Revista Philomatica

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Emília não é a mais esperta!


Houve um tempo em que as crianças dançavam menos funk e liam mais livros.  Muitas dessas crianças começavam seu percurso de leitor com as obras de Monteiro Lobato nas mãos. O Sítio do Picapau Amarelo, lugar mágico e encantado, era onde todas as crianças queriam estar. Lobato, dentre tantas coisas, tinha como matéria-prima o sonho e ali no sítio, Emília, a boneca mais esperta de todas, Visconde de Sabugosa, Pedrinho, Narizinho, Zé Barnabé, Cuca, o Saci, Tia Anastácia, Dona Benta e outras personagens faziam a imaginação dos jovens leitores girar a mil. Nada era empecilho para a fantasia: quando se interpunha alguma dificuldade, estava lá o pó de pirlimpimpim (que os puristas do politicamente correto querem banir porque, uma vez recuperados, não suportam nada que os faça lembrar das carreirinhas da juventude).
Mas Emília deixou de ser a boneca mais esperta de todas, perdeu para Pedro Bandeira que, tão logo ouviu o tilintar do martelo a declarar a obra de Lobato domínio público, entreviu a oportunidade de ganhar uns caraminguás e engordar ainda mais a burra com a criatividade alheia.
Não vou tratar aqui do mau-caratismo revisionista, que apaga a memória em proveito de ideologias (até mesmo porque já falei disso antes nesta coluna), mas do oportunismo de Pedro Bandeira, mosqueteiro do bom-mocismo, que, ao suprimir algumas frases (e personagem) de Lobato, tascou seu nome na capa de Narizinho a menina mais querida do Brasil (título criado por Bandeira ao estropiar Casamento de Narizinho, Reinações de Narizinho, Narizinho arrebitado etc) e se apropriou da inventividade, inteligência e talento de Lobato sob a alegação de “limpar” a obra de lobatiana, constituindo-se em mais um caso em que o sub-reptício interesse pelo vil metal faz da luta por uma causa metonímia para o uso descarado do plágio. Trocando em miúdos, no quesito esperteza Bandeira passou a perna na Emília.
Ouvi dizer que Pedro Bandeira é fã assumido de Lobato. Não acredito! Se é fã, por que desossar, desfolhar, encurtar, suprimir, destruir a obra do autor? Para atender e se ajustar à bandeira da militância e com isso ganhar um dinheiro a mais? A questão do racismo pode e deve ser discutida e refletida a partir da obra e não suprimindo trechos! Isso é mau-caratismo! Há um blogueiro que, referindo-se às interferências de Bandeira, afirmou que este deu uma “arejada” na obra, driblando o racismo. Famelizar e desmontar a obra de Lobato, suprimir Pedrinho da narrativa sob a alegação de que se trata de uma personagem fraca e, de quebra, sustentar que “todas e cada uma das personagens lobatianas são apenas coadjuvantes e ou figurantes dessa maravilhosa e apaixonante menininha” [Narizinho], ora, convenhamos, escritor algum precisa de um fã como este, melhor são os inimigos que, lendo-o mal, lançam mão de práticas intolerantes e medievais para pleitear a queima de seus livros.
Antes que conclua: o que dizer depois de Bandeira afirmar que Narizinho é, ao lado de Capitu, a grande personagem da Literatura Brasileira? Sem querer fazer o que Bandeira fez com Pedrinho, penso que Narizinho seja uma importante personagem, mas não se compara a Capitu, de modo que o comentário, parece-me, senão um mau conhecimento da Literatura Brasileira, algum problema com a qualidade do pó de pirlimpimpim.
Por fim, finalizo com as palavra de Bradbury em seu posfácio “Coda”, a Fahreinheit 451, quando o autor comenta as ablações efetuadas em contos de Twain, Irving, Poe, Maupassant e Bierce: “cada minoria, seja ela batista, unitarista; irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista; sionista, adventista-do-sétimo-dia; feminista, republicana; homossexual, do evangelho-quadrangular, acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda a literatura insossa, como um mingau sem gosto, lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima de jardim de infância.”
Por isso, em tempos de bandeiras, menos Bandeira e mais Lobato!


