Revista Philomatica

domingo, 25 de abril de 2010

Voltaire, a Tolerância e o jornal "O Parasita" - publicação anônima e homofóbica dos alunos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas

A intolerância é de longe a fraqueza primária do homem. É bíblica. Voltaire, sabido por todos, talvez a maior das vozes que já se ergueu em favor da tolerância, em seu Dictionnaire Philosophique (1764), não deixa dúvida a respeiro dos intolerantes: "Evidentemente que qualquer particular que persiga outro homem, seu irmão, porque não participa das suas opiniões, é um monstro". Porém, a intolerância, a exemplo de uma chaga em estado de metástase, teima em brotar em lugares diferentes do corpo social. Mal parece curado um membro e lá está a ferida aberta em outro, buscando apodrecer e desmoronar o organismo todo pela insistência. Recente publicação dos alunos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, da USP, é não só mais um sinal da intolerância que teima em vencer pela exaustão, mas também um exemplo de como ela está disseminada entre os mais diferentes estratos sociais, insistindo em querer cansar os que lutam pelas liberdades de opinião e escolha e dos que apostam no caráter construtivo da diversidade, seja ela racial, religiosa ou sexual. E detalhe: estamos no século XXI.
Com o Iluminismo, no século XVIII, a Europa vê no advento da razão a possibilidade de luta pelo progresso através de um pensamento crítico. Com isso o conceito de tolerância passa a ser elemento central entre os filosófos iluministas, pois esta constitui-se num movimento do pensamento, da razão. Voltaire defende a ideia da necessidade de tolerância entre as pessoas, assim como Rousseau, se bem que os dois filósofos, ao longo de suas vidas, vão ter visões diferentes do que seria o mundo ideal. Mas quais fenômenos ilustrando a intolerância combate Voltaire? Num primeiro momento, o pensador vê no absolutismo a antítese da tolerância. Nessa lógica, somos todos iguais e não deve haver privilégios, regalias e vantagens particulares, o que, acredite, leitor, dado o país em que vivemos, cheira a utopia. Voltaire trava ainda verdadeira guerra contra o fanatismo, que considera a maior e mais cruel expressão de intolerância. O L'Affaire Calas, ilustra de forma exemplar essa sua luta contra o fanatismo, um verme sub-reptício que se aloja sob as máscaras da religião.
Em seu Dictionnaire Philosophique, Voltaire define a tolerância como "a primeira lei da natureza" e se opõe radicalmente ao fanatismo, seja ele político ou religioso. Lá, pergunta Voltaire: "O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza". Entretanto, Voltaire se opõe ao fanatismo religioso principalmente por causa da própria religião, pois, não importa qual seja o nome que a ela se atribuiu, essa definição é impossível de impedir que nesse mesmo credo apareçam pensamentos sectários e a criação de seitas. Os conflitos religiosos têm origem nessa impossibilidade. Se no Dictionnaire, Voltaire mostra o povo judeu como um exemplo de povo intolerante podendo, contudo, dar mostras de tolerância, ele critica também os cristãos: "De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens".
Do mesmo modo, ele pensa o fanatismo político. Esse seria problemático porque provoca desacordos entre defensores de diferentes pontos de vista sobre a organização de um sistema político. O fanatismo é, portanto, para o autor de Candide, seu principal alvo. Nesse conto, a mitrailleuse de Voltaire volta-se contra a Inquisição - expressão contundente de fanatismo, a qual critica particularmente, através das peripécias de sua personagem-título, envolta em situações que traduzem a necessidade de domínio sobre o outro e, portanto, a tensão nas relações humanas.
Para Voltaire, a tolerância é, portanto, o único remédio para os males humanos, condição necessária para uma vida harmoniosa. Assim, o homem deve perdoar os erros cometidos por seus companheiros e aceitar as diferenças, utilizando a sua razão, o que o distingue de todos os outros seres, porque « cette raison est douce, elle est humaine, elle inspire l’indulgence, elle étouffe la discorde » como diz o autor no capítulo V do Traité sur la tolérance (1763).
Embora, hoje, os valores religiosos estejam em baixa e os políticos sejam rasos à altura da visão própria dos répteis, o que, portanto, não comporta qualquer embate mais vivaz que faça brotar a intolerância, ela, persistente, apareceu entre os alunos homófobos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, que por razão torpe e deplorável, viraram assunto na mídia. Leiam sem esquecer-se de Voltaire: "... qualquer particular que persiga outro homem, seu irmão, porque não participa das suas opiniões, é um monstro".

23/04/2010 - 18h11
Jornal anônimo de alunos da USP "desafia" universitários a jogar fezes em homossexuais
Ana Okada
Em São Paulo
Atualizado às 21h42


Em uma publicação anônima destinada a estudantes da USP (Universidade de São Paulo), os leitores são "desafiados" a jogar fezes nos colegas homossexuais. O jornal, que se chama "O Parasita", circula por e-mail e não tem periodicidade definida.
Segundo os autores, que assinam com pseudônimos, a "campanha" teria sido criada porque a Faculdade de Ciências Farmacêuticas tem sido "palco de cenas totalmente inadmissíveis". Um trecho da nota: "Para retornar a ordem na nossa querida Farmácia, O Parasita lança um desafio, jogue merda em um viado, que você receberá, totalmente grátis, um convite de luxo para a Festa Brega 2010. Contamos com a colaboração de todos" (sic).

Imagens: Voltaire répétant Mahomet avec Lekain en costume de voyage; Voltaire (en rose) dinant à Sans-Souci avec Frédéric II (au centre); imagem publicada do site UOL Educação com página do Jornal "O Parasita".

Nota: Trechos citados de Voltaire: Livro: VOLTAIRE, François Marie Arouet de. Cartas Inglesas; Tratado de Metafísica; Dicionário filosófico; O filósofo Ignorante/Voltaire; seleção de textos de Marilena de Souza Chauí; traduções de Marilena de Souza Chauí... (et al)., 2a. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 290-293. (Coleção Os Pensadores).

