Revista Philomatica

quarta-feira, 30 de junho de 2010

O judeu de Bethesda

Transcrevo aqui artigo muito pertinente de autoria de Claudio de Moura e Castro, publicado na Revista Veja em 18.6.2010.


“Se livro fosse cultura, os cupins seriam os seres mais cultos do globo. Só livro lido é cultura”

Último dia de aula na escola Walt Whitman. Situada em Bethesda, um bairro intelectualmente sofisticado da região de Washington (DC), é uma das melhores dos Estados Unidos. O pimpolho volta para casa. Poderia estar sonhando com três meses de vadiagem, longe dos livros. Mas o sonho duraria pouco. Ao fim da tarde, chega o pai judeu, carregando uma sacola de livros recém-comprados. Chama o filho, esparrama os livros na mesa da sala e começa a montar o cronograma de leituras, incluindo a cobrança periódica do que terá sido lido. Ignoro quantos pais judeus passaram também nas livrarias. Mas imagino que não foram poucos.
Ler livros, glorificar livros, eis uma tradição judaica milenar. Vem de longe e não se buscam muitas explicações científicas para ela. Não obstante, Karl Alexander, da Universidade Johns Hopkins, somando aos 39 estudos sobre o assunto, completou uma pesquisa com alunos do ensino fundamental. Concluiu que, das vantagens acadêmicas acumuladas pelos alunos mais ricos até a 9ª série, dois terços advêm de atividades de leitura mais intensas durante as férias. Segundo a Secretaria de Educação americana, as perdas dos mais pobres nas férias são “devastadoras”. Um pai judeu provavelmente diria: ora bolas, é o que sempre pensei. Mas, para a maioria das pessoas, os resultados são surpreendentes. Em matemática, foi possível comprovar que, durante as férias, os alunos esqueceram o equivalente a 2,6 meses de aula. Em outras palavras, somente 2,6 meses depois de recomeçarem as aulas os alunos atingem o nível de competência que tinham no último dia de aula da série anterior. Ou seja, férias são um horror para o aprendizado.
Trata-se de resultados valiosos para países que lutam bravamente para melhorar seu claudicante ensino. É simples, se for possível estancar a sangria do “desaprendizado” - que põe a perder 2,6 meses de estudos -, os ganhos serão enormes. Da ordem de 25%? Que outras intervenções seriam tão poderosas?Tais ideias abrem caminho para muitas linhas de atividade. Pais interessados e comprometidos com a educação dos seus filhos podem fazer o mesmo que os judeus de Bethesda. Mas, vamos nos lembrar, se livro fosse cultura, os cupins seriam os seres mais cultos do globo. Só livro lido é cultura. Portanto, cobranças sem dó nem piedade. Mas seria só empurrar livros e mais livros goela abaixo dos filhos? Jamais! É preciso desenvolver o prazer da leitura, e o bom exemplo é essencial. À força, pode sair o tiro pela culatra.
Que livros? Não adianta comprar Hegel, Spinoza ou Camões, se as leituras favoritas ainda não passaram muito da Turma da Mônica. É fracasso garantido. Os livros devem andar muito próximo do interesse e da capacidade de compreensão dos leitores, sempre puxando um pouco para cima.
Desviando parcialmente do assunto, quero sugerir aos pais que façam manifestações, que acampem em frente à casa dos prefeitos, até que se mude uma situação vergonhosa. Uma pesquisa recente com as bibliotecas públicas brasileiras pôs a descoberto que (além de fecharem às 6 da tarde) apenas 20% delas abrem aos sábados e só 1% aos domingos. Como é possível que, nas horas e dias de folga das escolas, as bibliotecas permaneçam fechadas? No caso das leituras de férias, são os únicos dias em que muitos pais poderiam ir à biblioteca para escolher livros com os filhos.
Para aqueles que cuidam da educação como ofício, as implicações da pesquisa da Johns Hopkins não são menos revolucionárias. Mostram ser preciso fazer alguma coisa, somente para conseguir não andar para trás nas férias. Por exemplo, programas públicos de leitura. Não são programas caros nem complicados, basta criar monitorias para garantir que as leituras sejam feitas.
Em um nível mais ambicioso, sobretudo para alunos mais vulneráveis, poderiam ser criados cursos de férias. Não se trata de fazer a mesma coisa que no período letivo, pois seria repetir um ensino aborrecido e pouco produtivo. Precisamos de projetos intelectualmente desafiadores, atividades que estimulem os miolos, jogos e muitas outras coisas. O que precisa ser aprendido não é muito diferente, mas viria vestido com roupas mais alegres. E, como sabemos que cabeça vazia é oficina do diabo, essas atividades podem até mesmo ter outras consequências benéficas, por evitar rumos pouco recomendáveis em que se deságuam as amplas energias desses jovens.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Saramago: o Mago