Foto: Rede Globo, série infantil.



terça-feira, 24 de setembro de 2019

Patrulhamento cultural e ideológico

Eu venho de lá onde a amizade era leve e sorridente. Eu venho de lá onde os amigos costumavam praticar rituais estranhos e exóticos, tais como se encontrar só para se ver e, de quebra, compartilhar dores e amores; às vezes, porque eram humanos, brigavam e se odiavam, mas logo se abraçavam. Eu venho de um tempo em que as pessoas preferiam acreditar que eram responsáveis por si mesmas e os desentendimentos eram momentâneos; depois das verdades ditas (ou ao menos achávamos que eram verdades, as nossas verdades) e das desculpas aceitas, abraçávamo-nos e cantávamos Andanças. Sim, porque se hoje a saudade é imensa, só o é porque não conseguimos medir tanta areia andada, tanto verso, tanto sonho, tantas luas, festas e serestas... Éramos profanos.
Quer saber? Foi ótimo ter vivido intensamente os anos 80. Pouco importa se foi a “Década Perdida” para os economistas e burocratas, afinal, quem liga pra eles? O fato é que olhando para trás vemos uma década inovadora, plena de tendências culturais e modismos que hoje, convenhamos, seriam rejeitados pelo bom mocismo das patrulhas que regulam o politicamente correto e até mesmo o que você gosta porque acha que gosta e o que você não gosta, mas nem sabe porque não gosta.
A moda New Age, quem não se lembra? Alguém sabe o que é sair para o trabalho usando camiseta verde-limão, calça laranja e tênis vermelhos? A cidade era um festival de cores. Na TV, as manhãs eram animadas pela Rainha dos Baixinhos, Xuxa, em trajes minúsculos, quase nua - e não aparecia sequer uma mãe tresloucada, escoltada pelo Conselho Tutelar, gritando aos ventos e acusando a loira de atiçar a libido dos baixinhos. Aos sábados, Chacrinha cantava Maria Sapatão, sapatão, sapatão,/ De dia é Maria, à noite é João e Olha a cabeleira do Zézé/ Será que ele é/ Será que ele é..
Os anos 80 trouxe o Asdrúbal trouxe o trombone, a Legião Urbana, Cazuza, o Movimento das Diretas Já, Titãs, Paralamas do Sucesso, o primeiro Rock in Rio, o punk, o soul à brasileira, a TV Pirata, Armação Ilimitada, Marina, Gal cantando Vaca Profana... Eita saudosismo!
E hoje, o que sobrou? É certo que o respeito à diversidade é inalienável, mas tudo tem ficado tão chato, mas tão chato que se você ousar afirmar em público que não gosta de jiló é provável que a patrulha em defesa do jiló venha para cima com tudo!
Não deu outra, Lulu Santos aventurou-se a elogiar uma cantora e ao fazê-lo, disse: “Você emagreceu, ficou mais bonita.” Pronto! Tornou-se alvo dos internautas irados (todos certinhos). Lembrei-me dos anos 80 porque foi mais ou menos a essa época que a expressão cunhada pouco antes pelo cineasta Cacá Diegues ganhou as ruas. Foram tempos de patrulhamento inócuo, em que apareceram bizarrices como a passeata contra as guitarras - essa, de 1967 -, que reuniu artistas ciosos em zelar pela pureza da MPB. Hoje, mal podiam imaginar, a MPB jaz deitada eternamente em berço esplêndido, isso se você leitor for magnânimo, caso contrário, pode-se afirmar que ela nem existe mais, sufocada que foi pelo pagode, o funk e todos esses ruídos que incomodam seus ouvidos e o seu sono.
Os tempos são pendulares, mas, curiosamente, tratando-se do patrulhamento,  vivemos situação semelhante aos anos 60 e 70, quando toda arte que não fosse engajada era proscrita, gerando certa polaridade em que o radicalismo emburrecedor inviabilizava o diálogo e dava azo às patrulhas ideológicas; hoje, infelizmente, a arte parece ter sido espezinhada dos dois lados e é a política que define que lado da luta escolher. No meio do tiroteio, aí daquele que tentar criar um atalho entre os dois lados... Hoje, até mesmo a amizade tem sido ferida pelo patrulhamento. Quem não conhece amigos que deixaram de se falar pós eleições 2018?  No âmbito social, dá-se a mesma coisa com as investidas contra as opiniões divergentes, algo nocivo que secciona as minorias, porque para muitos que se arvoram defensores das minorias há minorias e minorias, e algumas minorias são mais minorias que outras minorias.
Lembrei-me agora do Festival de Cinema Pernambucano, em que cineastas retaliação às apresentações de documentários considerados por eles como ligados a valores tradicionais e à esquerda tucana dos anos 1990. À época, uma das signatárias do texto emitido pelos cineastas, Cíntia Domit Bittar, colocou em xeque a legitimidade da seleção, criticou a curadoria e afirmou: “Não censuramos filme nenhum de estar no festival, nem incitamos boicote. Apenas retiramos nossos filmes”. (Não mesmo?!) Em seguida à decisão, a direção do festival decidiu suspender o evento. E como o patrulhamento - e a censura – vira e mexe despertam a memória, lembrei-me de Cacá Diegues, que em 1978 teve seu filme Chuvas de Verão recebido com frieza pelos críticos – o que já havia acontecido com Xica da Silva, seu filme anterior. Após o banho de água fria, Diegues, em entrevista à jornalista Póla Vartuck, publicada no jornal O Estado de São Paulo, denunciou as patrulhas ideológicas, que seriam integradas por jornalistas ligados ao PCB e que não teriam objetivo outro que detratar produtos culturais não alinhados ao politicamente correto defendido por esses grupos formadores de opinião.
A polêmica que se seguiu à entrevista de Diegues resultou em um livro, Patrulhas Ideológicas, de Carlos Alberto M. Pereira e Heloisa Buarque de Hollanda, publicado pela Editora Brasiliense. No livro, Diegues, em nova entrevista, define o modus operandi das patrulhas: “O que existe é um sistema de pressão, abstrato, um sistema de cobrança. É uma tentativa de codificar toda manifestação cultural brasileira. Tudo o que escapa a esta codificação será necessariamente patrulhado.”