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Imagens da liberdade

Ao ler Roland Barthes par Roland Barthes, me chamou a atenção o enunciado Forgeries; lá, Barthes afirma que para dizer qualquer coisa é necessário simplesmente que haja um paradigma para produzir sentido. Ora, dentre os inúmeros recursos dos quais lançamos mão para forjar um texto, estão as imagens, recorrência próxima da semiologia que, para Barthes consiste no estudo das significações que podem ser atribuídas aos fatos da vida social concebidos como sistemas de significação: imagens, gestos, sons melódicos, elementos rituais, protocolos, sistemas de parentesco, mitos etc.
Pois bem, ontem comemorou-se o aniversário de Brasília. A imprensa mostrou imagens várias: a arquitetura, a natureza, a imensidão do céu de Brasília, além de suas gentes, verdadeiro melting pot cultural, enfim, um evidente esforço para tirar da cidade a pecha de que é uma ilha da fantasia, distante da realidade do país e - me perdoem os brasilienses, um ninho de corruptos. Se afirmasse isso, estaria expressando minha ingratidão, já que a praga da corrupção campeia pelos quatro cantos do país e não é coisa endêmica da capital.
Questão de sinapse, acredito, liguei duas imagens diversas e, só por causas delas, decidi por escrever esse texto. Vamos a elas: ontem, em um noticiário de televisão, foi exibida uma imagem de estudantes em confronto com a polícia em Brasília, quando das manifestações contra aquele senhor, ex-governador e ex-presidiário, que desviou milhões e, ao ser pego, disse que o dinheiro havia sido empregado na compra de panetones. Lembram-se? A imagem era contundente, violenta; policiais a cavalo agredindo estudantes a golpes de cacetes e, os cavalos que, mais idôneos, refugavam. O texto narrado pela jornalista falava em liberdade. Comentava-se o afastamento criado entre os políticos e o povo com a transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília, principalmente durante o regime militar, porém, destacava o fato de o povo ter-se deslocado para o Planalto Central e insistir no clamor por seus direitos e pela sua liberdade. Dado curioso: aqui, do alto de um cavalo, a polícia tentar silenciar a liberdade.
A outra imagem é um foto de Robert Doisneau: Le Cheval Tombé. Na foto, clicada durante a Segunda Guerra, quando Paris estava sob a ocupação alemã, pode-se observar um cavalo caído em uma rua parisiense. Conta-se que ele escorregou no gelo, o que pode ser visto pelos traços brancos no chão. Inúmeras pessoas observam o cavalo, porém, não há qualquer tentativa de ajudá-lo. Ao fundo, um edifício cinza com largas janelas escuras. A vestimenta dos parisienses é também de cor cinza, o que contrasta com a cor do cavalo, de um branco deslumbrante. O cavalo usa cabresto e arreios. Ele evoca um sentimento de isolamento e de sofrimento. A ajuda que ele espera não chega e ele tenta levantar-se só.
Embora tenha sido um clique acidental, muitos veem no cavalo a representação de uma França ocupada, só, paralisada. Os parisienses não agem, não entendem, estão entorpecidos e não compreendem a cena, que parece transmitir todo o sentimento que vivem diante de uma incompreendida ocupação. As duas grandes janelas, acreditem, podem figurar como uma luz ao final do túnel da opressão e da violência, enfim, uma escapatória, um fim para todo o horror que viviam.
Em Brasília as posições estão invertidas: o cavalo em pé e o homem no chão. Interpretar o quê? Infelizmente a liberdade, qual seja o ângulo, ainda padece. Pena que na foto brasiliense não se pode ver janelas. Cabe, aqui, guiar-se pelos dizeres do próprio Doisneau: "« Je m’obstine à arrêter ce temps qui fuit…La plupart de nos contemporains n’ont jamais pensé que tout est provisoire, c’est un sentiment désagréable. Moi, je le pense et j’essaie de transmettre aux autres ce que je crois bon, beau. » Ou seja, aprecie o belo porque tudo o mais é provisório. Creiamos nisso.

Imagens: Le Cheval Tombé, Robert Doisneau, 1942; e, A Polícia Militar do Distrito Federal reprime manifestantes contra o governador Arruda em frente ao Palácio do Buriti (Foto: Roosewelt Pinheiro/Agência Brasil).

terça-feira, 20 de abril de 2010

O e-book matará o livro impresso?

