Revista Philomatica

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Sapiens ignaros

“Há um momento em que a gente simplesmente se cansa disso tudo.” A frase, ouvia-a de minha avô pouco antes de partir há quase duas décadas, e, depois de uma semana difícil e de perdas, não há como não entabular uma reflexão, visitar os subterrâneos da alma, emergir, olhar ao redor e pesar os sobressaltos, as alegrias e as tristezas e, por que não, a ignorância que nos assola. Vale a pena tudo isso?
“A ignorância traz uma felicidade extremada.” Hoje estou para lembranças, embora não me recorde do autor desta uma pérola, que continuo preservando sempre que me deparo com disparates publicados na imprensa e afins, alterados, evidentemente, ao sabor dos interesses dos grandes, dos corruptos e seus asseclas.
Fala-se muito em ideologia, na tentativa de atribuir certa erudição à verborragia e à inépcia, contudo, a intelligentsia que povoa as redações, parece-me, não lê. Se o faz é via blogs, facebook e otras mierdas más, reproduzindo falas de pseudolíderes ágeis em preparar uma ratatouille, colhendo ideias aqui e acolá e misturando-as ao sabor dos próprios interesses, esquecendo de que toda ideologia é falsa consciência, mentira, portanto, instrumento de alienação, venha de que lado vier.  
Não à toa, ouvi ontem um desses pseudolíderes descomendo ideias pela boca depois de tê-las digerido em ácido estomacal fétido e interesseiro; a tal dizia ‘sincerona’ que “utopia concreta são as possibilidades reais que estão latentes na realidade”. O nonsense é extremado!
Não bastasse isso, o homo sapiens (e nada aqui me faz esquecer discurso recente em que a canaille creditou a evolução do homem à bola. Esta, teria nos transformado em homens e mulheres sapiens). Feliz por não mais pertencer à espécie dos neandertais ou australopitecos, fecho as cortinas da memória e passo a refletir sobre um vídeo realizado em Portugal, por um jornalista.
Nele, o jornalista indagava pessoas nas ruas sobre o que achavam de casamentos entre homo sapiens, em clara analogia ao casamento homossexual. Opositores e partidários da legalização do tal casamento, responderam às questões ingenuamente, demonstrando um arrazoado desprovido de qualquer informação, contrário não só ao bom senso, mas propenso à ignorância, bastião de toda intolerância. 
Geograficamente, volto-me ao sul sem, contudo, sugerir qualquer ascendência da ex-metrópole sobre o caráter ignaro dos tupiniquins, mas tocado pela hipocrisia e ao mau-caratismo da septuagenária dos direitos humanos, a Sra. Luislinda Valois, que incarna a fraude em pessoa: não é Luís, não é linda e nada vale, pois, até agora, a única ação de destaque em seu ministério foi pleitear acúmulo de pensão e salário totalizando míseros R$ 61.000,00. Valois desconhece o preço e a qualidade dos brioches comidos pelo povo; julga-se escravizada por perceber tão mísero salário – a metade do que pleiteia.
Afora isso, somos tão hipócritas que a verdade, quando dita, nos fere a alma. A mentira, esta nos enleva, rende letras de música, samba nos pés e algum valor. Não por outra razão, no Rio de Janeiro, território do tráfico, o senhor Pezão e autoridades policiais sentiram-se extremamente ofendidos ao ouvir o óbvio do ministro da justiça. Porém, obtusos somos todos, afinal vendemos o carnaval como uma grande festa popular da arrière-boutique, como diria Montaigne. E, só para provocar, uma perguntinha tola: naquela terra de ninguém, e em muitos outros rincões do Brasil, quem financia políticos, que indica comandantes da polícia e dirigentes em muitos outros cargos, quem banca a festa? Os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança. Parece-me óbvio!
Por fim, fico com Eco, meu padre-santo, por ter um dia afirmado que o homem é de fato uma criatura literalmente extraordinária: descobriu o fogo, criou cidades, escreveu poemas, mas não cessou de guerrear seus semelhantes, enganá-los e destruir o meio ambiente. Assino embaixo quando diz que o equilíbrio entre a alta virtude intelectual e a baixa idiotice dá um resultado neutro. E diria mais: nessa toada em que estamos, hora ou outra mudamos o astral e nos tornamos bem mais opitecos.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Caetaneando o que há de bom - no 13

