barômetro que fez com que a notícia se espalhasse mais rapidamente. Diz-se que o Governo grego tem sondagens que mostram que é apoiado, no momento, pela maioria da população. E a inexistência de uma adesão maciça à iniciativa de ontem, em Atenas, pareceu comprová-lo. Esse é um lado da moeda; do outro, os sindicatos, que anunciam uma adesão de mais de 90% dos trabalhadores à greve. Assunto chato, não? Vamos ao detalhe que me deixou curioso: a Acrópole está fechada para visitantes devido à greve. Não deu outra: como num flash vi Péricles se desdobrando para convencer os trabalhadores de que o corte das pedras era de suma importância. Trabalho árduo; o sindicato dos operários das pedreiras era o mais atuante e radical. O nome do presidente do tal sindicato, desconheço, assim como não faço ideia se, já naquela época, essas associações sobreviviam à custa da habitual graninha surrupiada do salário dos trabalhadores. Talvez não, talvez fossem subvencionadas por Címon, político rival de Péricles. Címon, era um homem grandioso que ganhou fama entre o povo ao usar o seu próprio dinheiro para ajudar os atenienses que precisavam de assistência. Talvez distribuisse bolsa família aos operários. Enfim, para contornar Címon, Péricles gastou dinheiro público para construir novos projetos, o que em tese, foi pior que Címon, pois o dinheiro era público, exatamente como se faz hoje em dia, aquém do Atlântico. Mas Péricles não perde seu mérito, já que foi o maior responsável por muitos dos projetos de construção em Atenas, entre os quais, as estruturas sobreviventes da Acrópole e também por ter encarregado o escultor ateniense Fídias, como o supervisor do programa de embelezamento da cidade. Ah, meu Deus! Já havia programas tipo belezura. Lembram-se disso? Ainda assim, louros para Péricles. A greve há de se acabar e as ruínas estarão de novo à mostra. E do belezura, o que ficou? Quem é paulistano sabe: poucas árvores que, pobres, a atual administração faz questão de ignorar. Se não é Deus para mandar a nossa chuva de todo dia...

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Vida pregressa; juízos posteriores

Diz o dito popular que espelho não mente. Por culpa dele Branca de Neve embrenhou-se pela mata e refugiou-se junto dos anõeszinhos. Culpa dele também é o sobressalto que a gente leva ao remexer em fotos antigas. O espelho é traidor e enganoso. O reflexo diário dá a falsa impressão de eternidade, de que a imagem ali refletida é permanente e, se altera, a mudança é tão lenta e suave quão imperceptível. De fato, o que está em jogo é a roda do tempo, inabalável, constante e... imperdoável. Nada é perene. Mas deixando a imagem de lado, já experimentou você, leitor, folhear revistas antigas, ainda que sejam de quatro ou cinco anos atrás? É inacreditável a velocidade com que as coisas mudam. Hoje, me caiu nas mãos uma delas. Duas constatações: algumas coisas se alteram muito rapidamente, bem mais que outras, prova de que nem o tempo é imparcial. A lógica parece ser esta: aquelas que mais nos incomodam parecem persistir. Veja-se: em 2004, discutia-se o oportunismo de uma panelinha de políticos que pleiteavam a reeleição para a presidência do Senado e da Câmara. Lá continuam ainda, Sarney, Renan Calheiros e, acreditem, Collor, que fez há tempos sua rentrée na política nacional; falava-se também dos gorós homéricos do presidente, o "cara", enfim, uma história sobre uma reportagem publicada no New York Times que, nota-se, mobilizou a esquerda brasileira a ponto de querer expulsar o jornalista autor da matéria; comentava-se também as juras de amor de Deborah Secco a seu novo amor com direito à tatuagem no pé e tudo; mexicaravam ainda sobre Gisele Bündchen e Leonardo de Caprio. Como se vê o pessoal da política tem tutano bem mais resistente, já a tchurma das artes é volátil, move-se muito mais rápido, hoje tudo está diferente! A tatuagem acredito foi apagada e, no caso dos mexericos, são outros os protagonistas.

Mas, creiam, o que me chamou mais a atenção foi um artigo que encontrei, de 2008, sobre o lançamento do livro Cartas a Favor da Escravidão (Hedra; 160 páginas, em edição organizada pelo historiador e jornalista Tâmis Parron), publicadas originalmente entre 1867 e 1868 como Novas Cartas Políticas, de autoria de José de Alencar. O objetivo central desses escritos - uma série de panfletos endereçados, na forma de cartas públicas, ao imperador Dom Pedro II, que vinha expressando simpatia pela causa abolicionista – era esse mesmo: defender o trabalho escravo, que só o Brasil, na América, ainda sustentava. O autor do artigo diz categoricamente que depois da leitura do livro, sobra pouco do autor cearense, além de afirmar que Alencar era um escritor quando muito medíocre e um ser humano abominável. Alencar, autor do projeto de construção de uma literatura nacional e consagrado como um dos principais autores do romantismo, principalmente pelos romances indianistas Iracema e O Guarani, embora mostrasse conhecido empenho escravista, penso, não pode ter sua literatura minimizada por razões únicas de sua infeliz opinião. Repito: pensamento escravista abominável sim, mas não a literatura, essa é esplêndida. Iracema perdurará como exemplo singular de obra romântica brasileira.