O e-book matará o livro impresso? Há pouco mais de 150 anos, discutia-se algo muito similar. No Correio Mercantil, em 1859, os leitores puderam acompanhar no artigo O Jornal e o Livro[1], o perspicaz raciocínio de Machado de Assis, que se perguntava: “O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?” Como se pode ver, com as voltas que o mundo dá, hora ou outra os assuntos se repetem e, ainda que atualizados, vêm à baila, obrigando-nos a um olhar anacrônico para melhor entendermos o presente.
À época, Machado estava entusiasmado com as possibilidades que o desenvolvimento do jornal trazia. Para um jovem de 20 anos, habituado ao tímido mercado de livros que mal ensaiava seus primeiros passos – o próprio Machado, anos depois, teria muitos de seus livros impressos na França, o jornal aparecia como um veículo avassalador. Para Machado o jornal era algo dinâmico, inovador e democrático, passível de reproduzir o espírito diário do povo e que, à maneira de um espelho refletia não só os fatos, mas, sobretudo, o talento e as ideias do homem. Essas ideias, segundo Machado, eram as ideias populares, ou seja, uma fração da ideia humana que o livro não comporta.
Ao traçar um paralelo entre o jornal e o livro, argumenta Machado: “O livro não está decerto nestas condições; — há aí alguma coisa de limitado e de estreito se o colocarmos em face do jornal. Depois, o espírito humano tem necessidade de discussão, porque a discussão é — movimento. Ora, o livro não se presta a essa necessidade, como o jornal. A discussão pela imprensa-jornal anima-se e toma fogo pela presteza e reprodução diária desta locomoção intelectual. A discussão pelo livro esfria pela morosidade, e esfriando decai, porque a discussão vive pelo fogo. O panfleto não vale um artigo de fundo. Isto posto, o jornal é mais que um livro, isto é, está mais nas condições do espírito humano”.
O jornal tinha, de fato, em meados do século XIX, um caráter moderno e, dentre inúmeras leituras possíveis, pode-se dizer que o sentimento de modernidade está em parte calcado na ideia de transformação, consequência direta da dinâmica da informação e do mundo atual como um todo. As mudanças radicais experimentadas pela sociedade contemporânea só fizeram acentuar em seu seio a enormidade de conflitos, os quais, desde a antiguidade, sempre foram parte de seus constitutivos. A amplitude de interesses não só reinventou símbolos pré-existentes, como a indumentária, como também fez com que inúmeros outros se proliferassem, tais quais famílias, empresas e marcas que ao longo dos séculos XIX e XX tornaram-se emblemas de sucesso. Outros tantos ainda, como o cinema, acabaram por representá-la senão em sua totalidade, mas pelo menos em parte daquilo que é ou aparenta ser.
Assim, nesse contexto podemos conferir ao jornal um caráter de objeto simbólico, representativo de uma sociedade em um determinado momento histórico e social, entendendo-se, porém, a tradução desse símbolo como o conjunto de muito das informações e relatos dos acontecimentos de um período. Ao menos, a partir dessas informações, torna-se possível fazer um recorte da época, reconstituir um grupo social. O jornal com primazia tornou-se importante elemento da vida social desde o seu desenvolvimento no início do século XIX, e assim, ainda hoje, figura como um dos símbolos indicativos da vida moderna ao responder pelos diferentes interesses que compõem o amálgama social.
Mesmo décadas após sua ocorrência o jornal continuaria suscitando admiração, tanto é que João do Rio, em 1915, aventura-se na ideia de que nada mais acontecera após o descobrimento da América e da expansão do jornal - essas duas grandes utopias iluministas; além de considerá-lo como instituição de efeito salutar para a democracia.[2] Machado, embora discreto, não consegue conter os arroubos próprios da juventude e vaticina: “Sou filho dêste século, em cujas veias ferve o licor da esperança. Minhas tendências, minhas aspirações, são as aspirações e as tendências da mocidade; e a mocidade é fogo, a confiança, o futuro, o progresso”. Ora, isso Machado o afirma pouco depois de anunciar que iria “traçar algumas idéias sôbre uma especialidade, um sintoma do adiantamento moral da humanidade”, sintoma que logo após identifica como sendo o jornal.
Machado, no cotejo entre os dois condutores de conhecimento, se distancia dos limites impostos pelo livro e parte em direção ao universal, conferindo ao jornal característica de elemento planetário e revolucionário capaz de alavancar o progresso e trazer a modernidade. Embora em princípio o autor trate do embate livro-jornal, é explícito seu aproveitamento como arma política e de disseminação de ideias de cunho marcadamente democrático em oposição ao “direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas”.
O desenvolvimento do jornal altera completamente as interligações comunicativas de então, mas, teria Machado previsto o desaparecimento do livro? Não, não chegou a tanto, afinal do livro, embora tenha destacado seu caráter rígido e estreito, já que não tem as características de uma tribuna comum e aberta à família universal, como o jornal, disse: “Creio nos livros e adoro-os.” (Cartas Fluminenses, 5.03.1867). Ainda nesse artigo, Machado diz: “Admitindo o aniquilamento do livro pelo jornal, esse aniquilamento não pode ser total. Seria loucura admiti-lo”.
Por isso, leitor, fique tranquilo pois o seu livro de cabeceira continuará, acredito, ainda por muito tempo. Assim como Machado não sou eu nenhum profeta para predizer que os livros eletrônicos, ou e-books, vão substituir os livros de papel, mas se um dia isso ocorrer, espero não estar mais aqui para presenciar. Em geral, sempre há resistência, tem-se medo do novo e dizem os especialistas, isso será um processo gradativo que só terá fim quando se extinguirem as gerações que foram alfabetizadas com o uso de meios impressos, ou seja, daqui a muitas décadas. De qualquer maneira, já se pode encontrar Dom Casmurro em versão e-book (Acho que Machado, antenado como era, ficaria satisfeito!).
Os amantes de livros – como eu, têm argumentos que, acreditam, fortes. Afinal o livro não é só conteúdo, é também a forma, a beleza com que o texto está disposto na página, são as imagens distribuídas entre as linhas, é a capa, o cheiro do papel, da tinta, é a inteligência visível, presente, passível de ser tocada! Também, pode-se dizer que num primeiro momento o livro eletrônico cansa a vista, já que é preciso manter o olhar fixo na tela de um dispositivo eletrônico. Isso é algo realmente considerável, e aqui vale lembrar-se de Bill Gates, que prefere imprimir qualquer documento que tenha mais de quatro páginas, para não ter que ficar lendo na tela do computador. No entanto, com as novas tecnologias (como os displays de cristal líquido), esse problema não será um empecilho para a disseminação dos e-books. Portanto, não teremos que expor nossos olhos a tanto brilho e radiação, o que nos causaria um verdadeiro estresse ocular.
Os e-books não são diferentes em nada de qualquer outro produto: têm vantagens e desvantagens. Vantagens? Há versões que podem ser carregadas no bolso; melhor, dentro desses aparelhinhos você não carrega um só livro, mas uma biblioteca! Algumas marcas vêm até com uma capa de couro e cheiro de livro novo para incentivar os mais conservadores. Outra vantagem é que se o livro que você estiver lendo trouxer uma informação que desconheça, é só pesquisar na rede e pronto, lá está o que procurava! Argumentam ainda que há uma vantagem ecológica, com os livros eletrônicos a tendência é que seja reduzida a necessidade de cortar florestas para produzir papel. Desvantagens? Não sentir a alegria de ver uma estante repleta de livros, diferentes tamanhos e bordas coloridas, a bateria do e-book que pode pifar, sei lá, o aparelhinho que pode ir, na hora mesmo inesperada, para a assistência técnica, vírus... meu Deus! será que também pega vírus?!?!?!
Enfim, há muito ainda o que se discutir, principalmente no que se refere à difusão que, como todos sabem, implicará em repensar os direitos autorais. Mas isso é prosa para uma outra hora!


