Revista Philomatica

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Desejo de nomeada e hipocrisia na Bananalândia


Ah, quanta diferença entre o discurso e a prática, entre o ser e o não ser, entre o ser e a fraude, entre o camarão e o molho! Um leitor afinado à literatura machadiana há de ter reparado no desejo de nomeada de algumas de suas personagens. O escritor, é claro, parodiava, ironizava a hipocrisia reinante entre seus confrades e figuras eminentes na sociedade de sua época.
E por falar em eminência, vamos ao rol de títulos que fazem com que os medíocres se debatam e se digladiem entre si: se começarmos pelas universidades, de pronto temos a Vossa Magnificência ou Vossa Excelência, e como vocativos, Magnífico reitor, Excelentíssimo Senhor Reitor (o termo é usado mesmo para aqueles que surrupiam o erário e mantém seus clubes de suivants).
Em pleno século XXI, acreditem leitores, há seres afeitos a toda essa titulação, casca que esconde o podre dentro da fruta. Pois há! E isso não é o pior: há também os pequenos poderes. Assessores, presidentes de comissões, coordenadores e diretores de departamentos e, junto deles, toda uma legião de aduladores e puxa-sacos, ávidos por um naco de poder, uma verbinha aqui e outra acolá. Para isso, caluniam, tergiversam, blasfemam, insultam, imprecam, tumultuam e, claro, bajulam, seduzem e corrompem.
No meio judiciário a coisa é tão enojada quanto. Quem já não leu nos noticiários sobre as estripulias de juízes e ministros do STF/TCU/ETC/ETC, cujas biografias constroem-se em conchavo com o que há de pior na política e na criminalidade? Estes, nomeiam-se Meritíssimo Juiz ou Vossa Excelência e trazem como vocativos Meritíssimo Senhor Juiz ou Excelentíssimo Senhor Juiz. Para os advogados, aduladores por excelência, tais figuras são seres eminentes.
A proeminência, penso, que deveria ser intelectual e moral, na maioria das vezes é parda! Casos recentes como os dos ministros do TCU Aroldo Cedraz e Raimundo Carreiro, não me deixam mentir. Ambos, depois de se declararem impedidos para julgar um processo de superfaturamento, voltaram atrás ao ver que o ex-senador Efraim Morais e o ex-diretor geral Agaciel Maia, hoje deputado distrital em Brasília (os dois, ex-dirigentes do Senado e ligados ao MDB), seriam condenados a devolver ao menos R$ 14 milhões em prejuízos aos cofres públicos. Nada de novo no horizonte: mais um caso em que a canalha se junta e se acoberta.
Hoje não foi diferente, o “eminente ministro Marco Aurélio” (palavras do advogado do Lula), às vésperas do Natal, resolveu presentar a corja com a qual se coaduna. Numa canetada só deferiu uma liminar movida pelo jurássico PCdoB, libertando condenados em tribunais de segunda instância, o que, no frigir dos ovos, significa suspender “a execução de pena cuja decisão a encerrá-la ainda não haja transitado em julgado, bem assim a libertação daqueles que tenham sido presos, ante exame de apelação”.
Não sou douto em leis e direitos, mas, conversando com meus botões, constatamos o óbvio: trata-se de um indulto perpétuo de Natal para a “cumpanheirada” do ministro, a constituição é mentirosa porque sim, alguns estão acima da lei (o ministro, por exemplo, usando da subjetividade e da hermenêutica ao examinar as leis, aplica-as como lhe convém, portanto, está acima de todos e da lei, até mesmo porque não pode ser processado e preso), os tribunais de segunda instância são teatros, não valem de nada, haja vista a caneta do ministro desfazer tudo o que fizeram e, por fim, o povo é palhaço. Ave às eminências!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

