Revista Philomatica

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Quotidiano

Segunda-feira de manhã, em Sampa.

7h00: abro a janela e, mais uma vez, imprimindo à espiadela matinal um caráter rotineiro, desvio o olhar à procura de um fragmento da Serra da Cantareira, essa estreita faixa verde no horizonte que ainda me é permitida contemplar por entre a grande muralha de concreto. Obra de uma multidão de arquitetos egocêntricos e benevolentes que, numa versão medieval estilizada, elevam-na cada vez mais ao céu; às vezes, suas altas torres me impedem de apreciar até mesmo as nuvens carregadas pelo vento, cujas formas díspares se transformam ao sabor da imaginação (hábito que não perdi) e, num átimo, levam-me de volta à infância.

Num movimento vertical, meu olhar se escorrega para o chão, hoje um asfalto duro e resistente à vida. Lá, na direção de minha janela, por onde dou asas aos pássaros brancos das nuvens, jaz um corpo estendido no chão. Não, ao pular do viaduto, não morrera na contramão como diz o poeta. Mas, ainda assim, atrapalha o trânsito. Impacientes, os motoristas descansam a mão em suas buzinas, porém, ao se aproximarem, silenciam-se, talvez num ato de contrição diante da finitude, penso. O sangue destaca-se no preto do asfalto e ironicamente traz certa umidade à seca da cidade, escorrendo para o lado e desenhando um mapa hidrográfico onde se vê um traço profuso e caudaloso partindo da cabeça, fazendo deste um grande rio que se desdobra em múltiplos afluentes, tal qual o Meschacebé de Chateaubriand.

Momentos depois colocam sobre o corpo um papel laminado e de cor prata, trazendo forçoso brilho à tragédia e destacando de modo involuntário o pequeno relevo em meio à avenida, agora atrativo aos transeuntes que, diferentes dos interioranos, não mais reservam pequenos sinais sagrados para essas ocasiões, mas, munidos de nova tecnologia fotografam, escolhem melhores ângulos e filtros e, muito provavelmente, publicam. O anônimo tem lá seus quinze minutos de fama. O que quer que a vida tenha lhe negado, persiste. Destituído de qualquer individualidade, torna-se simples pano de fundo para o ‘selfie’ de um passante mais despreocupado.


O corpo jaz estendido no chão até pouco antes das onze da manhã, quando uma van com três discretas letras em cor verde grafadas em minúsculo – iml – encerra o espetáculo, deixando sobre o asfalto apenas um rastro em vermelho que agora sim pode ser identificado por Michelin, Pirelli, Firestone, Goodyear... Retirados os cones e liberada a avenida, os veículos avançam multiplicando os rastros e proliferando as marcas. A cidade, qual uma esfinge, sequer move seus olhos diante da vida que se esvai. E a morte continua...

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

"A fronteira porosa entre ficção e realidade"

A filosofia, sobretudo, há tempos tem-se debruçado sobre uma questão que intriga o pensamento humano: como delimitar a fronteira entre ficção e realidade? Lembro-me, por exemplo, de um relato em que Umberto Eco comentava sobre uma pesquisa realizada em Londres, na qual um quarto das pessoas entrevistadas acreditava que Churchill e Charles Dickens eram personagens imaginárias, ao passo que Robin Hood e Sherlock Holmes haviam de fato existido. Isto sem falar, é claro, na habilidade de todo grande artista em disfarçar a realidade; disfarce, aliás, que talvez dê início - e sentido -, à discussão. A arte da pintura, a fotografia e o cinema trazem hora ou outra a ilusão de realidade e a sensação de "realismo" apodera-se do apreciador e ou espectador, embora este saiba estar frente à ilusão. Como então "transmitir" o real se mesmo na realidade das imagens, às vezes, há muito de ficção? Tome-se um documentário: não raro nos deparamos com relatos "fabricados" em que a "história real" é subjugada à leituras várias, por exemplo, fazendo com que, por meio deste desvio, a realidade ganhe viés ficcional. 
Pensando nisso, resolvi reproduzir a criativa e deliciosa crônica de José Ribamar Bessa Freire, publicada em 24/8/2014, no Diário do Amazonas. "A fronteira porosa entre ficção e realidade", descaradamente roubei de Bessa Freire, que é real e existe - ao menos há um Lattes disponível na rede contando sua pregressa vida intelectual. Boa leitura!