[1] ASSIS, Machado de. O Jornal e o Livro. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1971. p. 943-948. Artigo publicado originalmente no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 e 12/01/1859.
[2] ANTELO, Raúl. João do Rio - Salomé. In A Crônica – O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992, p. 153.
Imagens: Página incicial do site do MEC- Machado de Assis Obra Completa; e-book.

sábado, 17 de abril de 2010

O retrato de Rimbaud

Não raro nos deparamos com alguns autores, cujas biografias foram tão movimentadas e eletrizantes que fica quase impossível não olhar suas obras com olhos mais livres. É algo como pensar a obra de um autor a partir de sua trajetória, sem contudo, ater-se ao puro biografismo, ou seja, explicar esta ou aquela personagem a partir do seu percurso, embora, muitos deles se nos apresentem tão ou mais interessantes que as suas personagens. Nada, porém, a ver com ressuscitar o autor, na contramão do que dissera Barthes ao teorizar a morte do autor, mas simplesmente vê-lo também, a partir de sua existência, tornar-se figura literária.
O mesmo, parece, deu-se com Rimbaud (Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891), o genial poeta simbolista, autor de Une saison en enfer, Le Bâteau Ivre e Les Illuminations. Para se ter uma ideia, Rimbaud para de escrever aos 21 anos e parte para o norte da África, onde passa a traficar armas. Porém, o Rimbaud negociante de armas é o mesmo que deu cor às vogais em Voyelles e L’Alchimie du Verbe e tornou-se referência para a poesia no século seguinte, alimentando o argumento da tese que nascia sobre a impossibilidade de ser considerada a dissociação entre o poeta e sua poesia. O poeta, assim, vive e é sua poesia – pensamento ainda sustentado por alguns teóricos.
O fato é que Rimbaud rendeu muito em canções, na televisão e no cinema, além de ter contribuido para encher a burra de dezenas de biógrafos. Sua iconografia, contudo, não é das mais extensas. Porém, na quinta, dia 15, na Feira Internacional do Livro Antigo, no Grand Palais, em Paris, foi apresentada uma foto que se presume ser de Rimbaud adulto. A imagem foi descoberta em 2008 por dois livreiros, que conduziram uma investigação para saber se realmente era uma foto do poeta, inclusive, para autenticar o cliché, os dois buscaram a opinião de Jean-Jacques Lefrère, especialista em Rimbaud e autor do livro Sur Arthur Rimbaud, Correspondance Posthume 1891-1900.
A descoberta foi feita por Jacques Desse e Alban Caussé quando, ao empreender uma busca por livros antigos em livrarias perto de Paris, deram de cara com um lote de fotografias do século XIX, clicadas em diferentes locais de Aden, onde o poeta passou a última parte de sua vida antes de morrer, em 1891. Caussé disse que uma foto particularmente chamou sua atenção. Ela mostra um grupo de pessoas sentadas na varanda do Hotel de l'Univers, onde o autor de Le Bâteau Ivre ia regularmente. Neste quadro, disse Caussé, há "uma pessoa que tem uma atitude particular e um olhar que me prendeu de imediato". Logo, os dois livreiros acreditaram que poderia ser Rimbaud. Através de um trabalho meticuloso, identificaram as personagens. Quanto ao rosto do homem, afirmam, ele tem semelhanças com o do poeta na adolescência: o mesmo rosto oval, a mesma densidade do cabelo, o mesmo desenho das orelhas e nariz e até o mesmo formato dos olhos.
A foto, acredita-se, foi tirada por volta de 1880. "Este é um elo perdido na iconografia de Rimbaud", diz Lefrère. Até agora, apenas oito negativos que representam o poeta eram conhecidos. Em quatro deles, do período africano, seu rosto mal pode ser visto. Porém, aqui nos deparamos com Rimbaud, oferecendo-nos o seu rosto, seus olhos". Esta é uma fotografia "real" com uma alma que surge”. O conservateur* Alain Tourneux, ao comentar a descoberta da foto para o jornal regional francês L’union Presse, afirmou acreditar ser a foto realmente de Rimbaud: « Na medida em que existe uma foto de Rimbaud de 1891, na qual ele já aparece magro, cansado, castigado pelo clima e por sua condição de vida, eu diria que a foto foi tirada algum tempo depois de sua chegada a Aden, por volta de 1880, quando ele tinha 25 ou 26 anos. Um jovem adulto. Uma rosto que não se conhecia. Não é mais o adoslecente imortalizado por Carjat. Não é ainda o europeu magro e cansado que se observa nos retratos posteriores. Esse Rimbaud nos era efetivamente desconhecido até hoje”.
E para finalizar a prosa: publicou-se, hoje, que no mesmo dia da abertura da exposição, um comprador anônimo teria comprado a fotografia. Não se conhece a identidade do rico rimbaldien, mas a imprensa especula que o tal comprador teria pago pela raridade um valor que ultrapassa os 100.000 euros. Resta saber o que acharia disso Rimbaud, que morreu em situação modesta aos 37 anos, em razão de um tumor no joelho direito que levou à amputação de sua perna.
Imagens: Nova foto de Rimbaud, sentado, o segundo, da direita para a esquerda e foto de Rimbaud quando jovem.
* conservateur: termo em francês que designa o administrador ou responsável por uma biblioteca, um museu ou instituição.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Index Librorvm Prohibithorvm