É chegada a hora dos guardiães da tumba. Explico-me: na sexta-feira, 18, morreu José Saramago. Enquanto vivo, só o autor tem o sentido de sua obra, é dono de seu próprio discurso, só ele pode reivindicar um sentido para aquilo que diz; após a morte, apropriam de seu discurso a crítica post mortem, os especialistas de sua obra, enfim, os guardiães do saber do autor. É o momento de escarafunchar linhas e entrelinhas, buscar semelhanças, diferenças, textos e intertextos, manuscritos, ideias, influências, memórias inconfessas, recepções, o périplo de sua circulação literária, livros inconclusos... É chegado o momento de a crítica (re)conhecer o escritor, o biográfico, o eu social e fazer o trabalho arqueológico da obra, ou seja, buscar pelo autor, pelo eu por trás das obras. E, acredito, Saramago será pródigo mesmo para além da campa.
Na imprensa, muito se falou de Saramago nesses três últimos dias. Houve excessos, penso. Cheguei a ler: o que seremos de nós, agora, sem Saramago? Puro exagero! Vamos ser o que sempre fomos. O que somos mesmo sem Clarice, sem Guimarães, sem Machado, sem Proust, sem Flaubert, sem Stendhal etc etc. Vamos ser uns poucos, se comparados à população global, uns poucos e míseros seres estranhos, habituados a gastar algumas horas produtivas do dia a manter uns 500 gramas, um quilo, de saber nas mãos e com isso encurtar distâncias, enveredar por outros mundos, por ideias alheias; ideias, diga-se, que enriquecem e enobrecem o espírito, algo que a grande maioria, indiferente ao livro, passa ao largo.
Saramago abriu a porta para muitos desses mundos, muitas dessas histórias nas quais vemos a nós mesmos - refletidos. Fazia-nos, como dizia Barthes, sentir o prazer do texto, ensinava-nos como não viver só, pois, só se é feliz quando se está lendo, só a literatura, a narrativa, produz o amor, já que todo discurso amoroso é absolutamente estéril, uma vez que só se diz eu te amo diante da impossibilidade de ser amado.
Conjecturas e devaneios à parte, Saramago, prêmio Nobel de Literatura em 1998, morreu aos 87 anos, em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde morava depois de seu auto exílio, em razão da condenação (1992), em Portugal, de seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, considerado pela Igreja portuguesa um compêndio de alucinações teológicas e uma provocação teatral transcendente. Nesse mesmo ano o governo português veta a candidatura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo ao Prêmio Literário Europeu. Harold Bloom, conceituado crítico literário norte americano, ao contrário, diz estar convencido de que O Evangelho Segundo Jesus Cristo continua sendo seu melhor romance. Segundo Bloom, ali Saramago mostra-se não só corajoso e polêmico em particular contra o Cristianismo mas também contra todas as religiões em geral. Já fazendo as vezes dos guardiães da tumba, um Voltaire revisitado (guardadas as devidas proporções, é claro!). Voltaire, o mais conhecido dos deístas, era critico ferrenho da ingerência da Igreja na vida das pessoas (Saramago era confessadamente ateu). Bloom, uma referência da crítica literária americana, afirma que no Evangelho, Saramago consegue a proeza de tratar Cristo e o Catolocismo sem se sujeitar a um respeito obrigatório.
O crítico destaca ainda um grande feito de Saramago: o de ter deixado oito romances de ótima qualidade, algo raro mesmo entre ótimos escritores. O Ano da Morte de Ricardo Reis faz parte dessa lista e é um desses livros que mantém, mesmo após décadas de sua publicação, o frescor preservado e a prosa saborosa.
Nos últimos anos, uma das grandes preocupações de Saramago foi a violência política e a religião. Sobre sua posição, afirmava: "Eu diria que sou um comunista libertário. Alguém que defende a liberdade. A liberdade de não aceitar tudo que venha, porém que assume o compromisso com três perguntas que devem ser nossos guias de vida: Por quê? Para quê? Para quem?" Mudava de opinião quando lhe convinha: em 2003, em carta escrita ao jornal espanhol El País, o escritor retirou seu apoio ao regime de Fidel Castro, de Cuba, após a execução de três cubanos que sequestraram um barco na tentativa de fuga para os Estados Unidos. Decisão, diga-se, sequer pensada por intelectuais brasileiros, mesmo quando Cuba, trancafiou nos porões de suas prisões escritores e intelectuais cubanos, na tão recorrida estratégia usada pelos regimes ditatoriais para se perpetuarem no poder e calar a liberdade. Saramago, à época condenou o regime castrista, dizendo que Cuba havia perdido a sua confiança e traído seus sonhos, porém, dois anos depois teceu elogios a Castro, quando condenou os Estados Unidos por sua "fisionomia fascista". Em 2002, quando da ocupação da Cisjordância por Israel, mais uma vez Saramago despertou polêmica ao afirmar que a atuação dos militares israelenses se assemelhava ao horror nazista dos campos de Auschwitz. Para Bloom, no entanto, Saramago ao falar de política, assumia o estereótipo stalinista de sempre.
Polêmicas e opiniões à parte, o que vale e o que fica para a posteridade é o homem iluminado que foi Saramago. Ganhador também do Prêmio Luís de Camões, a mais alta condecoração da língua portuguesa, Saramago deixou inacabado o livro Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas!, que apesar do título - uma referência a um verso do dramaturgo Gil Vicente, versa sobre o tráfico de armas, tema atual que só confirma o que dizia: "Nunca separo o escritor do cidadão. Isso não significa que queira converter minha obra em panfleto. Significa que não escrevo para o ano de 2427, mas para hoje".
Autor de personagens inesquecíveis, Saramago, que Mago traz no nome, foi aquele que soube trabalhar em suas obras o universo do sonho, mantendo sempre em contato a imaginação e a realidade, enfim, foi aquele que também traz no nome (e para o leitor) a cura, pois Sara a alma. E ave Sara-Mago!