Thiago de Mello existe?[1]

O que é fato e o que é invenção? Há três anos, o escritor Milton Hatoum deu conferência magistral sobre a fronteira porosa entre ficção e realidade na abertura do V Encontro de Letras em Campos dos Goytacazes (RJ), cujo tema era territórios da memória. Tive a sorte de ouvi-lo, porque os organizadores também me convidaram para falar sobre a história da língua e sua relação com a identidade. Fomos juntos. No caminho, na estrada, relembramos fatos vividos desde 1981, quando nós dois, amazonenses, nos conhecemos - incrível! - em Paris, num jantar na casa do escritor peruano Julio Ramón Ribeyro.
Mas a história inacreditável que Milnton Hatoum narrou para um auditório lotado que se deslumbrou, essa eu não conhecia. Foi assim. Quando ele era professor na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em 1984, foi procurado pelo conhecido jornalista inglês, Bob Misleading, da BBC, que preparava reportagem sobre o cientista britânico Joseph Oversea, assassinado por um índio, em meados do século XIX, nos arredores de Manaus.
Milton conhecia muito bem relatos de vários naturalistas que viajaram pela Amazônia, mas nunca ouvira falar naquele nome:
___ Joseph Oversea? I don't know.
Bob explicou que o cientista era desconhecido porque era gay e viveu em plena era vitoriana. Por isso, foi censurado pelo puritanismo dominante e condenado ao anonimato. A rainha Vitória, nos 64 anos de seu reinado, manteve-o no ostracismo, apagou-o dos arquivos e até proibiu a publicação do seu livro, onde havia um desenho a bico de pena que retratava uma cachoeira em Manaus.
___ Quero localizar esta cachoeira, que é o túmulo do Oversea, morto em 1850, com uma flecha que lhe perfurou o coração, atirada por um indio Passé - disse Bob, exibindo para Milton a gravura dentro do livro. Acrescentou que a reportagem que preparava para a BBC era a forma de tornar conhecido o injustiçado cientista.
Não foi tarefa fácil. Hatoum conhece bem Manaus, mas a cidade mudou muito depois de século e meio de história. De lá pra cá, igarapés foram aterrados, rios morreram e viraram esgoto, ruas ocuparam o lugar da floresta, carros substituíram canoas. O escritor convidou o jornalista a percorrer os bairros em busca de cachoeiras. Passaram pela Cachoeirinha na terceira ponte, visitaram o Tarumã, o Mindu, as Pedreiras, observando tudo, até que na subida do bairro de São Jorge, se detiveram na Cachoeira Grande, que serviu ao primeiro sistema de captação de água de Manaus.
___ Foi aqui - gritou Hatoum, animado.
O jornalista Bob Misleading confirmou, depois de comparar a paisagem que via com a gravura antiga. Fez, então, ali mesmo, várias tomadas para a BBC: shotstakes and the devil at four. À noite, jantaram uma costela de tambaqui no Canto da Peixada. O gringo, que era chegado numa cachaça, emborcou dez caipirinhas. Chegou no hotel catando cavaco. No dia seguinte, voltou para Londres, Milton foi dar aulas na Universidade e os dois não se falaram mais.
Cinco anos depois, Milton Hatoum decidiu fazer uma biografia do naturalista assassinado. Entrou em contato com uma amiga que morava em Washington, pedindo que buscasse dados sobre Joseph Oversea na Biblioteca do Congresso, que tem TUDO o que foi publicado no planeta terra. No entanto, no acervo com 160 milhões de títulos, entre os quais 40 milhões de livros catalogados e 70 milhões de manuscritos em mais de 500 idiomas, nada havia sobre o mencionado cientista. Nem uma vírgula. A férrea censura vitoriana tinha sido eficaz. 