"Há cerca de alguns dias, no pequeno vilarejo de Morro Branco, uma jovem por nome Diná, saiu para encontrar suas amigas quando foi abordada por um rapaz que a estuprou e humilhou-a. Logo após ter cometido tal crime, acompanhado de seu pai, o jovem foi procurar a família da moça para desculpar-se e pedi-la em casamento, dizendo ter se apaixonado por ela. Os irmãos da moça revoltaram-se e impuseram condições para que a união se concretizasse. Em razão do acordo entre as famílias, a polícia sequer foi procurada. Porém, três dias após o pacto firmado, os irmãos da jovem foram armados até a casa do rapaz e mataram todos os homens que ali se encontravam - inclusive meninos, além de saquearem a propriedade e roubarem todos os animais da fazenda. Vingar a violência contra a irmã foi a justificativa que deram por terem cometido os crimes. "

História iguais a essa são normalmente veiculadas nas páginas policiais. Porém, se você, leitor, abrir sua Bíblia, no livro de Gênesis, capítulo 34, ali terá todos os detalhes do relato acima. É certo que o nome da cidade, o tempo e a polícia foram invenções minhas na tentativa de atualizar o texto, mas ainda assim, não deixa de ser um acontecimento sangrento.
Por que essa história? Para mostrar que passados milhares de anos, a tolerância ainda continua artigo raríssimo, malgrado os esforços homéricos de Voltaire. Muitos, acredito, devem achar que a paga foi relativa, portanto, as mortes justificáveis. Questão de pressupostos; cada um é cada um. Não acho desculpável, sequer compreensível. Assim como não acho compreensível que em 2010, século XXI, ainda se condenem livros por esta ou aquela razão.

Ontem, li no jornal O Globo que nos Estados Unidos existe uma tal Associação Americana de Bibliotecas (ALA – American Library Association, http://www.ala.org/) que, entre outras coisas, divulga anualmente uma lista de livros proibidos, a exemplo Index Librorum Prohibithorum (Índice de Livros Probidos). O Index, cujo objetivo inicial era reagir contra o avanço do protestantismo, foi criado em 1559 no Concílio de Trento (1545-1563), quando ficou sob a administração da Inquisição ou Santo Ofício. Esta lista continha os livros ou obras que se opusessem a doutrina da Igreja Católica e deste modo tinha como objetivo prevenir a corrupção dos fiéis. O índice foi atualizado regularmente até a trigésima-segunda edição, em 1948, tendo os livros sido escolhidos pelo Santo Ofício ou pelo Papa. A lista não era simplesmente reativa, os autores eram encorajados a defender os seus trabalhos. Em certos casos eles podiam reeditá-los com omissões, caso pretendessem evitar a interdição. Digamos, um encorajamento da censura prévia.
Em determinados momentos da história obras de cientistas, filósofos, enciclopedistas ou pensadores como Voltaire, Galileu, Maquiavel, Kant, Descartes, Pascal, Espinosa, Rousseau, Hobbes, Locke, Montesquieu, Hume, Diderot, Nicolau Copérnico, Erasmo de Roterdã e escritores e poetas como Sterne, John Milton, Alexandre Dumas (pai e filho), Daniel Defoe, Victor Hugo, Anatole France, Balzac, Flaubert, Sartre e tantos outros fizeram parte da lista que, só em 15.6.1966, foi abolida pelo Papa Paulo VI.

Ironicamente, atendendo a pedido de grupos cristãos que protestam contra temas como bruxaria e histórias sobrenaturais, a ALA incluiu na lista Stephanie Meyer, autora famosa entre os adolescentes, por ter escrito a série de best seller Crespúsculo (J.K. Rowling, autora de Harry Potter também faz parte da lista). Segundo o jornal, o critério para a inclusão de obras na lista é o número de reclamações recebidas por escrito de bibliotecas ou escolas, pedindo a retirada dos livros de seus acervos por problemas de conteúdo. O mal-estar gerado por esses problemas é responsável por indicações de censura que beiram ao ridículo: no ano passado encabeçou a lista o livro And Tango Makes Three, de Peter Parnell e Justin Richardison, que conta a história de dois pinguins machos que adotam um bebê. Este ano, passado a euforia da publicação, o livro caiu para segundo lugar na lista.

Evidente que em tais critérios de censura não se discute o fator qualitativo, já que isso também cabe ao leitor decidir. Contudo, é lamentável que uma congregação de bibliotecários se prestem a papel tão contraditório, qual seja, proteger os livros e não tomar para si o papel de censores, ainda que sob o pretexto de estarem atendendo aos apelos do público, este, diga-se, tomada de extremo puritanismo ou doente. A doença? Transtorno bipolar, pelo simples fato de que também a Bíblia nos traz histórias fantásticas, sobrenaturais, de violência, segregação, intolerância e, no entanto, contínua sendo um dos livros mais lidos do planeta. É certo o argumento de que o Livro Sagrado deve ser lido com os olhos abertos pelo Espírito, contudo, relatos, narrativas, personagens, temas, mitos e epopeias continuam lá e são passíveis de análises, inclusive literárias. Felizmente, os cristãos pudicos americanos ainda não se deram conta disso, senão, seriam bem capazes de clamar por sua censura, a exemplo do que já fizeram com uma réplica do Davi, de Michelangelo, em uma escola americana.
Paródia ou não, a discussão chegou a Springfield, cidade natal dos Simpsons. Correu a notícia de que o Davi, de Michelangelo ia fazer um tour pelos Estados Unidos, de costa à costa. Bem... para ser preciso, Nova York, Springfield e, se houvesse tempo, Chicago, Boston e Los Angeles. Eis o que se passa em Springfield com a chegada de Davi: Marge encarregada de uma cruzada contra a violência na televisão procura suas amigas, Maude e Helen, para um novo protesto. Desta vez contra a abominável nudez do esplêndido renascentista.
Marge - Mm, mas é o Davi de Michelangelo. É uma obra prima!
Helen - (ofegante) É uma sujeira! Essa estátua mostra graficamente partes do corpo humano que, muito embora úteis, são más.
Marge - Mas eu gosto da estátua.
Helen - (de novo ofegante) Eu disse para vocês, meninas, que Marge é tolerante para com a completa nudez frontal! Ora, vamos...

