Revista Philomatica

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O carijó Essomericq e a Festa Brasileira em Rouen

Há dias, quando comentei as estripulias sexuais do Imperador D. Pedro I e, obviamente, os embaraços causados pela alta taxa de fecundidade em cama alheia, mencionei en passant um caso curioso nas crônicas da extensa relação Brasil-França - o do índio carijó Essomericq. Hoje, bati os olhos em um livrinho na estante, que adquiri ano passado, e me lembrei de uma outra história não menos singular: trata-se de Uma Festa Brasileira celebrada em Rouen em 1550, de Ferdinand Denis - Une fête brésilienne célébrée à Rouen en 1550; publicado originalmente em Paris no ano de 1850 e relançado em 2007, em edição bilíngue, pela Editora Usina de Ideias.
Não só porque são histórias que se sucedem, mas também porque são deliciosas, eis mais alguns detalhes: engana-se quem pensa que uma vez fincados os pés cá os portugueses não tiveram mais dor de cabeça. Pelo contrário, o imenso território recém descoberto despertava muita curiosidade e cobiça. E o povo daqui era uma atração a parte: os indígenas brasileiros provocaram forte impacto nos viajantes europeus ao se mostrarem desnudos, pintados, dançando ou, eventualmente, como bem retratou Hans Staden, devorando uns aos outros em pantagruélicos banquetes antropofágicos. Aliás, Staden, uma das personagens mais cativantes do Brasil colonial só não foi parte do cardápio porque além de se fazer passar por francês - povo que à época era aliado dos Tupinambás, chorava e gemia toda vez que ia ser devorado, o que fazia com que os nativos o considerassem impróprio para o abate. Cá entre nós, acredito que já desconfiavam que a adrenalina compromete a qualidade da carne.
Mas, voltemos a Essomericq. A presença dos franceses foi quase que simultânea a dos portugueses na costa brasileira. Em 1504, o navio L'Espoir, procedente da Normandia e capitaneado por Binot Paulmier de Gonneville, aportou em Santa Catarina. Ali, os marujos permaneceram por seis meses e estabeleceram relações - nesse caso, com os pacíficos índios carijós. O que se sabe dos primórdios desses contatos entre brasileiros e franceses deve-se, em boa parte, a uma espécie de boletim de ocorrência, dessa embarcação, que naufragou na volta à França, devido ao ataque de piratas no canal da Mancha. O documento trazia dados sobre um índio de 15 anos que fora levado por Gonneville, com a promessa de que seria devolvido a seu pai, o cacique da tribo carijó, ao fim de vinte luas, fato que jamais ocorreu.
Ao que tudo indica, o capitão tencionava trazê-lo de volta, porém, a empreitada mostrou-se uma peripécia desencorajadora e Essomericq, que havia escapado a nado, foi rebatizado Binot e como recompensa, casou-se com uma das nobres parentas do capitão, Marie Moulin Paulmier. O casal teve 14 filhos e o índio viveu na França por 95 anos. A história só veio à tona porque em 1658, Luís XIV instituiu o imposto de ádvena, uma taxa a ser paga por estrangeiros. Sem entender, os descendentes acabaram por reconhecer que tiveram um ancestral princípe das terras austrais, depois que o abade Jean Paulmier de Courtonne recorreu ao Almirantado de Rouen para obter uma cópia da declaração de viagem do capitão Binot de Gonneville. O bisneto de Essomericq interessou-se pela aventura do capitão e, não obstante a interpretação errônea de sua origem, haja vista que as duas expedições organizadas no século XVIII para atingir as terras austrais fracassaram, só muito mais tarde é que se veio saber que o avô de Paulmier de Courtonne era um habitante da terra dos papagaios.