Intrigado, Hatoum viajou a Londres e procurou o jornalista no endereço da BBC, em Portland Place, mas Bob havia sido demitido. Uma secretária chamada Scarlett forneceu o telefone da Bloomberg TV, onde ele agora fazia uns bicos. Marcaram um encontro num pub em Portobello Road, no bairro Nothing Hill. Lá, numa taverna hash house, que é o nosso popular dirty foot, Milton falou de seu projeto literário e perguntou onde podia consultar documentos relativos a Oversea. A resposta foi uma gargalhada de Bob, que continuava cachaceiro e já estava na décima dose de dry gim:
___ Milton, eu não te falei? Joseph Oversea foi uma invenção minha, eu criei o personagem e a história.
___ Mas eu vi a cachoeira. E a imagem da cachoeira?
___ Ah, essa foi uma gravura que retirei do livro A narrative of travels of the Amazon and Tio Negro, do botânico Alfred Russel Wallace.
O auditório, hipnotizado, escutava Milton Hatoum, que discorreu sobre a ambiguidade entre o real e o ficcional sempre presente na literatura. Comentou que um texto ficcional não é um relato factual do que aconteceu, mas aquilo que poderia ter acontecido, que explode na consciência e na memória do escritor e toma forma de discurso. Concluiu sua conferência com frase de impacto:
___ Oversea não existia, mas passou a existir depois que Bob o inventou e existe agora para vocês, neste momento em que acabo de contar sua história.
O público aplaudiu efusivamente o conferencista, grato pelo sopro que deu vida a Oversea. Fiquei tão maravilhado, achei tão engenhosa a forma de expor a questão que saí repetindo a história em minhas aulas, nas rodas de conversa e nos mares da vida. Um mês depois, viajo a Brasília e encontro lá Thiago de Mello, para quem faço um resumo da conferência, ainda embriagado de entusiasmo. O poeta me ouve com um sorriso moleque e quando termino diz:
___ O Milton já tinha me contado. Mas ele não te falou que esse jornalista da BBC também não existe? Nunca existiu, nem o cientista, nem o jornalista. Ambos são personagens do Milton Hatoum, essa história nunca aconteceu, é tudo invenção do escritor.
Fiquei maravilhado ainda com esse final e o incorporei à narrativa que costumo fazer em sala de aula. Numa das vezes, uma aluna me perguntou:
___ Professor, e o Thiago de Mello? Ele existe mesmo?
Com o espírito do Milton Hatoum, respondi que se o Thiago de carne e osso existe, eu não sei e também não importa. Sei que ele é um personagem, uma invenção dos cabocos amazonenses e dos leitores espalhados pelo mundo, incluindo a própria aluna perguntadora, que conhecia de cor e salteado "Os Estatutos do Homem" traduzido para mais de 30 idiomas. Thiago de Mello existe porque é lido com prazer e, agora, aos 88 anos, surge como candidato a uma vaga na Academia Brasileira de Letras que nunca abrigou um amazonense e, portanto, não será inteiramente brasileira, enquanto uma de suas cadeiras não for ocupada por um caboco suburucu popa de lancha, bandeira azul.
P.S. - Como o tema se prestava para tal, preenchi com a imaginação as lacunas da memória sobre a conferência, que foi efetivamente dada em outubro de 2011, em Campos. Invoco o testemunho do próprio Milton e da professora de literatura brasileira da Universidade Federal Fluminense, Stefania Chiarelli, presente no carro na viagem para Campos e que também deu sua conferência sobre o seu livro Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum, publicado em 2007. O referido é verdade e dou fé.