Enquanto o protesto aumenta, Kent Brockman aparece na tela da televisão:

Kent Brockmann - Trata-se de uma obra prima ou apenas de um cara sem calças? Este é o assunto desta noite no programa Smartline...

Marge desiste e resolve ir ao museu para ver Davi com Homero:

Homero: Ai está... O "Dave" do Michelangelo...

De sua parte, Marge preferia que as crianças estivessem também aí para apreciar essa obra de arte em vez de perder tempo na frente da televisão com os desenhos animados do gato e do rato, entre outros. Homero é mais otimista:

Homero: Não vai demorar para que todos os meninos e meninas da escola elementar de Springlield estejam aqui para ver essa coisa.
Marge: Realmente? Por quê?
Homero: Eles estão fazendo força para traze-los! (ele ri)

(Trechos de Swazwelder, Itchy and Scratchy and Marge)

Imagens: Index Librorum prohibitorum; Davi, de Michelangelo e Simpsons.


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terça-feira, 13 de abril de 2010

O Beijo

Dizem que a história toda começou na Itália. Ninguém até agora identificou o lugar preciso, embora digam o nome do autor: Enrique Porchelo. O dia internacional do beijo foi criado em 1982 em razão de um feito inédito do tal italiano: conseguiu beijar todas as mulheres de sua pequena cidade. Muitos afirmam ter sido ele - ou ainda é?, um garanhão. De minha parte o considero não só corajoso, mas também alguém de espírito verdadeiramente altruísta, sublimador, enfim, um artista. Afinal, pense bem meu querido leitor, nosso homem deve ter beijado beldades, mas também deve ter passado lá seus maus bocados. Quanto malabarismo! Quantas cercas não deve ter pulado, de quantos maridos não deve ter corrido; quantas bocas, digamos, ainda não recuperadas por doses de botox, não deve ter experimentado? Afinal, um artista não pode ter qualquer preconceito!
Como em toda boa história, sua aventura encaminhou-se para um clímax e esse ocorreu em 13.4.1982, quando um padre francês, morador da mesma cidade, propôs pagar um prêmio em moedas de ouro para as únicas mulheres que ainda não haviam sido beijadas no vilarejo. Como não havia sequer uma que não tivesse sido beijada pelo tal Porchelo, o valor do prêmio foi guardado e todos os anos, nesta mesma data, são procuradas mulheres que ainda não tenham sido beijadas para receber o prêmio.
Contam também que até hoje mulher alguma recebeu o prêmio e que com a morte do padre, as tais moedas devem estar escondidas em algum lugar da pequena cidade. Portanto, caros leitores, beijados ou não, vamos todos à caça ao tesouro.
Impossível que essa história tenha algo de veracidade. Por isso, penso tratar-se de uma fábula, chinfrim, nada à la La Fontaine , mas ainda assim uma fábula. Observem os clichês: 1. lugar impreciso (a exemplo das histórias infantis: em um reino muito distante, aqui - numa cidade da Itália, não se sabe qual); 2. o nome do autor: Enrique Porchelo? Devem existir inúmeros, afinal Enrique, na Itália, deve ser como João ou José da Silva no Brasil, portanto, nome quase impessoal, generalizado; 3. o fato de todas as mulheres terem sido beijadas: lembram-se do Flautista de Hamelin que ora levou todos os ratos para fora da cidade com o som mavioso de sua flauta ora, furioso, fez o mesmo com as crianças? (pois é, essa coisa superlativa me cheira história de marqueteiro); 4. o padre e as moedas de ouro: quem, no mundo de hoje, ofereceria moedas de ouro? (aqui há um ranço de história medieval). Hoje, interessam-se por euros e doláres. Ouro em barras já é problema, trocá-lo por moeda corrente significa desfar-se de parte dele, repassar uma pequena parte ao cambista, seja ele banqueiro ou doleiro, o que não seria o caso, pois a história fala de moedas. Moedas: quais, se hoje já não se cunham mais moedas em ouro?; 5. o italiano coureur não deixava escapar mulheres casadas (aqui, um lance meio Casanova, só para afrontar a Igreja, no caso, representada pelo padre. Detalhe: o padre era francês, mais um enigma para os teóricos da literatura) e 6. as moedas que foram escondidas com a morte do padre: o velho chavão da caça ao tesouro que, ao mesmo tempo em que provoca a eterna ambição que vive dentro do leitor, demonstra sua inelutável limitação: afinal, beijar todos podem, mas achar o tesouro, ah! isso é outra história.

Mas deixando o vil metal de lado, como o beijo apareceu? Muitos especialistas argumentam que o autor do primeiro beijo não é identificado - pura idiotice, já que semelhante busca equivale a querer provar se quem apareceu primeiro foi o ovo ou a galinha. A razão pela qual o ato surgiu? Nem cientistas, antropólogos, historiadores ou filósofos têm justificativa única. Existem muitas teorias. Por que as pessoas se beijam? Em primeiro lugar, é uma tradição cultural. Quase no mundo inteiro as pessoas envolvidas em uma situação romântica sentem uma necessidade não explicada de se beijarem. Há um argumento de que representantes do sexo oposto estão programados para beijar e estão sempre esperando um momento oportuno. Mas me vem a questão: e o terceiro sexo, hoje tão expandido demograficamente, como fica? Não beija? Conclusão: argumento fajuto.