Voltemos a Rouen: há quase cinco décadas, em 1550, a cidade em que Jeanne D'Arc foi queimada e que nos presenteou com Flaubert, foi palco de um evento inusitado, patrocinado por armadores e comerciantes da cidade, interessados em convencer o rei Henri II e a rainha Catherine de Médicis a investir mais nas expedições ilegais ao Brasil. Em 1 de outubro de 1550, quando da visita real à cidade, Henri II, Catherine de Médicis, Marguerite, a filha do rei, Mary Stuart, da Escócia, duques, condes, barões e embaixadores da Espanha, Inglaterra, Alemanha e Portugal, viram um espetáculo grandioso. Quem também esteve presente aos festejos foi Nicolas de Villegaignon, que aqui fundaria a efêmera France Antarctique. Em Rouen, entre carrosséis, desfiles, danças e outras diversões, viu-se a teatralização da vida selvagem brasileira. Às margens do Sena, o cenário era impressionante: havia árvores enfeitadas com flores e frutos do Brasil e a maquete de uma aldeia ali instalada estava repleta de saguis, papagaios e micos. Os índios, por entre as malocas, circulavam desnudos e bronzeados. Eram cerca de trezentos homens e mulheres. De fato, pelos menos cinquenta deles eram Tupinambás originários do Maranhão e da Bahia, que para ali foram levados especialmente para a comemoração. O restante da troupe era composta de marinheiros normandos que tinham bom conhecimento do Brasil - muitos, fluentes em tupi e habituados ao trato com os nativos. O elenco feminino ficou por conta das prostitutas locais.
Mais que uma exibição, o que se viu ali foi verdadeira mostra de como se passava a vida aquém do oceano. Índios e figurantes pescavam, caçavam, namoravam nas redes, colhiam frutas e transportavam pau-brasil. Houve inclusive uma simulação de ataque à aldeia tupinambá, que foi assaltada por um bando de índios Tabajaras, os quais, no Brasil, eram aliados dos portugueses. No combate simulado, árvores vieram ao chão, canoas foram viradas e ocas foram incendiadas. Ao fim do ataque, óbvio, os Tupinambás, aliados dos franceses, derrotaram os Tabajaras.
Durante muito tempo ainda os indígenas brasileiros continuariam despertando a curiosidade dos europeus, causando sensação e inspirando teorias. Três Tupinambás do Maranhão, em 1613, foram batizados e enviados à Corte francesa, onde exibiram seus dotes musicais, tocando maracas. A partir de então os contatos são sucessivos. Há Montaigne que, em Des Cannibalis, ao comparar os Tupinambás aos europeus, tenta mostrar a barbárie da ação destrutiva destes últimos. Depois vem Rousseau com o mito do bon sauvage, depois, bem depois, veio a literatura dos franceses. Em troca despejamos muito de nossa riqueza natural na Europa e também depois, bem depois, face à escassez de índios, e, quando passamos a crer piamente que quem não gosta de samba bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou doente do pé, mandamos o samba. E você, leitor, acha pouco?



Imagens: Figure des Brifilians, Fête brésilienne donnée à Rouen en l'honneur du roi Henri II, 1550; L’Entrée Royale d’Henri II et Catherine de Médicis à Rouen en 1550 e reprodução do livro de Hans Staden, canibais em ritual antropofágico.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Ainda sobre o romance

Há dias, questionava aqui sobre o que nos move à leitura; conclui pela pluralidade do romance, sua polifonia, e trouxe de arrasto a ideia veiculada por Ronald Shusterman, especialista em estética, de que "Ficção não é o conhecimento". Comentei que a questão provoca certa cisão entre especialistas dos mais diversos campos do conhecimento - literários, sociólogos, historiadores, cientistas cognitivos - entre outros, que comumente indagam sobre que tipo de conhecimento específico traz o romance. Finalizei admitindo que o romance é um veículo de autoconhecimento, não sem antes sinalizar que alguns romances podem reconstituir um universo histórico ou social, decodificar relações sociais e nos informar de maneira vibrante sobre a psicologia humana. Basta ler Zola, a Comédie Humaine de Balzac e tantos outros.
Mas, reduzir o romance a isto é muito pouco. Como já disse, ele é plural, porém, afirmar essa pluralidade implica admitir que o romance também é condutor de ideias científicas e filosóficas, ainda que dissimuladas ao longo de uma trama, despidas do rigor científico e inseridas em um discurso suscetível de incertezas, em razão da subjetividade do contexto. Mas é inegável que dali podem surgir personagens modelos que, coladas à teoria, funcionam como vulgarizadores de ideias filosóficas e científicas, às vezes, à primeira vista, enigmáticas, incompreensíveis, por que não, inalcançáveis.