[1] Esta crônica também está publicada no site oficial de Bessa: http://www.taquiprati.com.br
http://www.taquiprati.com.br
Imagens: Extraídas de: http://www.taquiprati.com.br

sábado, 23 de agosto de 2014

Non Plus: Revue académique dédie dossier au XVIIIème siècle français

Conçue par les élèves du programme d'Études Approfondis en Linguistique, Littérature et Traduction, du Département de Lettres Modernes, de la Faculté de Philosophie, Lettres et Sciences Humaines (FFLCH), de l'Université de São Paulo (USP), la revue Non Plus est une publication semestrielle, diffusée exclusivement en ligne, publiant des travaux d'enseignants et d'étudiants universitaires des disciplines associées à la littérature et aux sciences du langage concernant la langue et la culture française et / ou francophone. 
La revue accepte également la soumission de traductions de textes dans le domaine public concernant les champs couverts par la revue, des critiques de livres, thèses et mémoires (pour avis de thèses et mémoires, l'auteur aurait dû participé du jury de la soutenance); et même les rapports d'expérience en enseignement, à condition qu'ils soient placés dans une activité de recherche scientifique et dans le cadre de l'enseignement de la langue ou de la littérature française et /ou francophone.
En outre, pour ce sixième numéro nous aurons un dossier consacré au XVIIIème siècle français, raison pour laquelle nous invitons les enseignants et les étudiants (y compris ceux de licences, master et doctorat) à soumettre des articles portant sur une recherche en cours ou sur les résultats d'une recherche terminée. À noter que les projets de mémoire ou de thèse ne sont pas acceptés pour le dossier.
Articles et résumés doivent être envoyés à l'adresse http://www.revistasusp.usp.br/nonplus, jusqu'au 15 (inclus) septembre 2014 (Vous devez vous inscrire en tant qu'auteur sur le site). Un accusé de réception vous sera envoyé. Les personnes dont les articles seront acceptés pour la publication auront par la suite un délai (à être défini) pour en remettre une version avec les dernières modifications. La mise en ligne du 6e volume de la revue est prévue pour la fin de décembre 2014.
Nous profitons de cette occasion pour vous inviter à exploiter les numéros antérieurs sur http://www.revistas. usp.br/nonplus/issue/current et à apprécier notre page sur Facebook: https://www.facebook.com/nonplus.revista
Et, si vous avez des questions, n'hésitez pas à nous contacter, écrivez à nonplus@usp.br ou envoyez-nous un message sur notre page Facebook!
Au plaisir de vous lire!

Image: Une Soirée chez Madame Geoffrin par Gabriel Lemmonier. 

Non Plus: Revista dedica dossiê ao século XVIII francês

A Revista Non Plus, publicação eletrônica semestral dos alunos do programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês, do Departamento de Letras Modernas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, abre inscrição de artigos para sua sexta edição.

Chamada para submissão de trabalhos: (Dossiê temático: Século XVIII francês)






Temos o prazer de convidá-los a submeter trabalhos para o número 6 da Revista Non Plus (ISSN: 2316-3976), publicação eletrônica semestral dos alunos do programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês, do Departamento de Letras Modernas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP).
Serão aceitos para submissão artigos de temática livre e caráter teórico que contemplem os segmentos de Didática, Estudos Literários, Crítica Literária, Língua Francesa e Tradução, relativos à língua e cultura francesa e/ou francófona.
A Revista também aceita a submissão de traduções de textos em domínio público relativos às áreas abordadas pela revista; resenhas de livros, teses e dissertações (no caso de resenhas de teses e dissertações, o autor deve ter participado da banca de defesa ou qualificação); e ainda relatos de experiência didática, contanto que estejam inseridos em uma atividade de pesquisa científica e no contexto do ensino de língua ou literatura francesa e/ou francófona.
Neste número 6 teremos um dossiê dedicado ao SÉCULO XVIII FRANCÊS, com destaque para a literatura, cultura e experiências político-científicas que marcaram o século das Lumières. Para tanto, desde já convidamos alunos e professores a submeterem seus artigos.
No intuito de fomentar o diálogo entre as várias etapas da vida acadêmica, aceitamos a submissão de artigos de alunos de graduação, de pós-graduação, de professores e demais pesquisadores.
Os artigos deverão ser submetidos pelo site até 15 DE SETEMBRO, sempre através do endereço: http://www.revistas.usp.br/nonplus. (É necessário cadastrar-se como autor.) O número tem publicação prevista para dezembro de 2014.
Lembramos ainda que os autores devem observar as normas de publicação disponíveis no endereço: http://www.revistas.usp.br/nonplus/about
Contamos com a ajuda de todos na divulgação dessa chamada.
Aproveitamos para convidá-los a apreciar os números anteriores da revista, no endereço: http://www.revistas.usp.br/nonplus/issue/current. E a "curtir" nossa página no Facebook: https://www.facebook.com/nonplus.revista
Quaisquer dúvidas, escrevam para nonplus@usp.br ou mandem-nos uma mensagem em nossa página no Facebook!