A obra de Saramago:

1947, Terra do Pecado, romance
1966, Os Poemas Possíveis, poesia
1970, Provavelmente Alegria, poesia
1971, Deste Mundo e do Outro, ensaio
1973, A Bagagem do Viajante, ensaio
1974, As Opiniões que o DL Teve, ensaio
1975, O Ano de 1993, poesia
1976, Os Apontamentos, ensaio
1977, Manual de Pintura e Caligrafia, romance
1978, Objecto Quase, romance
1979, Poética dos Cinco Sentidos - O Ouvido, ensaio
1979, A Noite, teatro
1980, Que Farei com Este Livro, teatro
1980, Levantando do Chão, romance
1981, Viagem a Portugal, ensaio
1982, Memorial do Convento, romance
1986, O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance
1986, A Jangada de Pedra, romance
1987, A segunda Vida de São Francisco de Assis, teatro
1989, História do Cerco de Lisboa, romance
1991, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, romance
1993, In Nomine Dei, teatro
1994-1998, Cadernos de Lanzarote, Vol. 1 a 5, diários e memórias
1995, Ensaio Sobre a Cegueira, romance
1997, Todos os Nomes, romance
1997, O Conto da Ilha Desconhecida, romance
1999, Folhas Políticas, ensaio
1999, Discursos de Estolcomo, ensaio
2001, A Maior Flor do Mundo, conto infantil
2003, O Homem Duplicado, romance
2004, Ensaio Sobre a Lucidez, romance
2005, Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido, teatro
2005, Intermitências da Morte, romance
2006, As Pequenas Memórias, diários
2008, A Viagem do Elefante, romance
2009, Caim, romance

Imagens: Caricatura de José Saramago, José Saramago e capa da edição brasileira de O Ano da Morte de Ricardo Reis, todas disponíveis no Google Images.

domingo, 13 de junho de 2010

Pangloss, uma obsessão machadiana

Autores, obras e personagens, ao longo da circulação literária, ganham destaque, e, no caso das personagens, ocorre de abandonarem o espaço da escrita à procura de outros mundos, de uma vida mais mundana. Iracema é uma delas: escapa do espaço da narrativa e salta para as artes - da tela de Antônio Diogo da Silva Parreiras (1909), toma gosto pela tela do cinema: Iracema, a virgem dos lábios de mel, filme de Carlos Coimbra (1979); Iracema, uma transa amazônica, de Carlos Bodansky (1974); Iracema, de Vittorio Cardineli e Gino Talamo (1949) e Iracema, de Vittorio Capellario (1917), são alguns exemplos. Aventura-se, ainda, em sua trajetória pop e torna-se personagem do samba enredo da Império Serrano, Aquarela Brasileira (1964), e invade canções de intérpretes como Cascatinha e Inhana (Iracema) e Chico Buarque (Iracema voou), numa prova de que a atualidade da Iracema de José de Alencar é atestada por sua permanência como canône literário, haja vista não só o grande número de traduções como também todas essas adaptações. Capitu não fica atrás e segue périplo idêntico.
Porém, há personagens que persistem na narrativa. A despeito da presença em outras formas de linguagens, mostram que tomaram gosto pelo espaço das linhas e das letras, ainda que pelo poder da escritura, do traço, apareçam e transitem por contextos radicalmente diferentes daquele de sua origem, constituindo, dessa forma, uma tessitura, uma trama inteiramente distinta, graças ao intertexto. Isso ocorre, por exemplo, com Pangloss, a célebre personagem de Voltaire, que do épico Candide, transita por crônicas e romances de Machado de Assis.
(*) Machado, ao focalizar os tormentos do homem e os absurdos do mundo sob o enleio de um humor reflexivo, ora divertido, ora amargo, sempre com uma nota de debique e parecendo brincar com o leitor, recorre à figuras tutelares da literatura. Como discípulo dos moralistas franceses, acredita no egoísmo como invólucro dos bons sentimentos. Seus romances e contos são repletos de personagens movidas pelo interesse e pelo egoísmo; nas crônicas, essas características que movem os valores sociais, repousam nas conveniências e na mentira e são tratadas sob um misto de crítica, sobretudo quando direcionadas à classe política.[1]
Assim, a exemplo dos grandes ironistas do século XVIII, tais como Sterne, Swift e, sobretudo, Voltaire, a técnica usada por Machado consiste em estabelecer um vínculo entre a normalidade dos fatos e sua aparência essencial através da crítica irônica, de maneira a sugerir o mais absurdo de modo cândido, induzindo o leitor ao contrário, o que faz com que o absurdo pareça o normal e, este, excepcional. Com isso, pode-se destacar uma destas figuras tutelares – Pangloss, uma obsessão machadiana, que frequenta não só as crônicas, mas dois de seus importantes romances da segunda fase: Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.
Em Memórias póstumas, a razão suficiente, ou seja, o princípio das teorias finalistas aparece por meio das digressões ‘filosofantes’ do narrador, conforme lembra PASSOS.[2] Ali, o bon-vivant, culto e requintado, Brás Cubas, num jogo intertextual promovido pelo narrador, confere ao leitor o papel do fiel e ingênuo discípulo de Pangloss. Veja-se o cotejo entre o texto voltairiano:

“Pangloss enseignait la métaphysico-théologo-cosmolonigologie. Il provait admirablement qu’il n’y a point d’effet sans cause, et que, dans ce meilleur des mondes possibles, le château de monseigneur le baron était le plus beau des château, et madame la meilleure des baronnes possibles.
"‘Il est démontré, disait-il, que les choses ne peuvent être autrement : car tout étant fait pour une fin, tout est nécessairement pour la meilleure fin. Remarquez bien que les nez ont été faits pour porter des lunettes ; aussi avons-nous des lunettes. Les jambes sont visiblement instituées pour être chausées, et nous avons des chausses. Les pierres ont éte formées pour être taillées et pour en faire des châteaux ; aussi monseigneur a un très beau château : les plus grand baron de la province doit être le mieux logé ; et les cochons étant faits pour être mangés, nous mangeons du porc toute l’année. Par conséquent, ceux qui ont avancé que tout est bien ont dit une sottise : il fallait dire que tout est au mieux.’” [3]

e a criação machadiana:


“Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, — e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.”[4]

O diálogo intertextual prossegue inclusive intrometendo o leitor, como o interlocutor que pode refutar as idéias do ‘pensador’ Brás Cubas, como bem observa PASSOS. Destarte, ao justapor o duplo Brás Cubas-Pangloss, Machado insiste no absurdo da generalização e no despropósito do caráter inútil das explicações monolíticas, de modo que o saber totalizante torna-se produto do cômico, ainda nas observações de PASSOS. Com isso o romancista ao valer-se de Pangloss como testemunha ficcional ironiza justamente a pretensão do narrador em justificar as desgraças e a crueza da realidade por meio do pensamento finalista leibniziano, no qual tanto as vitórias, quanto as desgraças são fundadas no princípio superior do Ser.
O diálogo que envolve as teorias e muito do conhecimento do século XIX, tem seu lastro na ‘filosofia’ de Quincas Borba, outra personagem do livro, a qual se apresenta como o fundador do Humanitismo, uma caricatura da religião da humanidade[5] preconizada pelos positivistas. Assim, para o símile Pangloss-Candide, há Quincas Borba-Brás Cubas, mais uma ironia do romancista ao justapor o ‘filósofo’-preceptor da fonte ao ‘filósofo’-narrador. Este fica estupefato com seu mestre, que demonstra sob o molde do Humanitismo, o funcionamento da engenhoca que se constituía a realidade sócio-econômica brasileira:

“— Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite.”[6]


Diante de um cientificismo ainda ingênuo no Brasil da década de 1880, que acreditava mandar à cova a filosofia, Quincas Borba, assim como Pangloss, aparece como um otimista ridículo. Quincas, no entanto, reitera:

“Pangloss, dizia-me ele ao fechar o livro, não era tão tolo como o pintou Voltaire.” [7]

Ora, se em Memórias póstumas o Humanitismo soa como uma sátira às teorias finalistas, em Quincas Borba ele aparece sob o lema darwiniano de “ao vencedor as batatas”. Se em Memórias póstumas a justaposição Brás Cubas-Candide difere pelo fato de que o primeiro é culto e refinado e, o outro, de um caráter pleno de ingenuidade, em Quincas Borba, o duplo se ajusta, Rubião, ao ser relativizado a Candide, apresenta muito de seu caráter ingênuo e obtuso e, em seu périplo de Barbacena ao Rio de Janeiro, dará mostras de sua personalidade simples e naïve, evidentemente que em contextos e dimensões absurdamente diferentes.
Em Quincas Borba, o contato de Rubião com Pangloss dá-se através dos jornais da Corte, através dos quais constata o apreço e a consideração destinada ao falecido Quincas, a quem se atribuía uma peleja filosófica:
“No começo da semana seguinte, recebendo os jornais da Corte (ainda assinaturas do Quincas Borba) leu Rubião esta notícia em um deles: ‘Faleceu ontem o Sr. Joaquim Borba dos Santos, tendo suportado a moléstia com singular filosofia. Era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse pessimismo amarelo e enfezado que ainda nos há de chegar aqui um dia; é a moléstia do século. A última palavra dele foi que a dor era uma ilusão, e que Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire... Já então delirava. Deixa muitos bens. O testamento está em Barbacena.’ ”[8]

Embora Pangloss seja nomeado apenas neste instante, Rubião já fora iniciado no dogma finalístico do Humanitismo por Quincas Borba quando este expusera ao ingênuo professor de Barbacena, o princípio de Humanitas, então sob o mote darwiniano:

“— Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”[9]

Disto, conclui-se a abrangência intertextual do conto filosófico Candide e, sobretudo Pangloss, porta-voz a ridicularizar a teoria de Leibniz em universo tropical, como verdadeira obsessão machadiana.