Afinal, quem já não deu suas pisadas na bola? Em se tratando de intelectuais, a história, aos poucos, encarrega-se de fazer uma faxina, seja ela moral ou ética. Convém lembrar que muitos, quando jovens, disseram tolices aos montes e adotaram ideologias que, tempos depois, revelaram-se besteiras homéricas. Muitos se arrependeram, outros persistiram até a velhice em seus equívocos. Machado de Assis, por exemplo, foi censor do Império quando estava no Conservatório Dramático e, diga-se, um crítico rigoroso e feroz. Jorge Amado. Ah, Jorge Amado, para quem não sabe, defendeu Hitler e Josef Stálin. Fez propaganda do nazismo nos anos de 1940; virou redator da página de cultura do Meio-Dia, jornal de propaganda nazista no Brasil. E mais: não só tentava arregimentar intelectuais para a causa nazista - tal qual Oswald de Andrade, como também escreveu um livrinho chamado O Mundo da Paz, inteirinho para adular Stálin. Graciliano Ramos afirmava que o futebol era uma moda passageira e que o esporte combinava com a personalidade "bronca" do brasileiro. Gilberto Freyre, em sua dissertação de mestrado apresentada na Universidade de Columbia, elogiou o esforço dos "cavalheiros da Ku Klux Klan americana" que à época já executava negros, chamando-os de "uma espécie de maçonaria guerreira", criada pelo sulistas contra a humilhação imposta pelos americanos do Norte. Gregório de Matos, longe da fama de escritor beatnik que tem hoje, sobretudo na Bahia, era um dedo-duro. Em 1989, o crítico literário João Adolfo Hansen, da USP, defendeu que essa fama do escritor diz mais sobre a Bahia de hoje que aquela de seus dias. No livro Sátira e o Engenho, o crítico mostra que o poeta odiava negros, pobres, índios e judeus - afinal, o que se esperava de um fidalgo português daquela época. Em seu poema Milagres do Brasil São, Gregório de Matos afirma que ser mulato é "ter sangue de carrapato." Ora, por que então condenar peremptoriamente Alencar? Dê uma chance ao gajo! E fim de prosa.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

P.S. - Se você não compreendeu teu corpo nem meu texto, rent a pig.*

Ao falar de Clarice, dias desses, lembrei-me de Hilda Hilst. Coincidência ou não, há um espetáculo em cartaz sobre a escritora. Ontem, ao ver o espetáculo Hilda Hilst, O Espírito da Coisa, no Teatro Bella, protagonizado pela atriz Rosaly Papadopol, minhas lembranças entraram em ebulição e, quando uma dessas lembranças literárias me vêm à mente, remexo em livros, releio trechos, enfim, faço um exercício de memória. Invariavelmente, me recordo dos porquês, isto é, se a compra foi casual e impulsiva - como comumente me acontece e, acredito, também a todos aqueles viciados em livros, lembro-me da livraria em que estava, com quem estava, talvez um presente e com uma dedicatória tão enigmática quanto os poemas de Hilda"- "... De ares e asas/ Não percebo nada./ Mas atravesso abismos e um vazio de avessos/ Para tocar a luz de teu começo." e etc, etc. Isso mais uma vez me ocorreu assim que peguei um dos Cadernos de Literatura Brasileira, editado pelo Instituto Moreira Salles e dedicado à Hilda Hilst. Durante o espetáculo minhas lembranças começaram a enredar os fios e a produzir tramas. Em determinado momento, a atriz volta-se para o público e dali brota Hilda. __ 50 anos! Escrevo há 50 anos e só agora eles me descobrem! Em outro trecho: ___ 41 livros, já escrevi 41 livros. Ninguém me lê, a crítica diz que o que escrevo é difícil de ser compreendido. "Não entendo por que vocês ficam tristes quando eu digo que abandonei meu trabalho".
Impossível não me lembrar de Stendhal e de Machado de Assis. É só ler o prólogo de Memórias póstumas de Brás Cubas. Lá, Machado relembra Stendhal por ter este confessado haver escrito um de seus livros para cem leitores. Machado, por outro lado, arrisca um público leitor de talvez cinco. Nota-se a angústia que perdura na alma do autor logo após vencida a barreira da página em branco (o mesmo dá-se com Hilda). Como o fio da trama percorre e liga Hilda a Machado, que por seu lado já havia enredado Stendhal? Fácil. Em literatura, existe um mecanismo chamado intertextualidade; embora carregado de diferentes sentidos e utilizado à exaustão até se tornar uma ideia ambígua do discurso literário, apresenta a vantagem de reagrupar manifestações de textos literários e verificar suas ligações e dependências recíprocas, de maneira a sinalizar a presença de um texto em outro texto. Metaforicamente definido por diálogo, trama, tecido, biblioteca, etc., essa manifestação, ao mesmo tempo em que concorre para a tessitura de um novo texto, marcando assim, a construção de sua própria originalidade, se inscreve na genealogia de entrelaçamentos e filiações que ao longo da história permitiu a literatura nutrir-se de si mesma, de sua história.
Enxertos que se mostram no texto referência, citação, alusão, pastiche, paródia, são práticas intertextuais comumente inscritas no repertório da prática literária, cujos traços se agrupam em torno da ideia de memória, a lembrança nostálgica referenciada que leva a literatura a sua própria retomada e com isso se articula, na transposição, com um novo sistema significante, o que resulta em sistema operatório que denuncia a co-presença entre dois ou mais textos. Com isso, tem-se uma trama cujos nós são feitos ora por Stendhal, ora por Machado, ora por Hilst, todos, temerosos da indiferença do público.
Hilda Hilst, acredito, ainda não é conhecida do grande público, permanece ao alcance de algumas categorias marginais de leitores - professores, amantes e estudantes de literatura. A escritora é comparada a Guimarães Rosa e considerada pela crítica especializada como uma das mais importantes vozes da língua portuguesa do século XX. Nascida em Jaú, iniciou na literatura em São Paulo, quando publicou o livro de poemas Presságio (Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1950). Em 1965 mudou-se para Campinas, onde construiu a Casa do Sol, em terras da fazenda de sua mãe. Ali, Hilda dedica-se exclusivamente a trabalho literário, produzindo mais de 80% de sua obra. Dona de uma linguagem inovadora, escreveu poesia, teatro e ficção e ganhou os principais prêmios literários em todos os gêneros. A Casa do Sol, residência da escritora até sua morte, em 2004, hoje abriga o Instituto Hilda Hilst.
Título: * P.S. - Se você não compreendeu teu corpo nem meu texto, rent a pig. - Cascos & carícias: crônicas reunidas, 1998. - Hilda Hilst.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Ouviu o batuque e colocou seu bloco na avenida