Não perca também a oportunidade de ler o número 4 da Non Plus, com um dossiê dedicado a Pascal Quignard no site http://revistas.usp.br/nonplus


Imagem: Une Soirée chez Madame Geoffrin par Gabriel Lemmonier. Extraída do Google Images.


terça-feira, 19 de agosto de 2014

A perversão da leitura

Não é nenhum absurdo afirmar que o grupo de leitores continua bastante reduzido. Em minhas últimas garatujas, retomei certo articulista que afirmara ser de no máximo seis minutos o tempo dedicado à leitura no Brasil. E, embora as livrarias estejam apinhadas de pessoas (leitores?), não é claro que tenham contribuído para a melhora do índice. Bem, pergunta-me você leitor, qual índice? Sei lá, o índice que aponta a quantidade de almas que leem; afinal, talvez ainda acredite na sacralidade do livro, este objeto que encerra verdades que escapam aos homens. Também só me lembrei disso por causa das minhas leituras e, como o velho adágio afirma que quem conta um conto aumenta um ponto, escorreguei-me para o intertextual e, de repente, ouvi a fala de Jean-Claude Carrière saltar das páginas e me contar sobre um filme de Laurel e Hardy, suas personagens prediletas. Pois bem, segundo Carrière, Laurel afirma alguma coisa e Hardy, refuta-o, perguntando se tem certeza do que acabara de dizer. Laurel, crédulo, responde: "Tenho, li num livro."
O mesmo se deu comigo: acreditei no dito articulista e agora quando alguém me diz que passou quinze minutos com os olhos pregados em uma página qualquer, já olho para esse alguém com certa intimidade, correndo até mesmo o risco de ser mal interpretado! 
Mas não nos menosprezemos! Umberto eco, há pouco mais de cinco anos, afirmara que em se tratando de leitura, a Itália situava-se imediatamente antes de Gana. Eu acreditei! Acreditei porque li num livro e também porque acho que em Gana há poucas livrarias - e bibliotecas -, lugares onde os ingleses, por sua vez, preferem ir à busca de livros.
Na Itália - como aqui -, jornais e revistas esporadicamente usam o artifício de "presentear" seus leitores com livros (e ou CDs e filmes), talvez na tentativa de atribuir certa credibilidade a periódicos já há muito abandonados pela genuína e imparcial reflexão. As revistas e jornais teimam em imitar a TV ao confundir, ideologizar e relativar as sinapses de seus pobres leitores - e ou expectadores. No caso, tem-se articulista e leitor, ambos, pervertidos: o primeiro, no sentido de que se corrompe ao se deixar levar pelos interesses da política "parva e sanhuda", vendendo sua alma ao diabo e esquecendo-se de toda e qualquer imparcialidade; já o leitor, perverte-se porque ao dar crédito à letra impresa, desmoraliza-se, às vezes, por pura imprudência.
Mas não é essa a perversão que tinha em mente. Pensara na devassidão, na depravação e nos desvios de comportamento que nos levam para longe da realidade, do certo e do errado (se é que, de fato existem) e nos conduz a uma decadência moral e a um gozo tão excitante quanto o prazer que nos proporciona Iago, mesmo quando nos dá calafrios ou apequena o Satanás de Milton, ou ainda quando nos deparamos com as peripécias de Brás Cubas, o defunto-autor. Para os depravados, a lista é imensa: Proust, Cervantes, Dante, Montaigne, Voltaire, Machado de Assis...
Essa perversão só a leitura provoca...
A devassidão, porém, não é casual, mas dá-se também pela constância; algo como a ninfomania ou o priapismo, portanto, pervertido é aquele leitor que vive com seu livro na bolsa, abre-o tão logo - e milagrosamente - consiga um lugar no metrô para se sentar, ou ainda quando se encosta nos pontos à espera de um ônibus. No ônibus mesmo, impossível. Falo de São Paulo, claro, onde os ônibus não rodam, mas sim trotam, tornando proeza aos olhos aprisionar as palavras que saltam das páginas feito pipoca quando estoura na panela.
A perversão configura-se então naquele senhor que, nos anos 80, se sentava na estação de metrô Hôtel-de-Ville, colocava ao lado quatro ou cinco livros, esquecia-se dos transeuntes, perdendo-se intermitentemente em uma ou outra história à medida em que mudava de livro. Fazia isso por semanas a fio, interrompendo sua leitura diária apenas para almoçar e, às seis da tarde, quando terminava uma rotina semelhante à de qualquer operário. Segundo Carrière, de quem roubei o relato, este senhor lia de tudo: romances, história, ensaios. Vê-se, a partir disso, que o pervertido não tem lá muito critério. O que lhe cair nas mãos é proveito, ganho, algo libidinoso.
A libido, esta, é complexa! As taras, tal qual o gosto daquele senhor do metrô, são várias, prova de que nem todo mundo goza com as mesmas leituras. As razões são diversas: alguns, masturbam-se com Marx e se esquecem da estética pura e simples ao ler Shakespeare; outros, a exemplo dos surrealistas, são seletivos e criam listas (Breton) de quem se deve ou não ler: leiam Rimbaud, Hugo, Rabelais; não leiam Verlaine, Lamartine ou Montaigne, e por aí vai...
Há ainda os que não querem saber nem de uma coisa e nem de outra: deixam para a Escola dos Ressentidos a harmonia social e a luta de classes e a estética para 'as elite' e se enchafurdam nos ditos libertinos. Sade, o grande representante, soa profético! Isso sem falar nesses "livres qu'on ne lit que d'une main" (livros que se leem só com uma mão), deliciosa especialidade do século XVIII.
Como se vê, Dante é que tinha razão, quando, ao arrumar o Inferno, nos colocou no nível oito abaixo no oitavo círculo, bem pertinho de Satanás.