Para citar este artigo (a partir do asterisco (*)): DIRCEU, Magri. Aspectos da presença de Voltaire nas crônicas machadianas. Dissertação de Mestrado, FFLCH - Faculdade de Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo-USP, 2009.
[1] Sobre as considerações machadianas à política ver BOSI, Alfredo. O teatro político nas crônicas de Machado de Assis. IEA, Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Texto disponível em versão eletrônica (www.iea.usp.br/artigos), consulta em 4.6.2009. Sobre a questão menciona o autor: “A classe mais numerosa, a que pertence quase todo o gênero humano, é aquela em que os homens, atentos unicamente a seus interesses, nunca lançaram os seus olhares para o interesse geral. Concentrados em seu bem-estar, esses homens dão o nome de honradas apenas às ações que lhes são pessoalmente úteis.” Adiante: “Se o universo físico se submete às leis do movimento, o universo moral não deixa de submeter-se às leis do interesse. O interesse é na terra o mago poderoso que modifica aos olhos de todas as criaturas as formas de todos os objetos.” (Helvetius, Do espírito, ed. de 1758, II, 2).
[2] Importante estudo sobre a presença de Voltaire em Memórias póstumas de Brás Cubas está em A Poética do Legado, de PASSOS (1996, p. 70-79) em capítulo denominado ‘Uma escala a mais nas viagens de Cândido’.
[3] VOLTAIRE. Candide ou L’Optimisme et outres contes. POCKET CLASSIQUES. Collection dirigée par Claude Aziza. Paris: Pocket, 2005, p. 20, 21.
[4] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Klick Editora, 1997, p. 102.
[5] COMTE, Auguste. Catéchisme positiviste ou Sommaire Exposition de la Religion Universelle en onze entretiens systématiques entre une Femme et un Prête de l’Humanité. Paris: Chez l’Auteur, 1852. A Religião da Humanidade, criada por Comte em 1854 como coroamento da carreira filosófica, em que procurou estabelecer as bases de uma completa espiritualidade humana, sem elementos extra-humanos ou sobrenaturais está largamente fundamentada no Catéchisme. O autor chega mesmo a definir sete sacramentos para o novo credo: “la Présentation (nomination et parrainage); l’Admission (la fin de l’éducation; la Destination (le choix d’une carrière; le Mariage; la Retraite (à 63 ans); la Séparation (faisant office d’une extrême-onction sociale); l’Incorporation (trois ans après la mort, l’union avec les morts)”. A Religião da Humanidade também é conhecida como Positivismo religioso. Em Paris, no Marais, 5 de la rue Payenne, ainda existe uma Chapelle de l’Humanité.
[6] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Klick Editora, 1997, p. 191.
[7] Idem, p. 192.
[8] ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Klick Editora, 1997, p. 35.
[9] Idem, p. ....
Imagens: Pangloss is cured of syphilis; Docteur Pangloss Portraituré, por Amabee, Strasbourg, France e Cartaz do filme Memórias póstumas de Brás Cubas, com Reginaldo Faria, todas disponíveis no Google Images.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Não contem com o fim do livro