Este Carnaval se superou. As escolas são inúmeras, no Rio e em São Paulo. O ritual? Pode-se dizer que é o mesmo: mulatas, muitas mulatas, muitas mulatas loiras - feito Geisy (aquela do vestidinho vermelho), samba e muito batuque, mas muito batuque mesmo, no rádio, na televisão (Ah, meu Deus!) e na rua. Pra ser sincero, o menos ruidoso é o da rua. Aposto, leitor, que deduziu que não gosto de Carnaval. Errou. Acho a festa divertida, encantadora; só meu dou o direito de guardar certa distância, apreciar da janela, às vezes. Da janela vejo outra São Paulo, não aquela da Ponte Estaiada ou das grandes imagens panorâmicas veiculadas pela vênus platinada (dizia-se assim há uma década). Hoje, acreditem, o céu de São Paulo apareceu, na telinha, todo cheio de estrelas. Desliguei a TV e corri para a janela à procura de vaga-lume ou, quem sabe, uma panapaná? Que nada! Da minha janela vejo a praça. Da minha janela vejo a copa das árvores, algumas. Há uma clareira, claro, deixada pela queda de outras tantas árvores que já se foram, aos poucos, com as chuvas intermitentes. Também aos poucos chegam os garotos, em malta. Da minha janela vejo a cola ser irmamente dividida. Da minha janela vejo o crack ocupar o pão na hora da partilha. Da minha janela vejo as escadarias do Viaduto Nove de Julho e nelas as nádegas brancas, negras, pardas e o amarelo, o rosa, o vermelho e o azul das cuecas e calcinhas dos transeuntes que ali defecam emporcalhando o nariz de outros passantes que por ali transitam. Tudo civilizadamente. Da minha janela vejo o bando de garotos se espalhando entre os carros que aguardam no semáforo. Mudo de lugar. Vou para a varanda. Olho para a direita, dois carros de policiais, três deles conversam pacificamente, talvez contando as estripulias dos blocos na avenida; à esquerda, o bando se divide, enquanto alguns se posicionam na faixa de pedestres, abrem os braços e começam a ensaiar, digamos, um sambinha geral, os outros, sorrateiramente, se debruçam dentro dos carros dos motoristas desavisados que, incautos, deixaram-se levar pela alegria do Carnaval. Da minha varanda ouço um sinal de buzina. A polícia, inacreditavelmente, olha para o lado contrário, quem sabe imaginando o quê... Talvez o som tenha partido de um trio-elétrico... Pena que a gente está de farda, senão bem que podíamos nos divertir. Também, essa escala de serviço é de matar! Chega ano passado que trabalhei o Carnaval inteiro. E eu, cara? Fui escalado para plantão na Praia Grande. Você sabe, lá, agora, o bicho pega. A buzina insiste. Um dos policiais se curva para dentro da viatura; ao sair, matava a sede, bebia uma água deliciosamente! A buzina insiste. O grupo da faixa de pedestres continua a sambar. Dois minutos e tudo acaba. O bando desaparece. O farol abre. Confusão. A buzina persiste. Gritos. Os policiais continuam placidamente a conversa. Alguém atravessa a Santo Antônio correndo, gesticulando. Os policiais movimentam-se rapidamente, correm, atravessam a rua e, cinco passos à frente, veem o braço colorido pelo vermelho do sangue, imóvel e apoiado sobre a buzina. O barulho incomoda. O policial afasta o braço de sobre a buzina. Silêncio. Um grito chama por socorro. Nas trincheiras da alegria, alguém morria. Desvio o olhar, vejo as plantas na varanda e, inacreditavelmente, sobre o parapeito, um louva-deus que ouviu o batuque e colocou seu bloco na avenida. Saio e vou para a janela. Da minha janela vejo São Paulo.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O índio colonial

"Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico, [...], e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom número de cidadãos." Isto que você acaba de ler, leitor, está na contra capa de um pequeno livro, leve e agradável que me caiu nas mãos. Trata-se do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, do jornalista Leandro Narloch. De maneira irreverente, o autor discorre sobre temas centrais da nossa formação cultural, precisamente aqueles maquiados pela história oficial ou por historiadores militantes, que em determinado momento acharam por bem refazer o traço à sua moda. Não é preciso ir muito longe. Veja-se o noticiário atual. Quiçá daqui há cem ou duzentos anos o adjetivo guerreira que a máquina governamental tenta agora imprimir à imagem da candidata governista não perdurará? Para isso, basta repetir e repetir à exaustão. Já mencionei aqui o lema de Joseph Goebbels, ministro do Povo e da Propaganda de Adolf Hitler, de que uma mentira repetida várias vezes, torna-se uma verdade. Aí, quem sabe, o adjetivo guerrilheira, fruto do passado da candidata, não será mera curiosidade a ser escavada por um jornalista curioso feito Narloch? Mas voltemos ao livro. Ali, o autor provoca ao desenvolver temas como: Zumbi tinha escravos, A origem da feijoada é europeia, Aleijadinho é um personagem literário, Antes de entrar em guerra, O Paraguai era um país rural e burocrático... etc. Por aí tem-se uma ideia da afronta à mens sana da história oficial e do intelectual engajado. Com disse o autor: é pura provocação. Li o primeiro capítulo dedicado aos índios, no qual afirma-se que quem mais matou índios foram os próprios índios, colocando em cheque a ideia vendida de que foram os portugueses os algozes responsáveis pela extinção quase que total dos indígenas. Para isso o autor recorre a estudos recentes de historiadores e estudiosos que se deram ao trabalho de fuçar em Arquivos Históricos e de lá trouxeram dados que realmente dão o que pensar. Veja-se, por exemplo, o caso dos índios: segundo o autor, à época das bandeiras paulistas, a distinção entre bandeirantes paulistas e índios era difusa. Muitos daqueles que chamamos de bandeirantes eram mestiços de primeira geração, pois tinham mãe, tios e primos criados nas aldeias e pareciam mais índios que europeus. Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista, era filho de europeu com uma índia e sequer falava português, assim como quase todos naquela época, pois se comunicavam em tupi-guarani, a língua geral. Narloch cita ainda José de Anchieta que, já em 1565, percebeu que os tupinambás, tradicionais adversários dos colonos, repentinamente se mostraram dispostos a se aliarem aos portugueses. O motivo, segundo Anchieta, era "o desejo grande que têm de guerrear com seus inimigos tupis, que até agora foram nossos amigos, e há pouco se levantaram contra nós." Enfim, o que se pode destacar como dado mais interessante é o fato de que a história oficial afirma que os portugueses reduziram o número de nativos a 10% do original (de cerca de 3,5 milhões, em 1500, para 325 mil) e, ao afirmar isso, se esquecem do índio colonial, que os historiadores oficiais ignoram. Ao menos, jamais ouvi expressão similar de professores em minha época de escola. O índio colonial era aquele que abandonava a aldeia para se estabelecer junto dos portugueses, nas vilas. O índio colonial, personagem esquecido da história brasileira, tem símile exemplar na figura do índio Arariboia, cacique da tribo dos timiminós, que ajudaram os portugueses a expulsar os franceses e tupinambás do Rio de Janeiro. Vencida a guerra, muitos temiminós e tupiniquins foram batizados e adotaram sobrenome português. Arariboia virou, então, Martim Afonso de Souza (em homenagem ao primeiro colonizador do Brasil) e ganhou a sesmaria de Niterói, para onde transferiu sua tribo. Tempos depois, em 1644, Brás de Souza reivindicou ao Conselho Ultramarino o cargo de capitão-mor da aldeia de São Lourenço, valendo-se de seu principal argumento - o nome da família. O pedido foi aceito pelo Conselho pois era "descendente dos Souza que sempre exercitaram o dito cargo"; em 1796, é a vez de Manoel Jesus de Souza pleitear o posto de capitão-mor, e, o mesmo Conselho, autorga-lhe o cargo visto "sua descendência nobre." Passados cem anos, os descendentes de Arariboia já não se viam como índios, eram os Souza e faziam parte da sociedade brasileira. Hoje, muito provavelmente, continuem a se identificar da mesma maneira e sequer têm ideia de que um dia foram filhos de Arariboia. Bem, para encurtar a prosa, o Guia de Narloch rende boas horas de leitura.

Nota: Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, NARLOCH, Leandro; ilustrações Gilmar Fraga, São Paulo: Leya, 2009.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A política torva e sanhuda e a censura lulista