Imagem: RESTIF DE LA BRETONNE, Nicolas Edme. Histoire de Madame Parangon. GIRARD, Daniel (Illustrateur), extraída do site: hhttp://www.librairie-curiosa.com/2013_12_01_archive.html?zx=da4ac2f6eecfbe53    

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A "simplificação" d'O Alienista e a "mão forte" do David de Michelangelo

Algumas polêmicas como La querelle des anciens et des modernes e controvérsias como La querelle sur la poésie La querelle sur Racine foram objeto de inúmeros debates e injetaram ânimo às discussões. Há casos - como o problème Molyneux -, em que uma simples indagação respondeu por centenas de páginas escritas, respingando, mais de um século depois - via Diderot -, no Brasil oitocentista, quando Machado de Assis colocou lenha na fogueira que Paula Brito armara nas páginas d'A Marmota (1858), naquilo que se tornaria conhecido como Polêmica dos cegos.
Hoje, vivemos tempos em que tudo deve ser mais palatável, as palavras devem ser ruminadas por aquele que escreve e depois regurgitadas de forma bem simplesinha para que o leitor possa "captar a mensagem". Mas, pergunto, devemos nos pautar por essa regra, sempre? Não há aí um certo nivelamento por baixo? Alguns acreditam que assim é que deve ser, afinal vivemos em "um país em que metade da população não leu uma só página de livro nos últimos três meses e a média de tempo dedicado à leitura por dia é seis minutos", retomando Danilo Venticinque, articulista da Revista Época, em artigo que menciona uma crítica brasileira reclamona que intermitentemente ressurge das catacumbas com seus purismos[1], mas não trata da diferença entre adaptação e simplificação.
Bem, mas por que tudo isto? Porque neste final de semana[2] estive presente em um debate sobre a simplificação dos clássicos, onde se tentou, mais uma vez, emergir a polêmica de sob a poeira. Ali, numa conversa interessantíssima com as professoras Guaraciaba Micheletti e Helena Gomes, os presentes souberam que a adaptação contempla - e funciona - , sobretudo, através da transposição entre gêneros  - e como forma de suporte -, casos em que uma releitura para o cinema e a televisão leva a repensar o clássico e, quiçá, desperta a curiosidade, captando, assim, novos leitores, ao passo que a "simplificação" se insere no que chamamos mutilação [3]
Dada a quantidade de pessoas - e opiniões -, notou-se claramente que nem de longe o assunto está fadado a submergir sob a poeira, ao contrário do que postulam os partidários da Escola do Ressentimento[4]
Afora o tema tratado, chamou-me a atenção o fato de que o público presente hora ou outra trazia à tona a escola. Por um instante, a educação foi relacionada à leitura ou à falta dela, tornando-se ela mesma objeto de uma polêmica cuja agitação afasta todo o pó, tornando-se perene em razão das dificuldades vividas por professores e alunos frente à indiferença do poder público. 
Por fim, também veio à luz o abaixo-assinado em que leitores e críticos pediam a não dilapidação do conto machadiano, quando se ressaltou que um outro articulista o vira como um ato conservador, portanto, veículo contrário à liberdade de expressão. 