Comumente, aqui comento literatura e seus afins: bibliotecas, autores, livros, e, de arrasto, aqueles que os amam ou detestam, proibindo-os, banindo-os ou queimando-os. Há não muito tempo redigi um post chamado O e-book matará o livro impresso? A ideia me viera após ler um artigo sobre as maravilhas prometidas pelo e-book e também porque me lembrara de um outro, escrito por Machado de Assis, onde se discutia algo semelhante, ou seja, a morte do livro pelo jornal, que à época despontava como forte veículo de informação e cultural (ali muitos escritores publicaram seus romances em capítulos, os chamados folhetins). Coincidência ou não, embora não soubesse, um livro bastante interessante havia sido lançado na França, pela Grasset. Trata-se de N'espérez pas vous débarasser des livres, de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. Aos amantes dos livros é diversão garantida: um belo momento para refletir a circulação desse objeto ora tão desejado, ora tão odiado, e, refazer seu périplo ao longo da história. Embora pareça uma história anacrônica, esse bate-papo (já que o livro é todo em forma de diálogo) é sobre o futuro do livro. Um obra erudita, porém, atenta e acessível ao grande público.
A conversa toda é intermediada pelo ensaísta e jornalista Jean-Philippe de Tonnac. Os autores: Umberto Eco, reconhecidamente um expoente no mundo intelectual internacional é semiólogo, professor e escritor. São conhecidos seus dois grandes ensaios que questionam o funcionamento da linguagem: L'oeuvre ouverte e La structure absente (nomes que transcrevi das versões em francês). O grande público, porém, certamente o conhece dos best-sellers (diga-se, bons best-sellers) Le Nom de la Rose (O Nome da Rosa) e Le Pendule de Foucault (O Pêndulo Foucault), além de outros; Jean-Claude Carrière é dramaturgo, roteirista e autor de pelo menos trinta livros, dentre eles, Dictionnaire amoureux du Mexique, de 2009. Apresentados seus autores, o que vale é comentar a admirável reflexão sobre a movimentada história do livro, um diálogo envolvente a partir da perspectida desses dois leitores apaixonados que, entre coisas, esbarra no atual e inquietante futuro do livro frente às novas tecnologias - o e-book. As perguntas são inevitáveis: diante desse mundo tecnológico que se anuncia, o livro tal como o conhecemos está ameaçado? Ou essas novas ferramentas não passam de mais um lance, mais um episódio, de uma história que já conta mais de 5000 anos?
Para tentar tranquilizar o bom leitor que, dentre outras coisas, vê seu exemplar como um objeto de desejo, além, é claro, de experimentar instantes de prazer que ele proporciona, Eco e Carrière, evocam as peripécias de percurso do livro, ou seja, acidentes que envolvem a ignorância, a imbecilidade, a censura, os autos-de-fé, a inquisição e outras histórias que, sempre, tiveram como protagonistas, de um lado, o homem, em seus momentos de embrutecimento e, de outro, o livro, as grandes obras-primas, e sua capacidade de - como a Fênix, reaparecer, mais forte, e prometer sua sustentabilidade, entenda-se, sua perenidade.
Depois do tão alardeado crescimento das vendas de livros eletrônicos - no mercado americano, e a profecia de que isto resultaria numa mudança de hábitos dos leitores, o encontro desses dois escritores possibilitou a elaboração de curiosos pensamentos, claro, todos tendo o livro como protagonista. Eco, em entrevista à Télérama.fr, diz: “Le livre est une invention aussi indépassable que la roue ou le marteau” (O livro é uma invençao insuperável assim como a roda ou o martelo). Ou seja, malgrado as inúmeras variações, uma roda continua sendo uma roda e, um martelo, um martelo. Eco argumenta ainda sobre efemeridade dos eletrônicos, cuja vida útil, não vai além dos dez anos, ao passo que os livros como o meio mais fácil de transportar a informação, dependendo das condições de armazenagem, tem durabilidade incalculável. Outro dado importante nessa história é a praticidade. Como disse em meu outro post, livro não dá pau, não tem vírus (tem ácaros, traças - mas eles roem vagarosamente e não lhe surrupiam a informação num átimo). Acabou a energia? Sempre há uma vela em stand by.
Eco questiona ainda a vastidão das informações oferecidas na internet. O fato de armazenar um número infinito de obras é algo elogiável, porém, afirma o autor, há um problema que se coloca àquele que está acessando a rede mundial: o discernimento, afinal, lembra Eco: "Lá, encontramos tanto a Bíblia como o Minha Luta, de Adolf Hiltler. E o que fazer se uma obra não recomendável surgir na tela de alguém despreparado intelectualmente?", pergunta. "Esse será o problema crucial da educação nos próximos anos".
Ao afirmar: "Le livre a fait ses preuves. On ne peut rien inventer de mieux" (O livro já passou por suas provas. Não se pode inventar nada melhor), o jornalista que o entrevistou foi taxativo: mas, afinal, o que é um livro? Um objeto? Páginas a serem lidas? Um suporte? Um texto? Ao que Eco responde: "Um livro é uma série de páginas de texto e ou imagens reunidas por qualquer técnica que permita que seja folheado. Eis a estrutura do livro. Que as páginas sejam em pergaminhos ou em papel de celulose - como hoje, isso não tem qualquer importância". Ao ser questionado sobre a possibilidade de enumerar as páginas na tela, ironiza: "Ainda assim, continuamos com a estrutura do livro. O e-book, em que a foliação é possível, veio como uma novidade, que pretende emular o livro. Em certa medida, pelo menos, porque em um ponto ele não pode se igualar ao livro: o livro de papel é autônomo, ao passo que o e-book é uma ferramenta dependente, ainda que só da eletricidade. Robinson Crusoé, em sua ilha, se despuzesse de uma Bíblia de Gutenberg, teria algo para ler durante trinta anos. Se ela tivesse sido digitalizada em um e-book, ele teria se beneficiado, no máximo, durante as três horas de duração da bateria. Você pode jogar um livro do quinto andar e você irá encontrá-lo mais ou menos completo quando chegar lá embaixo. Se você joga fora um e-book, certamente será destruído". E completa: "Ainda podemos ler livros antigos de cerca de quinhentos anos. Por outro lado, não temos nenhuma prova científica de que o e-book pode durar mais de três ou quatro anos. Em qualquer caso, é razoável duvidar, dada a natureza dos seus materiais, a não ser que mantenha a mesma intensidade magnética durante quinhentos anos".
Carrière, de sua parte, lembra o prazer do colecionismo e afirma: "Cada livro traz uma personagem só para mim. Há obras que cruzam os séculos e outras não. Isso depende muito do gosto pessoal. Por isso que o livro tradicional não vai desaparecer". Enfim, histórias que rendem boas horas de prosa.

Nota: Edição em francês: N'espérez pas vous débarrasser des livres. Jean-Claude Carrière; Umberto Eco, entretiens menés par Jean-Philippe de Tonnac. Paris: Éd. Grasset, 2009.
Edição em português: Não contem com o fim do livro. Jean-Claude Carrière; Umberto Eco, tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Imagens: capa do livro em francês - Editora Grasset; caricatura de Umberto Eco e capa do livro em português, pela Editora Record, todas disponíveis no Google Images.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Candide e o melhor dos mundos possíveis