Patrulhados ou não, parece-me, Chacrinha e Xuxa saíram ilesos. Já Lulu, ovacionado dia desses por assumir seu amor, ontem, distraído, foi tomado pela sinceridade e deu no que deu.


Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/patrulhamento-cultural-e-ideologico/

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Vamos beijar Crivella


Ontem, recebi uma mensagem supostamente extraída do Twitter de Marcelo Crivella (claro, mais uma fake news elaborada pelos internautas, porém, deliciosa), em que o tosco, comenta: “A culpa dos jovens estarem virando gays é desses homens sarados e gostosos.” Ri, como muita gente riu, mas, pensando bem, o escárnio traz um fundo de verdade: alguém eleito para administrar uma cidade, por sinal, falida, e não o faz, mas passa a maior parte do seu tempo tentando regular o fiofó do cidadão, parece-me um daqueles casos em que o populacho pede ao indivíduo que saia do armário.
Ao ler sobre a lambança de Crivella, lembrei-me da canção e pensei: por que não beijar Crivella, ridicularizar a ordem, apostar na orgia, no bacanal, na carne vicejante, no carnaval, comê-lo pela frente e pelo verso, comê-lo cru?
Não bastasse Brasília, notória exportadora de lambanças, Crivella também foi notícia no exterior, expondo novamente, é claro, o país ao ridículo. E tudo por causa de um beijo entre homens em uma história em quadrinhos. Crivella, furiosa, em um gesto democrático, subiu nas tamancas, bateu o cabelão, chamou seus bofes e decidiu proibir a venda de Vingadores: a cruzada infantil, obra à venda na Bienal do Rio. Antes que continue, nem é preciso dizer que o tiro saiu pela culatra: a visibilidade dada ao livro foi imensa, a procura enorme, enfim, um merchandising que certamente a editora não teria cacife para bancar; hoje, por exemplo, só o download do livro na rede não sai por menos R$ 250,00.
A polêmica, inesperada, agitou a Bienal do Livro do Rio: funcionários da prefeitura circulando pelos corredores da Bienal, os holofotes da imprensa, jornalistas, fotógrafos, a militância, enfim, a espetacularização da mediocridade. O prefeito, conhecido por sua homofobia, que já descreveu em um livro - sim, infelizmente livros tornam-se objeto de obscurantismo - a homossexualidade como um “terrível mal”, ordenou aos organizadores que cobrissem cada exemplar com um plástico preto e um aviso - algo como aquelas embalagens de veneno, cujas tarjas e a imagem de uma caveira, alertam o comprador de que o conteúdo é mortal. Diante da recusa, o que fez o prefeito? Mandou a polícia apreender todos os exemplares à venda.
Crivella, ao lançar mão da censura, sob a falácia de defender a Moral, a Religião e o Estado, afirmou que visava proteger os menores. O vereador Alexandre Isquierdo, por sua vez, lançou mão de sua conta no Instagram para acusar a Marvel de “propagar o homossexualismo para as crianças”. Ambos, prefeito e vereador partilham a visão de que a decisão de censurar e recolher os quadrinhos na Bienal tinha apenas um objetivo: cumprir uma lei e defender a família!
E, como nesses shows midiáticos sempre há uma raposa à espreita, à espera das uvas que pendem dos cachos em meio à confusão, não deu outra: o youtuber Felipe Neto que, dizem, é seguido por mais de 34 milhões de assinantes (U. Eco e Carpeaux é que tinham razão... - de quebra, brindo-os com Nelson Rodrigues: “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.”), comprou 14.000 livros com conteúdo relacionado às comunidades LGBT e os distribuiu gratuitamente na Bienal, todos embrulhados em plástico preto.