Muitos dizem que na sociedade moderna tudo leva ao beijo: concursos em shoppings premiam os beijoqueiros que mais tempo se mantêm "grudados" e as pessoas se sentem coagidas a beijar porque veem os atores se beijando em telas de TV, filmes e anúncios publicitários. Como resultado, em determinadas situações, o beijo é percebido como um ato essencial. É por isso que em qualquer situação romântica o estereótipo inconsciente entra em ação e as pessoas sentem um desejo quase irresistível de beijar, não importa se querem fazer isso ou não. Trata-se de algo incontrolável, um impulso meio freudiano. Afinal, um beijo é mais que apenas um beijo, ou seja, "é o uso sexual das membranas mucosas dos lábios e da boca", conforme dito por Freud. O fato é que pouca gente se dá conta disso quando beija. E olha que nem falo do beijo do vampiro, do beijo de Judas, do beijo da morte, os quais, presume-se não tenham as mucosas envolvidas.
Ao largo das definições, a arte nos comove pela estética. Assim, Rodin esculpiu Le Baiser, assim Robert Doisneau nos deixou Le Baiser de L'Hôtel de Ville.


Imagens: Le Baiser de l'Hôtel de Ville, 1950, de Robert Doisneau e Le Baiser, 1890, de Auguste Rodin.

domingo, 11 de abril de 2010

O canto das sereias

O mundo é pop! Ainda que hora ou outra a tradição se insurja contra a pasteurização geral, é comum encontrar epopeias, mitos e ícones da história massificados para o consumo geral. A mídia, é claro, é a que mais contribui para isso. Mas as artes também dão sua contribuição. Quem já não viu a Mona Lisa travestida em matizes mil? Um diferente do outro, porém, todos preservando aquele sorriso enigmático, misterioso e meio matreiro, de alguém prestes a dizer algo tão interessante que, qualquer cristão, ainda que finja indiferença, se põe morto de curiosidade. E Jesus Christ Superstar, o musical de rock de Andrew Lloyd Webber, com texto de Tim Rice, apresentado em 1970!? A história destaca os embates entre Jesus e Judas Iscariotes. Ainda que a ação seguisse mais ou menos os evangelhos, havia uma dinâmica atual e as gírias prevaleciam nas letras das músicas, com alusões irônicas à vida moderna, criando com isso uma ponte entre a política da época e os acontecimentos atuais. O álbum do espetáculo, uma dramatização musical da última semana de vida de Jesus Cristo, foi base para a criação de vários musicais na Broadway e West End e atingiu o primeiro lugar nos mais vendidos da Billboard, em 1971. Ted Neely, o ator que interpretou Jesus Cristo, na versão cinematográfica de 1973, despertou desejos outros - que não exatamente sacros, em uma multidão de fãs.

Semana passada, dei de cara com a Odisseia, de Homero, mais precisamente o Canto XII, o trecho em que Ulisses (Odisseu, em grego) e seus companheiros chegam à Ilha das Sereias. Circe, deusa grega cuja característica principal era a capacidade para a ciência da feitiçaria, não só orienta Ulisses sobre os perigos que teria que enfrentar, como também o ajudou nos preparativos para a partida, ensinando aos seus marinheiros o que deveriam fazer para passar incólumes pela costa da Ilha das Sereias. As sereias eram ninfas marinhas que tinham o poder de enfeitiçar com seu canto todos que o ouvissem, de modo que os infortunados marinheiros sentiam-se irresistivelmente impelidos a se atirar ao mar, onde encontravam a morte. (Em tempo: as sereias da Odisseia tinham asas.)
Circe aconselhou Ulisses a cobrir com cera os ouvidos de seus marinheiros, de modo que não pudessem ouvir o canto, e a amarrar-se a si mesmo no mastro da nau, dando instruções a seus homens para não libertá-lo, fosse o que fosse que ele dissesse ou fizesse, até terem passado pela Ilha das Sereias.

Agora, leitor, me diga você: a popularização das sereias, no Brasil, não pode bem ter começado com a lenda da Iara, a astuta personagem do folclore brasileiro? Na lenda indígena, essa linda habitante dos rios do norte do país não é tão fatalista quanto sua símile helênica e, eventualmente, oferece à vítima a possibilidade de se escapar da morte. Nas pedras das encostas, Iara tinha por passatempo o hábito de atrair os homens com seu belo e irresistível canto. As vítimas costumavam segui-la até o fundo dos rios, de onde nunca mais voltavam. Os poucos que conseguiam voltar acabavam loucos em razão dos encantos da sereia. Neste caso, conta a lenda, somente um ritual realizado por um pajé poderia livrá-los do feitiço. Resumo da ópera: o fato é que cansadas de nadar em águas gregas e mediterrâneas, as sereias deram umas braçadas mais, se embrenharam talvez pelo Amazonas e, giro feito, tempos depois voltaram ao mar, acabaram próximo a um terreiro e misturaram seu canto ao tambores. Quem não se lembra da música Lenda das Sereias? Oguntê, Marabô/Caiala e Sobá/Oloxum, Ynaê/Janaina e Yemanjá/São rainhas do mar/Mar, misterioso mar/Que vem do horizonte/É o berço das sereias/Lendário e fascinante. Confesso: fico curioso com toda essa diversidade, mas ainda me encantam as sereias helenísticas e mitológicas.