Dentro desse contexto, por exemplo, L'Étranger, de Camus (1942) é de certa forma uma síntese dos principais temas da filosofia existencial: a solidão, a morte, a alteridade, o absurdo. Mas, como bem observou Roland Barthes[1], o que faz de L'Étranger um obra literária e não uma tese, é que o homem aí presente não se reduz ao seu caráter moral, mas traz consigo certo humeur, ou seja, no sentido literal da palavra, um estado de espírito ou de ânimo, uma disposição, enfim, algo emotivo que condiciona seu próprio caráter e a qualidade de suas relações ao meio em que vive.
Guardadas as devidas proporções, você, leitor, poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre a literatura de Clarice Lispector, que de certa maneira nos informa uma psicologia existencial porque ousou desvelar em seus escritos as profundezas da alma ou, como querem outros, porque soube exatamente como proteger-se em zonas de sombra, fazendo-se mistério, precisamente o que nos faz vislumbrar em sua obra uma virtude essencial, dada a atmosfera única em que emerge. Ambiente e atmosfera de um mundo imerso em papel; drama existencial ou humor de personagens inventadas do nada, ou melhor, da própria essência e da lucidez ou caos da alma. Quando a lemos, intuitivamente sentimos que as palavras da autora quer dizer algo do nosso tempo a nós mesmos. Algo que sabemos, já sentimos, experimentamos. Criamos uma cumplicidade. Afinal, é alguém que nos entende e aí, como disse há dias, nos conhecemos. É o autoconhecimento via romance. Isto ocorre precisamente porque a textura das palavras é feita de sonhos, não de fatos e ideias, muito embora o romance também enriqueça nossa competência linguística e contribua para nossa melhor apreensão da realidade. O romance, ainda que visto com desdém, de soslaio, por parte (hoje - poucos, acredito) da intelligentsia, é a prova da capacidade da ficção em mostrar aquilo que a filosofia não consegue demonstrar.
A arte do romancista consiste em ver o mundo, ao passo que a arte do leitor vale-se dos olhos de um outro, o narrador. Dessa forma, o romance nos permite viver uma multiplicidade de vidas, seja na pele de um marginal, um detetive, um amante, um ditador ou um louco. Logo, a ficção nos dá vidas por procuração, ou seja, ela age, ao longo de nossa existência, como um multiplicador de experiência. Isso nos coloca em contato com a complexidade de nossas próprias vidas, ainda que a partir de vidas semelhantes - ou por que não, estranhas às nossas.
Assim, dentro desse contexto, o leitor experimenta situações que não pode viver na realidade, pode escolher algumas situações, negar outras, e obter os benefícios dessas experiências sem incorrer no perigo real (é a velha tranquilidade da catarse). Nesse sentido, um dos aspectos mais marcantes da leitura de um romance consiste em sua função telepática. Ao ler um romance, o leitor pode perfeitamente proferir ideias que não são suas, isto é, que normalmente não sustenta ou apóia.
Com isso, ao avançar pela leitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis (1899), inclino-me a apoiar o eu que se expressa. Vejo-me levado pelo que se passa na cabeça de Bentinho em suas crises de ciúme, ainda que nada haja ali que prove a infidelidade de Capitu. Essa interiorização do outro explica uma intimidade excepcional que sentimos com relação a certos personagens. Sentimo-os viver, falar e agir em nós. Essa experiência especial, às vezes, perturbadora, por vezes é hilariante e nem mesmo o cinema consegue reproduzir. Por isso, é compreensível que a adaptação de romances para a tela seja muitas vezes tão decepcionante.
Processo cognitivo, a leitura revela-se, portanto, também um processo afetivo extremamente poderoso e emocionante. Umberto Eco já comparou a leitura de um romance a um jogo de xadrez. Ora, o jogo de xadrez combina duas funções bem distintas: o jogo e a diversão. O jogo está ligado à reflexão, está enraizado na razão, faz apelo à inteligência, à capacidade de estratégia; a diversão está fincada no imaginário, no lúdico. No universo da leitura, a diversão provoca um jogo de papéis com base na identificação com uma figura imaginária - a personagem. Concluindo: se o leitor decidir partir em viagem com a personagem, fugir com ela, viajar no tempo e participar de intrigas e aventuras mirabolantes, nada o impedirá de fazer suposições sobre o resto da história e manter um espírito crítico. Este modelo tem o mérito de restabelecer a viagem imaginária, proposta por qualquer narrativa de ficção, sem esquecer a dimensão reflexiva da leitura.