Contudo, não se engane: caso não esteja entre os 34 milhões de seguidores e procure por vídeos de Neto no Youtube, é provável que tenha lá seus anseios de bater com a cabeça na primeira quina que encontre pelo caminho. A militância do moço é extemporânea, como aqueles furúnculos que aparecem do nada, bem perto do joelho. Mas está valendo! Só pelo fato de escolher como alvo figuras sombrias do cenário político e expor suas estupidezes.
Crivella atacou a liberdade de expressão, mas, parece-me, isto é algo que os governos atuais não têm ideia do que seja. Mariana Zahar, vice-presidente da SNEL, indignou-se com Crivella e afirmou que “desde a ditadura a gente não vive o que estamos vivendo agora [...] a censura é com a literatura, com os livros”, reiterando que a Bienal é um símbolo da diversidade.
Até mesmo a Folha de São Paulo - que agora tenta assumir ares de esquerda, mas na França, por exemplo, foi chamada de centrista - publicou a imagem do beijo interdito, na tentativa de alertar as pessoas para os perigos da censura.
Feito isto, começou a guerrinha jurídica – diga-se, nada imparcial, em razão dos asseclas que povoam o mundo polarizado da política e do judiciário. No sábado, dia 6, alguns dias após o início da controvérsia, um tribunal decidiu a favor de Crivella, afirmando que a revista em quadrinhos destinada a jovens leitores não deveria abordar questões relacionadas à sexualidade sem aviso prévio. Nada mais compreensível, afinal, o sexo dos velhos é o poder. Também, questão de gravidade. Vale ressaltar que a decisão foi anulada pelo STF. O juiz que decidiu a favor da não proibição, mais sujo que pau de galinheiro, resolveu usar seus dois neurônios, de modo que você leitor já pode adquirir o livro, o gibi, seja lá o que for.
Em tempo: ao perguntar a um amigo sua opinião sobre o livro, ouvi: “bobinho, muito bobinho”, de maneira que achei ter havido uma tempestade em copo d’água.
Por fim, lembrei-me de um beijoqueiro que tomava de assalto as celebridades, isso há uma ou duas décadas... Como protesto, lanço a hashtag #vamosbeijarcrivella.





Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/vamos-beijar-crivella/

sábado, 7 de setembro de 2019

As bruxas do SUS, ou as benzedeiras agentes de saúde pública


Às vezes, lembro-me dos meus tempos de menino. As lembranças, fluxos de memória involuntária, brotam do nada e o nada, é claro, não é nada parecido com a Madeleine do Proust, que descobri tardiamente. Às minhas reminiscências, juntam-se muitos capítulos de histórias ouvidas na infância que se tornaram referências e sustentação, fazendo de mim o que sou hoje. E hoje, adulto, felizmente sou traído pelo tempo que me lembra a todo o instante da sua passagem por meio de uma bobeira ou outra que alguém diz, um aroma, uma música... e quando vejo lá estou de novo vivenciando meus verdes anos. A meninice aflora e a nostalgia invade, por vezes, até mesmo as horas mortas, roubando-me o sono; então, faço-me menino, imaginando a delícia dos dias em que a preocupação da manhã seguinte era juntar os amigos e escolher os jogos e as brincadeiras daquele dia que, findo, parecia sempre ter sido o mais longo dos dias - até mesmo que os meus dias de hoje.