Quando pequeno (não há muito, rsrsrs), lembro-me de que os mais experientes, ao tentar explicar as sucessivas crises econômicas, comparavam o Brasil a outros países e sempre diziam: eles padecem com desastres naturais - terremotos, e nós, bem, nós temos os economistas. Hoje, porém, chego à conclusão de que nosso mal maior não são os economistas. A razão de nosso mal maior, de nossas desgraças, de nosso atraso moral, ético e intelectual (generalizo, claro!), enfim, de nosso mau humor, são os políticos. Essa categoria, que de tão extensiva em falcatruas e significados chega a cansar a sinonímica: o significante aparece bourré de sinônimos e intertextos outros: bando, cambada, súcia, choldra, caterva, gangue, corja, desfalque, roubo, desvio, trapaça, oportunismo, fisiologismo, corporativismo, quadrilha etc, etc, etc e analfabetismo. Analfabetismo sim! Afinal o direito ao voto é universal e para o Congresso parece valer a velha máxima da atração dos corpos, aquela história que acontece de você, leitor, estar caminhando tranquilamente por uma praça ou uma rua qualquer, vazia, calma e, de repente, alguém tropeça em você, inacreditavelmente, malgrado todo espaço à volta! Pois é, parece-me que para lá - o Congresso, se convergiram todos os senhores designados pela sucessão dos nomes que citei acima.
O porquê disso? Ainda ontem vi um programa humorístico na TV: em um dos quadros, gravado no Congresso, na Câmara dos Deputados, o entrevistador fazia perguntas aos tais senhores: qual o nome do presidente da Colômbia?, o que é DNA?, o que quer dizer a sigla PSDB?, o que é um partido político?, qual das duas Coreias e comunista: a do norte ou a do sul? (Isso tudo porque trazia um jornal em mãos e ali pescava assuntos que estavam na ordem do dia, portanto. é de se imaginar que qualquer parlamentar tivesse, ao menos, uma vaga ideia do que acontecia no mundo em 31.5.2010). Enfim, perguntas que - quero acreditar, qualquer estudante de nível mediano responderia com grande margem de acerto. Não é que eles (os deputados) erraram todas!!! E não estavam brincando não! Pelo contrário, se esquivavam temendo responder às questões! De pronto, entendi a razão da sofrível situação de nossa educação, a melhor do mundo, a crer nos programas políticos e na fala dessa elite altamente instruída acantonada em Brasília.
Porém, estaria sendo injusto caso não registrasse uma nota digna da síndrome de Macaé, como diria Diogo Mainardi. Um dos deputados do mais famoso partido de duas letrinhas disse que vivemos dias felizes, melhores impossíveis. Foi o bastante para que eu visse ali um Leibniz de Macaé. O cidadão acredita viver no melhor dos mundos possíveis do alto da farra e das mordomias que o cargo lhe assiste. Como sempre acho uma desculpa para meus volteios literários, acreditei melhor ausentar-me desse mundo podre e ir de volta ao passado, mais precisamente ao encontro do herói voltariano Candide.
Candide, protagonista do conto homônimo, é sobrinho bastardo do barão de Thunder-ten-Tronckh, razão de sua condição inferior em relação aos outros membros da família, no entanto, criado no castelo do tal barão, o jovem vive feliz e admira seu preceptor áulico, Pangloss, que lhe ministra a máxima de que tudo está para o melhor no melhor dos mundos possíveis. Ocorre que Candide amava Cunegonde, a filha do barão. O desejo o leva à transgressão de uma proibição social, em seguida, a repressão, e o jovem é expulso de seu paraíso terrestre.
A sequência de acontecimentos pelos quais o jovem há de passar lhe mostra que o mundo não era exatamente como Pangloss preconizava. Tão logo expulso do castelo onde vivia, Candide é recrutado pelo exército búlgaro e participa de uma guerra sangrenta, da qual nada compreende. Desertor, errante e mendigo, encontra seu preceptor, na Holanda, desfigurado pela varíola; vê Lisboa perecer sob o terremoto de 1755 e cai nas mãos da Inquisição. Milagrosamente salvo por Cunegonde, que sobrevivera a uma série de atrocidades e ora levava a vida de femme entretenue, Candide foge com a amada para a América, onde descobre a opressão dos jesuítas, o horror da escravidão e os hábitos dos selvagens. O pesadelo interminável em que se transformara sua aventura, repleta de tortura, horrores e brutais humilhações, é momentaneamente interrompido por sua estadia em Eldorado, protótipo da sociedade ideal. Enriquecido, Candide retorna à Europa; no entanto, em sua passagem pela França, Inglaterra, Itália e Turquia, o herói pôde constatar que o mal se sobrepõe em largo ao bem. Cercado de amigos que conquistara ao longo de sua viagem, Cacambo, seu fiel servidor e, Martin, um filósofo maniqueísta, Candide se instala em Propontide, onde reencontra Pangloss e Cunegonde, então, rabugenta e destituída de qualquer beleza, o que o entedia profundamente. Um velho turco o convence a esquecer os males do mundo e a cultivar seu jardim. Candide e seus amigos - sua micro sociedade, se dedica a essa prática, que considera a única suscetível de trazer aos homens a felicidade.