Para encerrar a prosa, esse contexto fez com que alguns teóricos da literatura questionassem sobre as noções de prazer, de emoção e de fuga provocadas pela leitura, porque, afinal, a maioria dos leitores afirma que ao ler romances pensa muito mais em escapar da realidade e em buscar algo divertido, que pensar, aprender e adquirir conhecimento; evidência que ultimamente tem recebido o olhar de novos e importantes estudiosos e que foi, acreditem, por muito tempo desprezada pela teoria literária.

[1] BARTHES, Roland. "L’Étranger, roman solaire", In Œuvres complètes, t. I, 1942-1961, 1993, rééd. Seuil, 2002. Diz Barthes: "ce qui fait de L’Étranger une œuvre, et non une thèse, c’est que l’homme s’y trouve pourvu non seulement d’une morale, mais aussi d’une humeur".
Imagens: Mulher lendo, de Fernando Botero, livros antigos e ilustração de Albert Camus, por Emmanuel.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A França na alcova de D. Pedro I

O livro 1808, de Laurentino Gomes, narra algo inusitado para época, embora já estejamos habituados à história: a fuga da família real para o Rio de Janeiro. Até então, reis e rainhas que haviam sido destronados procuravam refúgio em territórios alheios, mas nenhum deles ousou tanto, ou seja, cruzou o oceano para viver, reinar e transformar uma colônia do outro lado do mundo. Laurentino repete a dose: seu 1822 está vendendo como água nas livrarias, tamanha é a sede e a curiosidade do público leitor em saber mais sobre esse período importante para a história de nosso país. O protagonista do livro, claro, é D. Pedro I.
É sabido que as ligações históricas Brasil-França começaram pouco tempo depois do achamento do Brasil, por Pedro Álvares Cabral. Em 1504, Binot Palmier de Gonneville, capitão francês, aportou na região onde hoje é o Estado de Santa Catarina. Durante os seis meses em que ali esteve o capitão e sua esquadra conviveram com os índios carijós. Ao partirem, levaram um índio que receberia o nome Essomericq e permaneceria na França pelo resto de sua vida. Depois veio Villegaignon, o corsário René Dougay-Trouin, La Condamine, Jean-Baptiste Debret, Grandjean de Montigny, Nicolas-Antoine Taunay, a filosofia positivista de Auguste Comte, etc etc, até que a Rua do Ouvidor estivesse repleta de lojas francesas, os palcos cariocas plenos de espetáculos e cocottes francesas e a literatura quase que inteiramente ligada à influência gálica, só para mudar um pouco o adjetivo.
Todo esse exórdio - como diria Machado, é para falar de D. Pedro I e suas relações francesas (relações, aqui, no sentido físico do termo, se é que me entendem). E, se você leitor, não faz parte da grande maioria desmemoriada, há de se lembrar de um certo senador da república, que até recentemente pagava a pensão de sua amante com dinheiro público. Lembrou-se? Não? Pois aí vai uma pista: ele não tem afeição nehuma pela pecuária, mas, ainda assim, conseguiu vender mais de 400 cabeças de gado a um pequeno açougueiro de Alagoas que, curiosamente, o que fatura por mês mal atinge dois dígitos. Milagres do sertão. Ainda não se lembrou? Acho que é C.., Ca..., Calh... Bem, o prenome é francês e o restante, leitor, trate de descobrir.
Mas e D. Pedro I, o que tem com isso? Pois bem, nosso querido Imperador esteve envolvido em um caso de golpe da barriga. Isso mesmo! Esse golpe tão aplicado em nossos dias, época em que os neurônios estão em baixa e o bumbum em alta. Acredita-se que foi o primeiro da história nacional em que ela dá o golpe, ele aproveita e você, contribuinte, paga a conta. O estratagema remonta a 1828; o incauto, nesse caso, foi o Imperador D. Pedro I e quem pagou a conta, tal como no caso do dito senador, foi o povo brasileiro.