Terminadas as brincadeiras, banho tomado, barriga aquecida com a comida caseira preparada por minha mãe, nas noites agradáveis de primavera e verão, cercava-me de amigos e primos e, juntos, íamos sedentos à sobremesa que não era sorvete nem nada (não tínhamos uma geladeira), mas sim as historietas contadas pelos adultos que recontavam histórias ouvidas há muito ou rememoram suas próprias infâncias, sempre tomados pela saudade de aventuras perdidas na poeira do tempo. Sentávamos todos sob a lua e as estrelas (onde morava não tinha energia elétrica) e ficávamos atentos àquelas narrativas dos tempos de antanho: ouvíamos de tudo, a única regra válida era a de que uma história puxa a outra, e assim, atentos, passávamos horas embevecidos por relatos de pessoas cujas lembranças reduziam-se a nomes. Às vezes, um tio trazia à roda um Sr. Isidoro, que morava no “córgo” (córrego) da Anta... Identificados a personagem e o lugar, a história fluía. Não raro, eram histórias recheadas de elementos fantásticos: uivos não identificados que emergiam das matas, rodamoinhos, ventos inesperados, luzes intensas que apareciam do nada, chuviscos repentinos em noites quentes e secas, vozes assustadoras, imagens diáfanas (quase sempre mulheres, mas havia homens também) que se interpunham nos caminhos. Os caminhos eram sempre em meio às matas, trilhas de difícil acesso; até mesmo porque todos moravam, como dizia minha mãe, nos ermos, em lugares recém desmatados, isto em uma época em que desmatar e matar animais era a regra diária e ninguém se importava com isso. O vizinho do meu Tio João, que matara uma onça no sítio, era visto com respeito pelos outros moradores.

Ah, nessas histórias também era frequente uma personagem que, para nós meninos, à época, era terrível até mesmo imaginar que andasse pelas matas, o diabo. Sim, ele mesmo, o tinhoso, o capiroto, o pé-de-bode, o sete-peles, o renegado, e por aí vai. Ao ouvir seu nome em meio a uma narrativa, levados pelo medo, contorcíamo-nos todos, aproximávamo-nos uns dos outros imaginando que ele pudesse saltar do escuro e consumir-nos todos, meninos e adultos. Desconfio até hoje de que um vizinho azeitava suas histórias só para nos ver amedrontados. Mas isso é outra história; o fato é que ficávamos aterrorizados, porém, dominados por essas narrativas e à espera de seus desenlaces.

Ah, havia histórias fantásticas, como a do “Boi falô”, que data do tempo dos escravos, antiga... Tudo se passou em uma Sexta-feira Santa, quando o administrador da Fazenda Santa Genebra, ali perto de Campinas, pediu a um escravo por nome Toninho, que fosse até o estábulo pegar um boi para realizar seu trabalho do dia. Ali chegando, o escravo se deparou com o boi deitado no chão, tranquilo. Ao tentar pegá-lo à força, o animal, para espanto do homem, disse-lhe: “Hoje não é dia de trabalhar, é dia do Senhor!”. Aterrorizado, o escravo saiu o mais depressa possível dali e foi ao encontro do administrador; este, ao lhe perguntar sobre o boi, ouviu apenas: “O boi falô!”. Hoje, em Barão Geraldo, depois de a história correr de boca em boca, ser requentada e acrescida de pontos e mais pontos, às vésperas da Páscoa, moradores e visitantes se reúnem para comemorar e saborear uma tradicional macarronada em homenagem à lenda do “boi falô”. O porquê da macarronada fica por conta dos pontos, afinal quem conta um conto...