Caro leitor, leãozinho... estou certo de que assim como dois e dois são cinco, um dia ou outro nessa sua vida poética, você talvez tenha tido alguns quereres e sentiu lá no fundo da alma uma força estranha, uns desejos de ir para tão longe, que o fizeram vislumbrar Londres. Mas esse seu coração vagabundo com mania de antecipar as coisas já começara a bater em inglês sem que você mesmo se desse conta, e a old smoke surgiu assim, repetida: London London.
Não bastasse esses devaneios, ao ver a luz do sol você descobriu seu dom de iludir, sussurrou a si mesmo um estou triste, aprofundou a queixa, pois já não sabia mais se a ilusão era sua ou dos outros. Em meio a tanto bafafá, sozinho, saiu caetaneando o que há de bom. Pois é isso, leitor, são tantas as canções que, malgrado a hashtag nos trending topics, você não quis se dar ao trabalho de criar mais uma, afinal depois do mexeu com uma, mexeu com todas o melhor mesmo é sair cantarolando odara, feliz e despreocupado.
Abro um parêntese e volto no tempo em busca de alguma prudência: lá pelos idos de 1862, Machado de Assis, perspicaz, buscou conselho junto a sua pena que o aconselhou: “Não te envolvas em polêmicas de nenhum gênero, nem políticas, nem literárias, nem quaisquer outras, de outro modo verás que passas de honrada a desonesta, de modesta a pretensiosa, e em um abrir e fechar de olhos perdes o que tinhas e o que eu te fiz ganhar.”
Fecho o parênteses, reflito, e chego à conclusão de que os tempos são outros. Polêmicas hoje duram vinte e quatro horas, quando muito uma semana, sempre em consonância aos interesses da imprensa. Nós, indiferentes à mnemônica, apoiamo-nos na mídia, e, ocupados com a vida quotidiana, ignoramos os interesses e deixamo-nos levar. Manipulados como bonecos, esquecemos tudo no dia seguinte.
Portanto, contribuo com o bafafá não só porque sou anterior às hashtags, mas também porque tenho a malfadada mania de me lembrar de coisas, correspondências, similitudes...  E não é que vi Roman Polanski dando uma piscadela irônica a Caetano Veloso, num assim dizer “conheço bem essa história, meu caro”!? A despeito da genialidade artística, num cassino qualquer, ambos foram para a roleta e apostaram na mesma casa, o 13!
Roman Polanski, cineasta francês (memorável O Baile dos Vampiros, com a deslumbrante e trágica Sharon Tate!), em 1977 foi acusado de manter relações sexuais com uma garota de 13 anos. Polanski cumpriu quarenta e cinco dias de prisão e depois de saber que o juiz encarregado do caso pretendia condená-lo a uma pena de cinquenta anos, fugiu dos Estados Unidos e se instalou na França. Em 2009, é novamente preso nas Suíça, os Estados Unidos solicitam a extradição; dois meses depois é colocado em prisão domiciliar em Gstaad. Em 2010, a Suíça decide pela não extradição; em 2015, a Polônia, país no qual também tem cidadania, recusa a extradição; a vítima o perdoa publicamente e pede que interrompam o processo contra ele. Mas ele é o que chamam pedófilo, portanto os americanos estão como cão a ranger os dentes, prontos a atacá-lo. E olha que já se foram 38 anos!
No Brasil, como há gente que tem o hábito de folhear revistas velhas, acharam uma Playboy, de 1998, em que Paula Lavigne, mulher de Caetano revela que foi deflorada pelo tropicalista, aos 13 anos! Em outra, a Maire Claire, esta de 2016, a Senhora Veloso afirma que à época, quando foi desvirginada, era apenas uma menina. Um movimento inominável da direita resolveu exumar a notícia e meter lá uma cerquilha antes do nome do cantor, seguido da palavra pedófilo. Estava montada o que alguns chamam de guerra cultural.
O que vejo ao comparar os dois episódios, semelhantes na raiz, é um dos traços constitutivos da nossa cultura: o hábito que temos de amenizar, relativizar, não dar importância a crimes de qualquer natureza se o protagonista é alguém de nossa empatia. Quando isso ocorre, inventamos histórias, higienizamos a biografia, criamos mil explicações, torcemos a lei, fingimos cegueira, fazemos ouvidos mouco, não sabemos de nada, não estamos nem aí!
A Folha de São Paulo, por exemplo, chegou a legislar a questão absolvendo o cantor, mostrando-se totalmente incoerente se comparado o fato ao episódio José Mayer, cujas reportagens sucessivas diziam mais do mesmo.
Tony Goes, colunista especializado em celebridades, no site UOL, do mesmo grupo, ao demonstrar habilidades de pesquisa, informa seu leitor de que a lei vigente de 1982 (Código Penal ainda de 1940) absolve o cantor, e ao enumerar os lances posteriores de seu romance, conclui o parágrafo sentencioso: “Chamar pedofilia o que aconteceu há 35 anos é ignorar todo esse contexto.”
Ora, eu, de minha parte, não estou a pedir a condenação de Caetano. Se a vítima de Polanski o perdoou, Caetano, por sua vez, fez da ninfeta sua mulher e a mãe de seus filhos. Por que eu o julgaria? O que questiono são as tentativas de apagamento do passado empreendidas pela imprensa e o uso de pesos e medidas díspares no trato de casos similares.
Goes, esquecendo ser colunista, aventou-se juiz e fundamentou a sentença: “Além do mais, o estupro só foi redefinido por lei em 2009, e a lei não retroage. Dado o histórico do casal, é duvidoso que algum juiz considere Caetano Veloso culpado (inclusive porque o suposto crime já prescreveu).”
Dada a sentença, Goes questiona o fato de celebridades e artistas serem atacados nas redes sociais por militarem na extrema esquerda ou por enriquecerem via lei Rouanet. O colunista não aprofunda a questão, o que poderia lhe render um bom contra-argumento, mas perde-se e, redundante, explica a lei de incentivo à cultura. Ao fazê-lo, exemplifica trazendo Danilo Gentili, crítico da lei e que dela recebeu benefícios
Por fim, antes de vislumbrar uma teoria da conspiração nesses tempos, confesso, sombrios em que vivemos, cai numa esparrela argumentativa: afirma que desconfia serem os artistas tão execrados pura e simplesmente por “inveja”, pois alguns deles “são ricos e desfrutam de uma série de vantagens”.
Concordo com Goes quando afirma haver um esforço para criminalizar a expressão artística e promover a censura, mas veja, leitor, ao querer fazer-se ator, celebridade, e interpretar o juiz, esqueceu-se de que era colunista, de modo que ficou o dito pelo não dito. Na tentativa de apagar o óbvio, não disse coisa alguma. A mim, não me restou nada além daquela pequena prosa com meus botões. Também a opinião deles é divergente, mas lá há um que considero o mais sensato e que sempre me adverte. Desta vez, não foi diferente: olhou-me em direção ao queixo que trazia reclinado e disse-me: “estão confusos, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/