Embora a ocasião não permitisse alongar a prosa para o campo das questões ditas libertárias, ficou claro que parte da intelligensia, distante da interpretação estética, preocupação mais individual que de sociedade, prefere interpretar a mutilação da escrita machadiana sob o cunho da crítica social. 
Escritores influenciam outros escritores e, sobretudo, leitores. E, retomando Bloom, se o "eu indivídual é o único método e todo o padrão para a apreensão do valor estético" (2010: 37), ainda que esse "eu individual" só se defina contra a sociedade, como o leitor apreciará a fina ironia machadiana em O Alienista se, num processo de ablação, os funcionários de Patrícia Secco, encarregaram-se, principalmente, da mutilação da escrita. Considerando-se que  "não existem sinônimos perfeitos"- como afirmou a Profa. Micheletti - , o problema se complica.  
Por fim, como rubriquei o tal abaixo-assinado, voltei para casa questionando meu lado conservador, contrário à liberdade de expressão, essa prostituta que, a exemplo da democracia, cada um usa como e quando quer... De estalo, depois de um solavanco no metrô, lembrei-me do David de Michelangelo.
Ora, tome-se obra-prima da escultura renascentista: a cabeça do David é muito maior do que deveria ser, a mão direita também é muito maior que a esquerda, os pés, ao contrário, são muito pequenos em relação ao resto do corpo e os olhos, afirmam alguns especialistas, são olhos de míope! Mas tudo isso se encaixa muito bem na questão da proporcionalidade, algo que contribuiu para a genialidade estética de Michelangelo e ninguém, ao menos que eu saiba, tentou "consertar" o David para facilitar a compreensão dos leigos em arte. 
Agora, deixem-se levar por uma mera suposição: considerem um escultor que se achando genial decida arrumar a cabeça, a mão e os pés de Michelangelo. Poderia? Concordariam todos; protestariam alguns? Os opositores, estes, estariam obstruindo a liberdade de expressão? 
No final das contas, parece-me que a estupidez da Sra. Secco, com a benção da Lei Rouanet e do MinC, contribuiu para o engrandecimento de Machado, isto porque, malgrado as intervenções, o Alienista (o de Machado!) que lemos hoje está muito mais rico depois das diversas leituras e interpretaçoes que agora se incrustam ao conto. 
Como se pode observar, uma boa polêmica dificilmente se mantém sob a poeira. E, uma vez que se mutilou Machado com a ajuda do contribuinte (sim! dinheiro público!), por que este não pode esbravejar? Pedir silêncio, ah, isso já é demais!!!

[1] http://opiniocia.blogspot.com.br/2014/05/machado-de-assis-e-choradeira-dos.html.
[2] O debate fez parte do evento "Livros em pauta" e teve como mediador Bruno Anselmi Matangrano.
[3] CARRIÈRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record,  2010, 51. 
[4] Veja Harold Bloom em O Canône ocidental (Rio de Janeiro: Objetiva, 2010).

Imagens: 1. O Alienista - adaptação em quadrinhos de Fábio Moon e Gabriel Bá, Editora Agir; 2. Mão de David - ambas extraídas do Google Images.