Machado de Assis, ainda jovem, no início de sua carreira jornalística, foi convidado por Quintino Bocaiúva a colaborar para o jornal Diário do Rio de Janeiro. Isso ocorreu lá pelos idos de 1861. No Diário, Machado gozava de relativa liberdade ao produzir os Comentários da Semana, a série de crônicas ali redigida e que, não raro, chegou a substituir o editorial do jornal. Nelas, Machado fala das novidades teatrais e literárias e, sobretudo, de política, assunto que vai absorver o essencial de sua atividade de jornalista a essa época. Acontece que a essa mesma época, houve a aproximação dos liberais e conservadores moderados, com a formação da Liga Progressista e, em maio de 1862, o governo é posto em minoria de um voto. Talvez por isso o Diário do Rio de Janeiro, jornal liberal, em manobra tática, tenha decidido moderar os ataques. O Machado corajoso, idealista, engajado e ativo "se mostrou desgostoso da política, da qual se afastou ou da qual foi afastado", conforme afirma seu biógrafo Jean-Michel Massa. Em crônica de 10.10.1864, Machado retorna ao Diário com uma nova série de crônicas - Ao Acaso, publicada entre os anos de 1864 e 1867. No entanto, nesse novo espaço reservado ao folhetim, onde o cronista fala de literatura e das artes em geral, é possível sentir sua autocensura quando, sem querer, resvala na política. Nessa crônica, por exemplo, é explícito: "Aí vou eu entrando pelo terreno da política tôrva e sanhuda. Ponto final ao acidente."

Ora, hoje, quase um século e meio depois, a tecnologia é enorme, mas acreditem, a censura, tal qual erva daninha, persiste. A liberdade de imprensa convém quando satisfaz a interesses próprios, caso contrário, recorre-se à justiça - que nesses casos não usa aquela venda nos olhos e por isso se mostra nada imparcial, para fazer calar uns e outros que incomodam. Falo da censura ao blog de Adriana Vandoni (http://www.prosaepolitica.com.br/). Ali, a jornalista teve sua opinião censurada pelo atual governo e o leitor pode ver a tarja com o nome do juiz que aplicou a sentença. Até aí, nada de novo, o Estadão também está sob censura desde o escândalo que brotou do feudo do Sr. Sarney e família. Vê-se que sanhuda, ou seja terrível, é também a censura - temível e milenar. Dias desses comentei aqui sobre a destruição de livros, outra forma de censura.

Felizmente, hoje, essa censura sorrateira parece um tiro saído pela culatra que, quando não acerta o pé, vai direto para a cara mesmo. Explico-me, o texto censurado está pipocando na Internet, através de mailings. Por isso, resolvi reproduzi-lo abaixo. Ato solidário porque, afinal, também gosto de falar quando tenho vontade.

Veja abaixo o texto que foi censurado pelo governo Lula.
Publicado por Adriana Vandoni em 10 novembro, 2009.






Já tivemos presidentes para todos os gostos, ditatorial, democrático, neo-liberal e até presidente bossa nova.Mas nunca tivemos um vendedor de ilusão como o atual.
Também nunca tivemos uma propaganda à moda de Goebbels no Brasil como agora. O lema de Goebbels era uma mentira repetida várias vezes, até se tornar uma verdade.
O povo, no sentido coletivo, vive em um jardim de infância permanente.
Vejamos alguns dados vendidos pelo ilusionista.
O governo atual diz que pagou a divida externa, mas hoje, ela está em 230 bilhões de dólares.
Você sabia ou não quer saber?
A pergunta é: pagou? Quitou? Saldou? Não.
Mas uma mentira repetida várias vezes torna-se verdade.
Pagamos sim, ao FMI, 5 bilhões de dólares, o que portanto mostra apenas quão distante estamos do que é pregado para o povo.
Nossa dívida interna saltou de 650 bilhões de reais em 2003, para 1 trilhão e 600 bilhões de reais hoje, e a nossa arrecadação em 2003, ano da posse do ilusionista que foi de 340 bilhões, em 2008 foi de 1 trilhão e 24 bilhões de reais.
Este ano a arrecadação caiu 1% e, olhem bem, as despesas aumentaram 16, 5%.
Mas esses dados são empurrados para debaixo do tapete.
Enquanto isso os petralhas estão todos de bem com a vida, pois somente com nomeação já foram 108 mil, isso sem contar as 60 mil nomeações para cargos de comissão. É o aparelhamento do Estado. Enquanto isso os gastos com infra-esturutra subiram apenas 1%, já as despesas com os companheiros subiram para mais de 70%. Como um país pode crescer sem em infra-estrutura, sendo essa inclusive a parte que caberia ao governo? O PT vai muito bem, os companheiros estão todos muito bem situados, todos, portanto, estão for a da marolinha, mas nós outros estamos sentindo o peso do Estado petista ineficiente, predador e autoritário. Nas áreas cruciais em que se esperaria a mão forte e intervencionista do governo, ou seja, na saúde, educação e segurança, o que temos são desastres e mais desastres, mortandades. O governo Lula que fala tanto em cotas raciais para a educação, basta dizer que entre as 100 melhores universidades do mundo, o Brasil passa longe. Já os Estados Unidos (ETA capitalismo) possuem 20 universidades que estão entre as 100 melhores. O Brasil não aparece com nenhuma. São números.
O governo Lula também desfralda a bandeira da reforma agrária. O governo anterior fez mais pela reforma agrária que o PT, mas claro, esses números não interessam. Na verdade não deveriam interessar mesmo. Basta dizer que reforma agrária é mais falácia do que coisa concreta em beneficio da sociedade. Se querem saber, em todos os países onde houve reforma agrária, logo em seguida se tornaram países importadores de alimento. A ex-URSS, Cuba e China são exemplos claros do que estou afirmando.Mas continuamos com o discurso de reforma agrária. A URSS quando Stalin coletivizou a terra, passou a ser importadora de alimento e consequentemente a ser um dos responsáveis pelo aumento do preço do alimento no mundo. Entendam. Cuba antes da comunização com Fidel, produzia 12 milhões de toneladas de açúcar do mundo, hoje não produz nem 2 milhões. A Venezuela tão admirada por Lula produzia 4 mil kg de feijão por hectares, depois da reforma agrária praticada pelo coronel Hugo Chaves só produz 500 kg por hectares. Mas os socialistas não sabem nem querem saber dessas questões, o trabalho que dá para produzir, para gerar alimentos, isso porque eles tem a sociedade para lhes pagar o salário, as contas e as mordomias, além de dinheiro do contribuinte para colocar comida na sua mesa. Mas eles não sabem nem querem saber sobre o que é produzir, cultivar, plantar alimentos. Pois bem, os companheiros acreditam nos milagres da reforma agrária. Dizem que estão mudando o país. É para gargalhar. Agora incrível, e hoje está mais do que comprovado, que a diminuição dos impostos nos setores de eletrodomésticos fez o comércio e indústria neste setor produzir e vender mais. O aquecimento na venda de carros também surtiu efeito com a redução de impostos. O que fica definitivamente comprovado que imposto nesse país é um empecilho ao Progresso e ao desenvolvimento. Mas o discurso dos petistas é outro. Ou seja, uma mentira repetida várias vezes torna-se verdade.
É o ilusionismo de Lula.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A descoberta do mundo