A priori, os parágrafos acima traçam o conteúdo do mais famoso conto voltairiano e permitem entrever uma narrativa cuja trama romanesca e extravagante é repleta de eventos burlescos e picarescos. O leitor se assombra com a sequência de fatos: após uma tempestade e um naufrágio, há mortes, mostras da crueldade humana, um terremoto, sequestros, resgates, fugas, perseguições, carnificinas, duelos, cenas de corsários, estupros, encontros e desencontros. Mas o que está por trás desta sucessão de peripécias que mal dá fôlego às personagens de se recuperar de um lance trágico antes de cair noutro?
Voltaire, preocupado em conceber uma estrutura que reflita as incoerências do mundo, engessa sua narrativa de temas presentes nos romances de aventura então em voga, de maneira a reiterar as vicissitudes da existência humana e com isso desmistificar a vida. Ao longo de Candide, no entanto, o ideal aparece como algo absolutamente quimérico. Os heróis típicos do romance sentimental sofrem, sob a pena de Voltaire, uma deformação radical. A princesa pudica, por exemplo, em Candide, na pele de Cunegonde, passa pelas mãos de diversos bárbaros, é violada inúmeras vezes e termina escravizada e lavadeira de um senhor, antes de ser resgatada por Candide. Este testemunha a dificuldade de viver em um mundo que destrói, a todo instante, o princípio otimista que lhe fora revelado por Pangloss.
Ora, o princípio preconizado por Pangloss é o da razão suficiente, preceito vulgarizado por Voltaire pelo ridículo através do aforismo le meilleur des mondes na esteira da filosofia de Leibniz. A razão suficiente, no sistema filosófico alemão, é o princípio segundo o qual nada acontece sem que haja uma causa ou ao menos um razão determinante, isto é, para cada acontecimento, situação ou condição, há uma razão que a justifique como a melhor que poderia haver, simplesmente porque Deus assim o quis, portanto, não haveria outra melhor, o que equivale a afirmar que, malgrado o predomínio da miséria humana reinante no mundo, a qual condena o homem a situações degradantes, este, ainda assim, continua a ser o melhor dos mundos possíveis, enfim, um otimismo[1] exacerbado ridicularizado por Voltaire.
Tal otimismo confere a Candide o status de texto moderno e atual, uma vez que o otimismo e as teses providencialistas estavam então no centro das discussões. Os anos que precederam a redação do conto foram marcados por uma grande admiração pela ciência em geral e particularmente pelas teorias de Newton, que tiveram, na França, Voltaire como grande divulgador. Este, contrário à filosofia de Leibniz, cujas pesquisas lhe foram transmitidas por Frederico da Prússia, em 1736, sustenta que ideias, conceitos e a filosofia sejam ancorados no cotidiano e no material, ou seja, isentas de certo metafisicismo, tal qual a filosofia leibniziana, que se propõe ao estudo do ser e da realidade vinculados às causas primeiras e aos primeiros princípios. Prova disso vem do próprio Voltaire que, em 1753, ao se instalar em Ferney, escreve para Mme Denis: “Il est bien doux d’être dans sa Maison, de la construire, de l’arranger.”
Os acontecimentos de 24 de novembro de 1755 fazem com que Voltaire se insurja contra a indiferença e a insensibilidade da filosofia aos fenômenos naturais que, de forma trágica, transtornam o espírito e a vida dos homens. O horror da Guerra dos Sete Anos, que eclode em 1756, também lhe perturba o espírito. Em correspondência à condessa de Saxe-Gotha (22.1.1757), não se contém e alfineta: “Que d’horreurs, madame, et que le meilleur des mondes possibles est affreux.”[2]
Nota-se, após esses acontecimentos, Voltaire aterrorizado e pronto a reconsiderar toda a visão de mundo que recebera até então, razão pela qual se aflige, se indigna, questiona e se revolta. Não lhe concebe a ideia de que tragédias e crimes sejam necessários à perfeição e à moral, porque delas resultariam um bem maior. Candide é fruto de um momento de rupturas e de desilusões. O ceticismo do gênio de Ferney, diante de um mundo pleno de ideias imobilistas, tal qual às de Leibniz, é direcionado para a literatura, donde Candide, um compêndio - ainda que paródico, contra todas as formas de opressão, obscurantismo, intolerância, barbárie e fanatismo.

A crer na teoria de Leibniz (e do Leibniz de Macaé) talvez mereçamos mesmo a casa de horrores que temos!

[1] Sobre o otimismo providencial de Leibniz, vale a pena transcrever trecho de seu Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberte de l’homme et l’origine du mal, de 1710, mais conhecido como Théodicée: “Le roi du monde pouvant choisir entre mille combinaisons, a choisi celle qu’il a jugée la plus facile et la meilleure, afin que le bien eût le dessus et le mal le dessous dans l’univers. C’est par rapport à cette vue du tout qu’il a fait la combinaison générale des places que chaque être doit occuper d’après ses qualités distinctives.” Citado em : Oeuvres de Platon, traduites par Victor Cousin. Tome Huitième. Paris : Pichon, Librarire-Éditeur, 1832, p. 471.
[2] VOLTAIRE. Voltaire à Ferney, as correspondance avec la Duchesse de Saxe-Gotha.Recuillies et publiées par MM. Évariste Bavoux et A. F.. Paris : Didier et Cie. Libraires-Éditeurs, 1860, p. 167.

Imagens: primeira edição de Candide; litografia: Candide encontra Cunegonde e Voltaire - todas disponíveis no Google Images.