D. Pedro I, como sabido, foi um grande conquistador de corações e exímio fazedor de filhos. Em quinze anos de vida sexual ativa, foi pai de nada mais nada menos que 28 filhos, dez em seus dois matrimônios e dezoito fora dele. Até a quituteira negra do Palácio de São Cristóvão entrou no... na... quero dizer, na dança, e teve a honra de uma gravidez real, como também uma freira, na Ilha Terceira! Aleluia!
Entretanto, o caso mais rumoroso e caro foi, sem dúvida o de Madame Saisset, Clémence Saisset. Em 1828, na Rua do Ouvidor, era o local das lojas mais refinadas da cidade, em geral de propriedade de franceses. D. Pedro I, quando se delocava de São Cristóvão para o Paço da Cidade, na atual Praça XV, passava por ali com sua carruagem e, certamente, observava o animado comércio e, dada a virilidade do moço, as modistas francesas ali estabelecidas, com as quais não poucas vezes teve casos amorosos. Acontece que certo dia sua atenção voltou-se para a casa de n°. 98, defronte à Rua Nova do Ouvidor (atual Travessa do Ouvidor) um fino estabelecimento de modas e papéis pintados, de Bernardo Wallenstein & Companhia. Porém, sua atenção não era dirigida às roupas ou papéis de parede ali exibidos, nem era a figura do solteirão Bernardo ou de seu sócio, Pierre Joseph Félix Saisset que lhe despertaram a curiosidade, mas sim a bela figura da esposa do segundo, Madame Clémence Saisset, nascida Mëes, modista e bela mulher de vinte e cinco anos e já mãe de dois filhos, o último deles nascido em março daquele ano. D. Pedro I percebeu que a jovem lhe correspondia e concebeu engenhoso plano para conquistá-la. Contratou Pierre Félix para colocar papéis de parede em todo o Paço de São Cristóvão. Enquanto o marido colocava os papéis nos salões imperiais, D. Pedro I colocava-lhe chifres! Como em toda boa história de traição, um dia a casa caiu. Nesse dia Pierre Félix retornou mais cedo para casa e encontrou D. Pedro I totalmente despido em sua cama! A esposa o convenceu de que o Imperador havia sofrido uma queda de um cavalo defronte à casa, e Madame Clémence Saisset, fazendo jus ao nome, o recolhera e despira (tudo no maior respeito, é claro...) para aplicar-lhe uma massagem de socorro. O marido fingiu acreditar, pois logo percebeu o quanto poderia lucrar com a situação. D. Pedro I, inclusive, posteriormente o autorizou a colocar uma placa na fachada da casa, indicando o negócio de papéis pintados ser “Fornecedor da Casa Imperial”, motivo de muita gozação entre os vizinhos. Em novembro, Clémence engravidou de D. Pedro I e, para o escândalo não aumentar, no dia 30 de dezembro de 1828 o casal Saisset partia para a Europa, não sem antes ter todo seu negócio indenizado a peso de ouro pelo Imperador, recebendo Madame Clémence Saisset, dentre os muitos presentes e dádivas, um saque de setenta e cinco mil francos e um título de pensão vitalícia.
De quebra, D. Pedro I ainda prometeu pagar a educação do pimpolho com mesada régia, às custas dos contribuintes. Em Paris, às seis horas da tarde do dia 23 de agosto de 1829, à rua Bergère, n°. 17, nasceu um menino, que passou a chamar-se Pedro de Alcântara Brasileiro, oficialmente filho de Pierre Saisset, antigo oficial de cavalaria francesa, de 32 anos, e de Madame Clémence Saisset[1].
Durante a gravidez da esposa, tanto Mr. Saisset como Clémence endereçaram muitas cartas ao Imperador e a seus procuradores, todas tratando de dinheiro, é claro. Depois, os Saisset se mudaram para a Avenue de Sceaux, n°. 2, em Versailles, onde granjearam fama na sociedade local, tendo o casal feito larga propaganda do filho tido com o Imperador do Brasil, fato que o próprio Mr. Saisset alardeava como de grande mérito. Costumava Madame Saisset exibir aos amigos e visitantes os presentes oferecidos a ela pelo Imperador do Brasil, em especial um papagaio falante, bem como toda a correspondência amorosa de ambos.