Antes que você, leitor, diga qualquer coisa, adianto-lhe: o título é plágio. Trata-se do título do livro de crônicas de Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo, que me foi indicado por uma professora muito querida há cerca de dois meses. Esse é um fato. Hoje, ao sair para ir à universidade, aguardava para atravessar uma rua, quando presenciei diálogo que faz jus aquele ditado - as aparências enganam. Duas garotas comentavam o início das aulas. Uma delas, com uma braçada de livros, transpirava sob o sol forte, carinha de inteligente, protótipo de futura intelectual. Confesso: quase me prontifiquei para ajudá-la a carregar os livros. A outra, ignorava o sol por detrás de uns óculos enormes, estilo tela TV de plasma, mp4 ao pescoço, celular última geração nas mãos, calça cintura baixa, enfim, uma adolescente a quem os franceses classificariam de génération Y. Dedução clara: aquela que arfava sob o sol e o peso dos livros, só o fazia porque os tinha em alta conta. Ledo engano o meu quando a ouvi dizer que tinha uma porção de porcaria pra ler. E acreditem, entre as porcarias pude vislumbrar a capa do livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Confesso, doeu-me no coração, me resignei e disse pra mim mesmo em oração: as aparências enganam. Cabisbaixo, saí cantarolando: As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam - Porque o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões, canção eternizada na voz sublime de Elis Regina. Esse foi o outro fato e, dito e feito, quando algo assim me acontece, logo que chego em casa vou fuçar em papéis e anotações para relembrar coisas, reler um poema, um trecho de um livro...
Achei dados sobre A Descoberta do Mundo, primeiro trabalho de crônicas de Clarice, na verdade, seu cahier de voyage ao longo da vida: paixões, histórias, entrevistas, filmes, enfim, tudo o que participou de alguma forma de sua existência. São 468 títulos de crônicas publicadas aos sábados no Jornal do Brasil — certos dias agrupam várias delas, pequenas — entre 1967 e 1973 e, curiosamente, muitas delas poderiam ser republicadas hoje sem que ninguém percebesse a passagem dos anos. Algumas reflexões são atuais e atemporais. O livro é dividido em dias, como se fosse um diário, mas sempre entre realidade e ficção. Esta última, no entanto, revela com fidelidade as incertezas que cercavam sua enigmática personalidade. A vida cotidiana e os acontecimentos no Brasil daquela época permeiam a narrativa. Em meio aos devaneios permanentes que foram marca pessoal da autora, surgem importantes nomes da cultura brasileira e latino-americana.

Clarice foi uma dessas escritoras singulares. Há pouco mais de meio século, os ditos países desenvolvidos, os centrais, sob uma modernidade em expansão, cuja indústria e descoberta tecnológicas atingiam níveis nunca anteriormente vistos, já experimentavam o cansaço de sua narrativa e de sua linguagem, truncadas, carentes de ideias e de força, enfim, padecendo com a ausência de jogos teóricos e narrativos que pudessem, talvez, levá-los mais além. O sangue novo viria então da América Latina, onde a literatura trazia um sopro maior. Entretanto, enquanto países como México e Colômbia respiravam novos ares, o Brasil, permanecia deitado em berço esplêndido, ou seja, mostrava-se impermeável a tudo o que não vinha de si mesmo e vivia em completa autofagia.

Até meados do século 20, o grande nome da literatura brasileira continuava sendo Machado de Assis, ainda nosso grande autor, o que inaugurou o romance psicológico em terras tupiniquins, através de uma narrativa incomum em que as dores da alma, pensamentos e sentimentos são contados de maneira inesperada. Pode-se afirmar, porém, que Clarice Lispector é filha direta e legítima de Machado de Assis e dona de obra misteriosa e ímpar. Li, meses atrás que o influente The New York Review of Books rendeu tributo a Clarice com um ensaio extenso de Lorrie Moore, a jovem deusa do minimalismo. O magnetismo de Clarice, segundo Moore, deve-se em parte aos franceses, sobretudo quando, nas universidades francesas, houve o apogeu dos estudos sobre a mulher. Hélène Cixous, que reuniu parte dos estudos sobre a obra da autora, recorda que, na França, a extraordinária abstração da prosa de Lispector fez com que a vissem como uma filósofa. Quando ela assistiu a um encontro de teóricos sobre sua obra, abandonou a sala na metade da homenagem, dizendo que não entendia uma só palavra do jargão. O fato é que Clarice, com sua escritura, rompia com todas as convenções da arte de narrar e arrancava de cada palavra um tremor secreto, enigmático.