República dos livros


Um pouco de paródia não faz mal a ninguém. Tampouco alguma ironia. O título, portanto, remete à República das Letras, designação que, desde a Renascença, congregava estudiosos que partilhavam traços, escritos, língua, valores e ideais humanistas comuns. Hoje, nesse torrão tupiniquim, chamemo-la de República dos livros. Afinal, afirma o nosso Cointet (ao menos é isso que deduzo a partir de uma série de réplicas destinadas ao sr. Luiz Schwarcz que pululam na internet): “o livro no Brasil vive seus dias mais difíceis”.
Não sou livreiro, mas entendo um pouco de livro, meu objeto de trabalho e razão de muito do que faço; sei das dificuldades ao produzi-lo, as etapas a serem vencidas (revisão, preparação de texto, editoração, produção da capa, impressão, etc) e, sobretudo, os esforços para levá-lo até às mãos do leitor. Não tiro a razão do sr. Schwarcz, mas, refletindo com meus botões, vimos nele um naco de ingenuidade, senão duas presas lupinas.
Vejamos: o sr. Schwarcz, é provável, um dia, talvez na adolescência, leu a obra que Balzac dedicou ao livro, portanto, é de se admirar que tenha perdido as ilusões a ponto de sugerir ao público uma rede de solidariedade em favor das grandes livrarias e editoras e que tenha se esquecido dos pequenos como David Séchard. Sim, porque me parece que o que mais alarmou o sr. Schwarcz foi o pedido de recuperação da Saraiva e da Cultura, duas gigantes do ramo, não as formigas livreiras em cujas costas sustentam caixas feito tartarugas.
Não o culpo por ter se esquecido do drama de Séchard, que padeceu nas garras dos Cointet. É claro, ele não está entre os Séchard de hoje, que carregam caixas de livros de cima para baixo em feiras de livros para lucrar, às vezes, nem 10% e, de quebra, expirar nas mãos gigantes das grandes livrarias e editoras.
Pequenos livreiros, assim como o sr. Schwarcz, “têm no afeto aos livros a razão de viver”, mas o têm à moda antiga, sem os holofotes das grandes negociações. A maioria deles aposta em cada livro publicado muito do suor que escorre dos seus rostos; não à toa leem o que publicam e, tal como Gide, ressentem-se de ver desperdiçada a grande chance por terem ignorado os manuscritos de Proust que porventura lhes caíram às mãos.
A Saraiva e a Cultura, desculpe-me, sr. Schwarcz, talvez não tenham recebido o seu recado para adentrar a rede de solidariedade. Exemplo disso talvez seja a compra do site Estante Virtual pela última; os leitores e habituais clientes da Estante hão de ter notado a recente majoração no preço dos livros – é sabido que a Estante Virtual era uma congregação de sebos do país, hoje, agregada a Cultura tem funcionado como uma Amazon mal ajambrada.
Pequeno livreiro, o sr. Pedro Paulo Graczcki[1], parece-me, exultou com a preocupação de Cointet ao afirmar que “o sr. Luiz Schwarcz, da Cia das Letras, escreveu uma pseudocarta de amor aos livros [...] nos ped[indo] algo que ele nunca teve: solidariedade e defesa de classe”, para, parágrafos depois, concluir: “Quer saber? Bem feito!”
Ao ler as razões do sr. Graczcki, pensei tratar-se de um ressentido, como encontrei alguns, mas este senhor expõe suas dificuldades e vemos nelas a consequência das garras do grande irmão, que mastiga as presas menores sem dó nem piedade. De todo o lacrimejo do sr. Graczcki, ficou-me a dúvida do porquê de as grandes editoras obterem um desconto de 100% de impostos e as pequenas apenas 7,8%. Falta de lobby? Eis aí, se a informação for verdadeira, a deixa para o sr. Schwarcz iniciar de fato uma grande rede de solidariedade. Vale ressaltar que conheço dois pequenos livreiros e ambos não recebem das grandes livrarias há cerca de dois anos.
Por outro lado, há o projeto de lei no 49, de 2015, de autoria de Fátima Bezerra (PT-RN) - senadora que se esqueceu de um dia ter sido professora – que propõe uma espécie de “lei do preço fixo”. A lei do preço fixo, parada no Senado, parece-me, corre agora a passos de serelepe, depois que o lobby dos editores reuniu-se com o Temeroso. Sob escudo eufemístico, Luiz Antônio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro – CBL, diz tratar-se de uma regulamentação de desconto, os mesmos descontos que o sr. Graczcki afirma que a Saraiva e a Cultura utilizam para destruir as pequenas livrarias: “Eu vi muitos colegas mudando de profissão depois de 20, 30, 40 anos de estrada porque os descontos praticados pela Saraiva eram muito superiores ao preço que vocês nos vendiam.”
Ocorre que agora em tempos de vacas magras, os grandes resolveram juntar-se à canalha política para defender seus interesses, afinal, apareceu a Amazon, que não só não atrasa o pagamento aos livreiros, como também lhes oferece antecipação do pagamento e, de quebra, tem um sistema de entrega que os outros parecem desconhecer. A Amazon, agressiva, vende livros, corteja, seduz o leitor a comprá-los, oferece descontos para entrega e/ou isenta o cliente do pagamento do frete na compra de determinado valor, enfim, a empresa faz o que faz com qualidade e não joga o ônus nas costas do leitor. Falta saber se ela trabalha com os pequenos.
Sobre lei a ser implementada com a benção do lobby das grandes editoras e livreiros, Carlos Carrenho, consultor da Publishnews, sustenta que ela não só castiga quem é produtivo e eficiente e consegue ter preços mais baixos, como tornará o preço médio dos livros populares e best-sellers mais caro, de modo que os livros populares subsidiarão os livros intelectuais e voltados para um público de classe média alta.
Como se vê, Carrenho desvela um jeito de raciocinar bem tupiniquim no mercado livreiro. Por fim, enquanto o país não desenvolver políticas públicas para o incentivo à leitura, é o que temos à frente, principalmente se figuras como a senadora Fátima Bezerra (PT-RN) não se curar da amnésia e se lembrar de que um dia foi povo e foi professora.