Entretanto, a renúncia do Imperador ao trono do Brasil, ocorrida a 7 de abril de 1831, bem como sua morte precoce, em Lisboa, a 24 de setembro de 1834, interromperam a remessa de dinheiro ao casal, fato que não passou sem poucos protestos. Após alguns anos, a Imperatriz viúva, Da. Maria Amélia, concedeu uma pequena pensão à criança, por alguns anos. Pedro de Alcântara Brasileiro foi educado num dos melhores colégios de Paris, o Lycée Louis le Grand, e se bacharelou em letras. Casou-se e foi pai de dois filhos, indo afinal residir em San José de Guadalupe, São Francisco, Califórnia. Em outubro de 1864 recebeu a notícia do falecimento da mãe, morta aos 61 anos. Só então, por meio do advogado da família, recebeu uma pasta de documentos e veio a saber que era filho do ex-Imperador do Brasil. Pedro de Alcântara enviou então uma missiva ao seu meio-irmão brasileiro, nada mais nada menos que o Imperador D. Pedro II, pedindo uma ajuda de custo para a educação de seus dois filhos, haja vista que sua mãe, a finada Clémence Saisset, havia torrado toda a fortuna da família em luxos e futilidades. O Imperador não retornou a correspondência e o assunto morreu. Alguns anos depois, em 26 de agosto de 1877, quando D. Pedro II esteve em Londres, um dos filhos de Pedro de Alcântara, o Capitão de Fragata Ernest de Saisset tentou contato com o Imperador, sem sucesso.
E assim acaba a história de como a França adentrou-se a alcova do Imperador e o contribuinte pagou pelo rendez-vous.
[1] Em 1822, de Laurentino Gomes, à página 125, há a informação de que a certidão de batismo do filho de D. Pedro I com Clémence Saisset está reproduzida em Pedro I, um brasileiro, Acervo do Museu Imperial de Petrópolis.
Nota: A história narrada acima, justamente em razão das estripulias do corrupto senador, foram disseminadas pela internet, porém em Cartas de D. Pedro I à Marquesa de Santos, de Alberto Rangel, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984, p. 244 e 323, há informação sobre o rebento e os Saisset.

Veja ainda: GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007; 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil - um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2010.

Imagens: D. Pedro I, de Simplício de Sá (1826); D. Pedro I compondo o Hino Nacional (hoje Hino da Independência), em 1822, de Augusto Braga (1880); Brasão e Coroa do Império do Brasil.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Visões do Paraíso

Antes que você, leitor, ao deitar os olhos no título se enverede por caminhos, digamos, exóticos, por que não, fantásticos, explico-me: Visão do Paraíso é o interessantíssimo livro de Sérgio Buarque de Holanda ; nele o historiador analisa os motivos e mitos edénicos relacionados à colonização do Brasil, que fizeram parte das grandes narrativas acerca do achamento e colonização do continente americano. Essas narrativas foram escritas entre o final do século XV e o século XVIII. Nelas o Jardim do Éden, paraíso bíblico, é o mote das representações coletivas associadas ao continente americano e investigadas por Buarque de Holanda. Visão do Paraíso é um dos mais expressivos e eruditos textos da historiografia brasileira. Publicado em 1959, pela Editora José Olympio, foi relançado em 2000, pela Publifolha (Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro) em edição comentada.
O texto originou-se da tese elaborada pelo autor, em 1958, para o concurso que o conduzira à cátedra de História da Civilização Brasileira da Universidade de São Paulo, porém, em prefácio à segunda edição (p. X), Buarque de Holanda comenta as razões que o levaram a abordar tal tema: "O que nele se tencionou mostrar é até onde, em torno da imagem do Éden, tal como se achou difundida na era dos descobrimentos marítimos, se podem organizar num esquema altamente fecundo muitos dos fatores que presidiram a ocupação pelo europeu do Novo Mundo, mas em particular da América hispânica, e ainda assim enquanto abrangessem e de certa forma explicassem o nosso passado brasileiro".
As Visões do Paraíso, embora tão fantasiosas quanto os motivos edénicos que levaram os europeus a suspeitarem de que pudessem ter encontrado o paraíso na terra, se analisadas, não se mostram tão fabulosas e fantásticas, mas, acreditem, cheiram a conto do vigário. Explico-me: a partir de 3 de outubro de 2010, viveremos no Éden. Acreditem. Quem viver verá!