Lembrei-me de Hilda Hilst. Talvez porque, assim como Clarice, que não suportou a tal conferência dos franceses, Hilda, certa vez abandonou o teatro em dia de estreia, exatamente quando um de seus textos era encenado. Segundo o ator que me contou a história, Hilda achou tudo muito chato. Não suportou a ideia de ver o que via em cena e saiu dizendo que não era nada daquilo. Pobre garota dos livros, infelizmente diz ser chato aquilo que desconhece e sequer vai descobrir que Clarice é muito mais que aquilo que levava nos braços.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A burka francesa

Houve épocas ao longo da história em que as pessoas foram bem mais místicas. É bem provável que se debatessem por um pedacinho de osso que considerassem sagrado, isso porque acreditavam que talvez o dito ossinho tivesse sido parte da costela, sei lá, de um daqueles santos que vagavam a pregar pelo deserto. Ou quem sabe de Adão. Por que não? Brigava-se por objetos místicos e míticos - como o Santo Graal, por pedaços de terra e, sobretudo, pelo direito de que a sua crença prevalecesse sobre todas as outras. A verdade, a sua verdade, leitor, naquela época tinha poder de fogo. E fosse você alguém poderoso, sua verdade abrasava todas as demais. De fato, nem precisava ser tão poderoso, bastava influência. Tanto é que a primeira das cruzadas, que na verdade precedeu a Primeira Cruzada, ocorreu em 1096 e foi chamada de Cruzada Popular ou dos Mendigos. Foi um acontecimento extra-oficial e organizada por um tal de Pedro, o Eremita, homem de retórica, cujas pregações comoviam multidões e que conseguiu reunir não só guerreiros, mas também uma multidão de mulheres, velhos e crianças. O bando, composto por milhares, antes de chegar em condições sofríveis em Constantinopla, massacrou judeus pelo caminho, pilhou e destruiu. Detalhe: o objetivo não eram os judeus, mas sim os muçulmanos, a bem da verdade, o intuito era claro desde o início. Nada era dissimulado. Isso foi só o começo. Houve um total de quinze cuzadas, sempre com o mesmo intento: liberar Jerusalém dos muçulmanos e liberar, nesse caso, equivalia a exterminar quem ali estava. Matou-se muito muçulmano e pereceu milhares de cristãos. O contexto histórico era outro, não dá para condenar este ou aquele. Um dado, porém, era claro: não se ficava em cima do muro. Era, ou isto ou aquilo.
Séculos mais tarde começamos a ficar mais hipócritas. Machado de Assis em crônica de 26.02.1893, fala do embate entre "a cruz e a crescente que levaram[ou] atrás de si milhares e milhares de homens", ao comentar as felicitações que o sultão da Turquia enviara ao Papa, por ocasião de seu jubileu. Como diz o cronista, é "Alá cumprimentando o Senhor, Maomé a Cristo".
Hoje, a hipocrisia campeia, está a solta. Socialmente, somos obrigados a posar de politicamente corretos. Não gostamos, mas gostamos, porque, se afirmarmos o contrário, corremos o risco de sermos taxados de reacionários ou de qualquer outro adjetivo excludente e pejorativo. Às vezes, porém, as diferenças culturais tão queridas e exaltadas em países como a França, por exemplo, sofrem uma rasteira. Veja-se o que ocorreu esta semana. O primeiro-ministro da França, François Fillon, assinou um decreto negando a naturalização de um estrangeiro que obriga a mulher, que é francesa, a usar um véu semelhante a uma burka. De acordo com o premiê, já que obriga a mulher a vestir uma espécie de burka, o homem em questão "não merece a nacionalidade francesa". E mais: segundo o ministro da Imigração, Éric Besson (nascido no Marrocos, de origem libanesa), foi constatado que o tal sujeito "privava a mulher da liberdade de sair com o rosto descoberto e rejeitava os princípios de laicismo e da igualdade entre homens e mulheres". Para Fillon, que baixou o decreto, há uma lei que diz que qualquer um que não aceitar os princípios do laicismo e da igualdade entre homens e mulheres terá a aquisição da nacionalidade francesa negada. Enfim, vale a verdade francesa. Condenar a França que já teve a Marianne esculpida à semelhança de Brigitte Bardot? Jamais. O curioso e o que se pergunta é: como um país que produziu Bardot, Channel e tantas outras, consegue, ainda hoje, trazer à baila assunto tão exótico? Ou será que a identidade francesa já não é mais a mesma e está miscigenada a tal ponto que, depois das aventuras coloniais, as diferenças não são mais tão exotiques, mas surgem como ameaça? Uma amiga que esteve recentemente em Paris comentou sobre uns arredores da cidade que estão mais para o Largo da Concórdia, aquele, ali, bem coladinho à Vinte e Cinco de Março, que para seu símile, a Place de la Concorde, situada ao pé da Champs-Élysées.
E a Suiça proibiu, semanas atrás, construções com minaretes em seu solo neutro e, na França, uma comissão parlamentar encarregada de estudar a regulamentação do uso do burka, recomendou a proibição da peça no funcionalismo público e... Bem, é esperar pra ver onde isso vai dar.
Imagens: Place de la Concorde, Paris; Pedro o Eremita, montado num burro, mostra o caminho de Jerusalém aos cruzados (iluminura francesa de cerca de 1270)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Decifra-me ou devoro-te