[1] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/bem-feito-voces-nos-ferram-ha-anos-carta-de-um-pequeno-livreiro-a-luiz-schwarcz/?fbclid=IwAR0ocxNQezeR5I3MCLd8uVBOfyTMYnqHr5cw25i1K0WULkbnRTOi8F5L6tw

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Semana de horror


O título basta por si, leitor. Caso tenha corrido os olhos pelas notícias produzidas ao longo da semana, há de confirmar o dito de Guimarães, para quem a vida era um rasgar-se e remendar-se. Machado, cético, resmungava por cima dos ombros largos de Cubas que “a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e remendos”; a caminho do portal que fará da campa o meu repouso, vejo tudo difuso e, tomado pela bílis do pessimismo, desacredito da natureza humana.
A descrença, contudo, a despeito dos interesses e principalmente quando se trata de escolher um lado, não nos deve deixar dúvida sobre qual dos lados escolher. Embora muitos hesitem, sempre escolho o lado dos mais fracos. O caso de crueldade animal que se passou no Carrefour esta semana é mais uma confirmação de que estamos próximos (talvez nem tanto, mas já estivemos muito mais longe) do dia em que matar uma animal será o mesmo que matar um dos nossos – não digo humanos porque a muitos da nossa espécie o adjetivo não se justapõe. 
Os requintes de crueldade com que mataram o pobre cão, somada à gratuidade da ação, faz-me desconfiar daqueles grandes homens da Renascença, que acreditavam ser o humanismo um ato de fé na natureza humana. O humanismo, hoje definido como uma doutrina que tem por objeto o desenvolvimento das qualidades do homem, parece-me, nunca considerou seu antitético, a perversidade e a crueldade constitutivas da alma humana. O que vimos essa semana nos domínios do Carrefour mostra-nos o engano de Rousseau. Não, não, nem sempre a sociedade é a responsável por “nossa” (entre aspas porque generalizo e refiro-me à parcela de homens psicopatas que habita os subterrâneos dos infernos e cuja psique é povoada pela violência, a crueldade, a tirania e o desrespeito à vida) degeneração; creio que há casos em que, por um desvio da natureza, a maldade é gerada no ventre de mães caridosas e, do mesmo modo que Schopenhauer afirma que a vontade em-si nos obriga a agir em função da procriação, também o caráter é forjado em um estado de não-ser, quando o indivíduo jaz ainda em mar infinito, à espera de tornar-se uma simples e visível gota d’água. Rousseau enganou-se: bon sauvage! Que balela! Grande parte da nossa espécie é composta de selvagens no sentido moderno do tempo, seres inescrupulosos e cruéis, tal como o segurança do Carrefour, o gerente do Carrefour, os funcionários do Centro de Zoonose de Osasco, que queimaram provas e omitiram-se em várias etapas de um processo que poderia punir os culpados e, sobretudo, os expectadores. Sim, nas fotos vi expectadores: seres passivos, covardes e coniventes, tão culpados quanto aqueles que fizeram o serviço sujo, seres que se omitiram ante à violência.
Mas a semana não foi só dos horrores do Carrefour, o horror também alçou voo e ganhou os ares. Abordado por um cidadão que, dentro de um avião expressou a vergonha que sentia por seus tão vis representantes, um medíocre representante do STF, chamou a polícia, exercendo a tirania que a lex dura lex lhe outorga. Poderia não tê-lo feito e mostrar um pouco da grandeza que acredita possuir. Porém, julgando-se intocável, não só o fez como, ao explicar seu feito, valeu-se da retórica jurídica, dizendo estar em defesa de uma instituição que representa o país. Ora! Nós, gotas visíveis que escapamos à regra rousseauísta (falo da perfeição teorizada pelo filósofo) não partilhamos da mesma perfídia representada por Vossa Excelência. Sabemos que a casa que o abriga hoje é alvo de todas as suspeitas, e a mesma procurada por ladrões, burocratas, indolentes e corruptos – alguns juízes – quando estão à procura de guarida.
O horror vivido por famílias que têm a vida dos seus ceifada pela violência das ruas já virou estatística. Isso não conta! O horror da violência contra a mulher e as crianças, isso também não conta. A violência contra idosos, isso também não conta. Já nos acostumamos. Talvez a morte do pobre e indefeso animal seja uma chacoalhão nessa nossa letargia. Felizmente descobrimos sob a casca grossa que tomamos como escudo uma fissura, pela qual respiram sentimentos e alguma humanidade.


quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Fragmentos de tempos


Lembro-me de um tempo em que, nas aulas de teatro, o diretor nos obrigava (Obrigava não! O que fazíamos, só o fazíamos porque aquilo nos alimentava a alma e sonhávamos com tempos em que a arte, soberana, pudesse dirimir a ignorância, impondo-se entre as fissuras que esta, por sua natureza, com conseguia preencher.) à repetição de exercícios em que precisávamos demostrar certa interioridade, isto é, extravasar vida e emoção nos tais movimentos - técnica grotowskiana que, porcamente comparada ao FLE, levaria os entusiastas actionnels a espasmos orgásticos.
A razão deste intróito à deriva nada mais é que minhas repetições, afinal, em busca do carro das notícias, o que vejo, obriga-me (agora sim!) à repetição contra um sistema ao qual, confesso, não me acostumei. Talvez antes não me desse conta da hipocrisia e da mediocridade que campeava à minha volta, por estar eu mesmo medíocre. Mas hoje, depois de Machado, Shakespeare, Calvino, Eco, Tolstói, Dostoiévski, Adorno, Habermas, Arendt, Stendhal, Balzac, Goethe, Alighieri, Lima Barreto e tantos outros (os nomes me vêm às enxurradas), é difícil não querer espernear, debater-se para sair do lodaçal de informações falsas que a imprensa tenta nos submergir. Vá lá! Não havia notado, leitor, que minha ranzinzice era, mais uma vez, contra a imprensa e seus esforços para dissimular a verdade (se é que esta existe!)?
Deixemos de lado a tão cantada imparcialidade que qualquer jornalista (se tal espécimen ainda existir) com vergonha na cara jamais ousará afirmar possuir, pois em nossos dias esta já não entra no rol das dissimulações ensaiadas pela grande imprensa. Também não vou falar da perversidade das agências de notícias, mas talvez, por eco, venha a elas de qualquer forma.
Prefiro falar desse nosso tempo contemporâneo e fragmentado, em que se tem a impressão de que nada mais pode ser criado, afinal, para se criar algo novo deve-se romper com o estabelecido. Como então romper com a modernidade? Tornando-se pós-moderno? Ora, esta definição já é passado e, se um dia excitou os espíritos, hoje não passa de um indicador cronológico. O que fazer nesse mundo de globalização e hiperinformação, em que desacreditamos até mesmo de nossos tempos passados e o que nos resta são estilhaços e uma cacaria generalizada pior que a mediocridade, pois os cacos, ceramizados, exteriormente nos induzem a acreditar em uma reconfiguração da imaginação?
Tudo engodo, leitor! Eles nos fazem crer criativos, mas não só embotam nossa inteligência, como surrupiam nossa capacidade de ver livremente novos horizontes, de modo que só nos cabe, como dizia Borges, maus tempos para viver. As mudanças, almejadas por todas as gerações, em nossos dias são dissolvidas com a ajuda de um rebaixamento da cultura, hoje feita para a alienação dos indivíduos e comprometida em dissimular a ruína em que vivemos.
Nesses nossos tempos de intensa narrativa visual, em que fragmentos da vida pessoal impedem o raciocínio a partir de uma totalidade - apesar do forte impacto que a imagem do almoço da celebridade da novelinha possa causar em seus seguidores do Instagram -, felizmente, uma centelha de leitores busca as narrativas escritas, ainda que estas reproduzam as crises e as fobias de uma geração individualista, drogada, hiperconectada, consumista e fútil, de modo que não nos resta outra coisa além da desconfiança e do ceticismo, tentativas de amalgamarmos fragmentos de nosso tempo para que, um dia, quiçá nos reconheçam. Mas precisamos disso?