Como posso afirmar isso? Ora, convenhamos; é só você, leitor, deixar-se levar pela retórica, digo, engôdo pré eleitoral. Os fichas sujas mergulharam com as Náiades em fontes e nascentes, e, diferente do que ocorria à época mitológica, os infratores não foram punidos pelas ninfas com a morte, em vez disso só lhes coube a amnésia e do mergulho saíram fichas limpas. Para nós eleitores, duas constatações: já não se fazem mais ninfas como antigamente e a amnésia, para nós, traz efeito reverso, é um tiro pela culatra. o sujeito amnésico não é exatamente aquele que padece com a falta de memória, pelo contrário, é aquele que há de se lembrar de nós e nos dará um pedacinho do paraíso. Ele, ao invés de perder - ganha; e nós, se ganhamos, não levamos! Suas estripulias ganham tonalidade ética, ou seja, dos mensalinhos e mensalões às cuecas - que de meras protetoras da genitália foram alçadas à condição de caixas-forte, mais os descalabros da Casa da mãe Joana, digo Civil, tudo, tudo mesmo, passa a ser vendido como ações de líderes pró-ativos. Seremos presentados com o que há de melhor!
Mas, deixemos a política torva e sanhuda de lado. Falemos do Paraíso que nos prometem todos os dias: como nem tudo é perfeito e as regras do Altíssimo continuam valendo, lá, não seremos como Adão e Eva antes do pecado original, teremos que trabalhar, mas, acreditem, o mínimo será de no minímo cinco salários minímos atuais - maravilha! Como em casos de aumento tudo é proporcional, ou seja, o aumento é maior para quem ganha mais, que façam a conta. Na educação os professores serão bem pagos(!!!); o aluno sairá da escola sabendo ler e escrever e - incrível, dono de uma capacidade crítica invejável. Detalhe: os estudantes de baixa renda terão os estudos totalmente subvencionados pelo estado. Vagas nas creches serão vagas; há de faltar criança. Como todos já sabem o funk, o rap e o samba, nas escolas públicas os alunos hão de decifrar quem e o que são esses hieróglifos: Mozart, Bach, Beethoven, Schumann etc.
No Paraíso, como o próprio nome sugere, não se falará em poluição; afinal, a vida será pura e verde. Haverá parques, ciclovias (Comparando ao Éden - uma inovação, a modernidade!). Os rios serão limpos, despoluídos. Ah! meu amado Tiete, quanto vil metal já não escorreu sob suas águas em direção aos bolsos...ops, em direção ao rio Paraná. Enfim, educação ambiental não será matéria de jornal, até mesmo porque isso será assunto de outros mundos - mais utópicos. Gostamos de utopia!
E, caso lhe aconteça alguma tragédia no Paraíso, tranquilize-se: a saúde será de Paraíso de primeiro mundo, quase celestial, afinal, essa possibilidade é puro devaneio porque em paraíso que é paraíso, ninguém adoece. E os estádios? Ah, em 2014 os estádios serão deslumbrantes! (Não estava eu falando de hospitais?).
Mas e o nosso mal maior, a segurança? Bem, isso já tivemos o gostinho de experimentar; não falo das balas perdidas, os assaltos e os sequestros, mas a sensação célica que impera no firmamento. Virtude tais já andaram por aqui. Quer uma prova, leitor? Pois vá lá, um relato de Machado de Assis em crônica de 10.10.1864[1]: "Casta filha do céu, que vês tu na planície? perguntei-lhe como no poema de Ossian[2]. A infeliz desceu com ar desconsolado e disse-me que nada vira, nem a sombra de um acontecimento, nem o reflexo de uma virtude. Perdão, viu uma virtude.Não sei em que lugarejo da Bahia reuniu-se o júri no prazo marcado e teve de dissolver-se logo, porque o promotor de justiça não apresentou um só processo. Ó Éden baiano![3] dar-se-á o caso que no intervalo que mediou entre a última sessão do júri e esta, nem um só crime fôsse cometido dentro dos vossos muros? Nem um furto, nem um roubo, nem uma morte, nem um adultério, nem um ferimento, nem uma falsificação? O pecado sacudiu as sandálias às vossas portas e jurou não voltar aos vossos lares? O caso não é novo; lembra-me ter visto mais de uma vez notícias de fenômenos semelhantes. O Éden, antes do pecado de Eva, não era mais feliz do que essas vilas brasileiras onde o código vai-se tornando letra morta, e os juízes verdadeiras inutilidades. Onde está o segrêdo de tanta moralidade? Como é que se provê tão eficazmente à higiene da alma? Há nisto matéria para as averiguações dos sábios. ___ Mas, __ juste retour des choses d’ici-bas[4], __ talvez que na próxima sessão do júri, a vila que desta vez subiu tanto aos olhos da moralidade, apresente um quadro desconsolador de crimes e delitos, de modo a desvanecer a impressão deixada pelo estado anterior".