Ah, também havia histórias de bruxas e curandeiras. Estas, parece-me, deixaram os rincões, os lugares ermos, as matas e mudaram-se para os centros urbanos. Há festivais de bruxas, nos quais meninas e mulheres se travestem de bruxas – sempre, é claro, trajando figurinos à la Disney, com uma ou outra customização – e encenam danças em voltas de caldeirões, entoando canções um tanto esdrúxulas, tomando-se por seres especiais que povoam o universo apesar dos ridículos mortais que infestam a Terra mãe. As curandeiras, por sua vez, proliferaram-se por duas razões: o metafisicismo que desde tempos imemoriais conduziu as crenças humanas e a ausência da ciência, digo, um serviço de saúde justo e subvencionado pelo poder público, direito de todo cidadão. Junte-se as duas alternativas e voilà, as curandeiras tornaram-se agora agentes da saúde pública.

Ontem, ao acessar as redes sociais, o que leio? Leio que em algumas cidades do país há algum tempo benzedeiras, rezadeiras, curandeiras e costureiras de rendiduras (dores musculares) foram reconhecidas como agentes de saúde pública. Na prática, é o Estado reconhecendo aquele chazinho e aquela suave surra de ervas em substituição à saúde pública; trocando em miúdos: médicos, hospitais e postos de saúde.

Ao entrar na onda de ONGs que congregam benzedeiras, como a MASA (Movimento Aprendizes da Sabedoria), que cadastrou 161 em Triunfo (PR) e 133 em Rebouças (também PR), o poder público tira seu corpo fora e, para isso, conta com a ignorância de um povo acostumado ao falso conforto da mediocridade. Esta, como dizia Carpeaux, entre os homens é tão profunda quanto o oceano. A representante de uma das OGNs afirma que a iniciativa ajuda a combater o preconceito – e de quebra, é claro, rende alguns caraminguás às ONGs (algo que ela não disse, mas digo eu).

Ora, convenhamos, não se trata de preconceito, mas de pura obtusidade. Ao dispensar uma visita ao médico, o paciente pode, em muitos casos, retardar um tratamento, algo que lhe será fatal mais tarde – e nunca ouvi falar de uma benzedeira que tivesse ressuscitado um morto! No mais, não acredito que alguém que padeça com um câncer, ao levar umas chicotadas de arruda, saia de lá saltitante e curado. Respeito a fé, mas curandeira não substitui médico. Ao ler comentários efusivos com a volta da ancestralidade (que duvido, conheçam) e com hipotético despertar que está acontecendo, lembro-me do povo que tem se recusado a tomar vacinas e penso que até para a ignorância há limites. Digo isso aos meus botões e eles, no silêncio de suas casinhas, parecem concordar. Saravá!



Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/as-bruxas-do-sus-ou-as-benzedeiras-agentes-de-saude-publica/

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A internacionalização da Amazônia


Ô semaninha agitada essa! Com o fogo ardendo a floresta, a fumaça tornou-se estratosférica e tóxica. Não bastassem o monóxido de carbono e outros compostos químicos prejudiciais à saúde, a polarização gerada pelos incêndios acrescentou à fumaça alguma bílis, rancor, desinformação, muita falta de educação e boa dose de colonialismo. Sim, os interesses sempre falam alto nessas situações e o representante do país da liberté, égalité e fraternité, saudoso dos tempos em que o colonizador transferia sábios en mission para as incultas colônias, botou as garrinhas de fora.
Por outro lado, na réplica, um representante tupiniquim desinformado, inexperiente e obtuso, que alimentou o fogo e a fumaça com sua costumeira grosseria. Deu no que deu. O assunto foi o mais discutido, o mais escrito e o mais comentado pela turba que povoa o espaço das redes sociais. Enfim, não preciso retomar a opinião de Umberto Eco sobre a capacidade cognitiva da fauna que o habita...
Em meio a toda essa balbúrdia, alguns desencavaram um texto de Cristovam Buarque, insigne representante da política torva e sanhuda, mas também professor e engenheiro. Lúcido cidadão, parece-me. Buarque, que estava em uma universidade americana, ao ser perguntado sobre a internacionalização da Amazônia por um aluno que dissera querer ouvir a resposta não de um brasileiro, mas de um Humanista, respondeu:

De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso.
Como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a humanidade.
Se a Amazônia, sob uma ética humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço.
Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.
Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar que esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural Amazônico, seja manipulado e instruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Não faz muito, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele, um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.
Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. Pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda a humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua história do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro.
Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.
Defendo a ideia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do Mundo tenha possibilidade de comer e de ir à escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro.
Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa!”
Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/a-internacionalizacao-da-amazonia/