Conta a mitologia grega que a deusa Hera enviou a Esfinge (monstro feminino a quem se atribuía cabeça de mulher, peito, patas e cabeça de dragão, mas também com asas feito ave de rapina) para atormentar os habitantes da cidade de Tebas. A Esfinge estabeleceu-se em uma montanha, a oeste, nos arredores da cidade. Dali, assolava os habitantes da região devorando os seres humanos que lhe passassem ao alcance. Antes, porém, formulava enigmas aos viajantes. Aquele que não conseguisse decifrá-los era devorado pelo monstro. Um dia, Édipo cruzou com a Esfinge, que lhe propôs o seguinte enigma: “Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois e à tarde tem três?" Édipo respondeu corretamente e a Esfinge ficou tão furiosa que lançou-se de um rochedo e matou-se.
Ora, nesses tempos idos e fantásticos, era necessário um herói para decifrar, muitas vezes, o óbvio. Hoje, o mundo a nossa volta, embora careça de heróis, deve ser decifrado por todos - sem exceção. A chave para o enigma está ao alcance - a leitura, basta dela se aproximar. Não é à toa que Paulo Freire disse que "a leitura do mundo precede a leitura da palavra". Ler o mundo é saber compreender os saberes que acumulamos ao longo da vida. Esses conhecimentos, intrínsecos em nós mesmos, são olhares, sensações, gostos, cheiros, toques, enfim, nossos símbolos, aquilo que de certa forma nos coloca em ligação com nosso espaço e com o outro com quem partilhamos essa nossa visão espacial. É através da leitura de nosso mundo que passamos à leitura da palavra. A leitura da palavra, só adquire significado e significância se vier apreendida em sua relação com a leitura do mundo.

Houve épocas em que a leitura funcionou como instrumento de discriminação. Explico-me: até o início do século XIX, no Brasil, a bem poucos era assegurado o direito à escrita, portanto, à leitura. Os livros eram escassos. Com isso, os poucos privilegiados flanavam sobre a grande massa iletrada. Há histórias e histórias. Ontem, vi a retransmissão de um documentário intitulado Trópico da Saudade, que narra a aventura de Claude Lévi-Strauss, na Amazônia, por volta dos anos 30. Em certo momento Lévi-Strauss, conta o contato que tivera com os índios da tribo dos Nambikwara. Ali dera a um índio um carnet onde o índio começou a traçar algumas paralelas. Dias depois, ao visitarem outro núcleo de indígenas, Lévi-Strauss, como de hábito, levou presentes. Aquele índio quis fazer a entrega e fingiu ler a relação dos presentes sinalizando o que era para quem, numa clara intenção de mostrar aos outros que ele já dominava um código comum ao do antropólogo, o que o colocava acima dos outros.

Lembrei-me, então, de histórias em que a leitura fez a diferença. Em 2008, fez sucesso no cinema, O Leitor (The Reader), de Stephen Daldry, baseado no romance alemão Der Vorleser, de 1995, de autoria de Bernhard Schlink. A história narra a ligação do advogado Michel Berg, nos idos de 1958, com uma mulher mais velha, Hanna Schmitz, até o momento em que ela desaparece repentinamente de sua vida, para ressurgir, anos mais tarde, no banco dos réus de um tribunal de guerra alemão. Hanna era acusada de ter trabalhado para a SS durante a Segunda Guerra Mundial e mais, ser a responsável pela morte de dezenas de judeus. Ela bem que podia livrar-se de tamanha acusação, não fosse o segredo que guardava para si e que considera pior que seu passado nazista, aliás, um segredo crucial para a decisão da corte, o fato de não saber ler. Tivesse ela assumido que as palavras ainda se lhes mostravam enigmas e teria tido pena mais leve.

Outro filme que gira em torno da leitura é o francês La Lectrice, de 1988, uma comédia dramática de Michel Deville. Aqui é Constance, uma jovem que adora ler e enquanto lê, imagina coisas. No filme, Constance está lendo La Lectrice (A Leitora), um romance que narra as aventuras de Marie, uma jovem que ama tanto a leitura que resolve fazer disso sua profissão. Marie, através de um anúncio nos classificados, se oferece como leitora profissional. Clientes aparecem aos montes: um empresário empreendedor, uma viúva de um general, um adolescente deficiente físico, uma menina sagaz... e por aí vai. A leitura, porém, não se revela uma profissão relaxante. As palavras se mostram fortes, adquirem sentidos inesperados - duplos, e estranho poder. Constance se identifica a tal ponto com a personagem do romance que mistura as estações, ou seja, confunde as coisas e se perturba. Fim da prosa: valem os filmes e acima de tudo, vale a leitura, a única maneira de decifrar enigmas.