Como acaba de constatar, leitor, ainda que vivamos no Paraíso que nos prometem, ainda assim haveremos de desejar certa desestabilização porque, afinal, nem tudo é perfeito, sequer o Paraíso. Algo deve agitar a bem-aventurança. No Éden, o próprio criador plantou a árvore da sabedoria e, logo depois, veio a serpente, astuciosa como sempre. No paraíso mitológico havia os sátiros, essas divindades menores da natureza, criaturas meio homem meio animal, com cauda e orelhas de asno ou cabrito, pequenos chifres na testa, narizes achatados, lábios grossos, barbas longas e órgãos sexuais de dimensões bem acima da média - muito frequentemente mostrados em estado de ereção. Viviam nos campos e bosques e tinham frequentes relações sexuais com as ninfas, além de copularem com mulheres e rapazes humanos, cabras e ovelhas. Uma festa!
Veja você, leitor, há paraísos e paraísos, uns mais movimentados que outros; e, se a serpente desestabilizou o Éden e os sátiros excitaram as ninfas, o que poderia comprometer a segurança de nosso paradisíaco torrão? Talvez a tiririca, aquela erva que insiste em tomar conta do canteiro, uma das piores plantas daninhas do mundo, devido à alta nocividade, agressividade e larga amplitude ecológica. É isso aí, talvez venhamos a padecer com uma invasão de tiriricas.


[1] ASSIS, Machado de. Obra Completa de Machado de Assis - Crônicas - Vol. 2 (1862-1867). Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1957, p. 178-1835.
[2] Trata-se do bardo celta Oisín ou Ossian que teria vivido na Escócia no século III. Na verdade, constatou-se no final do século XIX tratar-se de uma fraude literária, embora exemplo precursor do romantismo. James Macpherson (1763-1796) teria coletado o original da obra em sua pesquisa de campo pelo noroeste da Escócia por volta do ano de 1760, na tentativa de recuperar um antigo poema épico escocês. Em 1762 publica Temora e Fingal, dois poemas épicos. No entanto, os poemas são criações do próprio Macpherson baseadas nas baladas gaélicas; verificou-se mais tarde que os habitantes daquelas paragens desconheciam as baladas cantadas por Macpherson e supostamente originadas ali.
[3] Pura ironia machadiana! O Éden parecia bem mais agitado. O Diário do Rio de Janeiro de 7.10.1864, p. 1, publica notícias vindas das províncias do nordeste entre outras: “... jazem dous infelizes, presos na villa de Tapera há 64 dias, sem que lhes tenha feito nem interrogatorio, nem processo, nem cousa alguma,...”, “A polícia dorme, e apenas acorda para ir a missa estriptosamente na igreja da Piedade, sendo as patrulhas da cidade dadas sem necessidade pela tropa de linha!’, “Agora para Itaparica foi nomeado um contrabandista...” (sobre nomeações e demissões de cargos policiais após a eleição).
[4] Le Tartuffe – Ato V, cena III: Mme Pernelle, mãe de Orgon, não acredita no caráter hipócrita de Tartuffe, como pensa seu filho. Este, acabara de presenciar a cena em que o impostor tenta seduzir sua esposa. Quando a mãe insiste em que é preciso provas para acusar alguém, Orgon não se contém e esbraveja todo seu rancor em uma cena de diálogo contundente, quando Dorine intervém: “Juste retour, monsieur, des choses d’ici bas: Vous ne voulez point croire, et l’on ne vous croit pas.”


Imagens: Nymphs and Satyr (1873), de William-Adolphe Bouguereau 91825-1905); urna eleitoral de 1893 e a erva daninha tiririca.