Porém, elas, as sereias, nem sempre são tão pops assim. Basta lembrar de que elas entraram como metáfora para a história literária. Maurice Blanchot, em O livro por vir, liga o canto das sereias à narrativa. Assim, a Odisseia - a narrativa, figura como o túmulo de Ulisses, pois na narrativa as sereias perdem seu encantamento, ou seja, seu canto mavioso não mata mais, pois o canto não é mais imediato, mas contado, o que o torna aparentemente inofensivo, enfim, tem-se uma ode transformada em episódio. A narrativa é o relato de alguém que ouviu contar de alguém que ouviu o canto das sereias. Disso, pode-se afirmar que o túmulo de Ulisses é a narrativa, pois o fato de ter-se amarrado é o que possibilita o recontar. Assim, a narrativa é um acontecimento diante da morte, isto é, o recontar a partir de alguém que sobreviveu à morte. O enunciado de Ulisses é excepcional, é uma verdadeira situação de fala, já que é algo que atesta a existência do sujeito que tem uma história incrível para contar. De maneira tortuosa, dentro do contexto da narrativa, o caráter heróico de Ulisses na epopeia é relativizado, pois ele não enfrenta a morte, não luta contra ela sucumbindo-a, porém, através do poder da técnica - ainda nas palavras de Blanchot, ludibria a morte. Daí, que toda narrativa é incompleta, já que aquele que a relata não chega até o final. Amarrado ao mastro da nau, o máximo que Ulisses experimenta é o prazer que traz consigo a maior de todas as dores, que é a vontade de morrer. Não se deixou levar, experimentar o prazer com gozo - morrer de fato ao ouvir o canto das sereias, mas quis morrer e voltar para contar. Por isso fez-se herói, ainda que relativizado.

Para por fim à prosa vale ainda lembrar Kakfa, que imprimiu ao episódio um outro viés. Em seu livro O Silêncio das Sereias, as sereias possuem uma arma ainda mais temível do que seu canto: o silêncio. Bref, histórias que instigam e enriquecem a literatura.
Imagens: Ulysses and the Sirens, de John William Waterhouse (1891), Ulysses and the Sirens, de Herbert Draper (1909) e Ulysses and the Sirens, de Thomas Moran (1900).

terça-feira, 6 de abril de 2010

Era uma vez...

O título remete às histórias infantis, aos contos de fadas. Era uma vez, num reino muito distante, uma princesa virgem (rsrsrs). Ah, meu querido leitor, isso já não é mais possível! Onde acharíamos nós uma princesa virgem? E um reino muito distante nesse mundo de meu Deus, todo globalizado, com os satélites invadindo cada cantinho nosso e desnudando-o todo nas páginas do Google? Considerando bem, você pode trazer sua exata contrariedade e afirmar: mas e o Bin Laden? Ainda não acharam sua caverna. Aí, dou-lhe minha réplica: não acharam sua caverna porque afinal eles, os do norte, precisam de um contraponto; se o matassem, cairíamos todos na mesma balela: Elvis não morreu, Michael Jackson não morreu, Bin Laden não morreu e, sinceramente, esqueceríamos da caverna e iríamos diretamente tratar de túmulos e outros afins. Em se tratando de túmulos, não tem sido outro o destino dos casarões coloniais por todo o país. Já disseram que somos um povo sem memória. Acreditei que exatamente por se dizer isso, encontraríamos alguma. Qual nada! Continua tudo na mesma. Já falei aqui da Ermida do Guaibê que se desintegra sob a água das chuvas, a ação dos vândalos e a indiferença do poder público.

Experimente você pesquisar na Internet sobre casarões que se foram recentemente. Vale um conto: Era uma vez um casarão, numa ex-capital federal que, à sua maneira, se reurbanizou e inspirou-se tanto em Paris, que chegou mesmo a ter um período de sua história chamado de Belle Époque Tropical... Agora coloque o sujeito principal no plural. Multiplique a palavra casarão várias vezes, eleve a potência, aí, sim, terá a justa medida do descaso. A história é sucessiva e impiedosa. Veja-se:

Terreno de casarão que desabou após incêndio no Centro do Rio tem ... - 10:28
25 Mar 2010 ... RIO - Alguns dias após um incêndio que destruiu um casarão no Largo de São Francisco, Centro histórico e corredor cultural do Rio de Janeiro ...oglobo.globo.com/.../terreno-de-casarao-que-desabou-apos-incendio-no-centro-do-rio-tem-destrocos-vergalhoes-exposto-sem-isola... -
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Cliqz.com - related to: Incêndio atinge lojas e prédio desaba no ...
Enquanto os bombeiros tentavam apagar as chamas, a fachada desabou. Um incêndio destruiu um casarão centenário no Rio de Janeiro. ...www.cliqz.com/br.actualidade/c/91048.html - Em cache
desabamento no Centro do Rio - Alexandre Costa Pereira - 10:31
Próximo ao casarão que desabou parcialmente, funcionam a escola de música da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a Sala Cecília Meireles, ...www.portalmaratimba.com/noticias/news.php?codnot... -
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G1 > Edição Rio de Janeiro - NOTÍCIAS - Após desabamento, ruas do ...
19 Mar 2010 ... Parte de um antigo casarão desabou após incêndio. Defesa Civil aguarda liberação para vistoriar casarões vizinhos. Do G1, no Rio, ...g1.globo.com/.../Rio/0,,MUL1536785-5606,00-APOS+DESABAMENTO+RUAS+DO+LARGO+DE+SAO+FRANCISCO+CONTINUA... - Em cache
Ivanaldo Xavier: Casarão desaba em governador Dix-Sept Rosado
O antigo casarão fica localizado na Rua Dix-huit Rosado e pertence à Mineração Jerônimo Rosado. ... Universidade Federal do Rio de Janeiro desenvolve . ...ivanaldoxavier.blogspot.com/.../casarao-desaba-em-governador-dix-sept.html - Em cache
Vídeos Terra TV - Brasil Casarão desaba e mata 7 pessoas no Recife
Rio de Janeiro ... Dilma chora em cerimônia de despedida da Casa Civil ... Médicos em greve liberam paciente que morre em casa ...terratv.terra.com.br/.../Casarao-desaba-e-mata-7-pessoas-no-Recife.htm?... - Em cache
Casarão desaba no centro do Rio; não há confirmação de feridos ...
5 Dez 2009 ... Um casarão desabou na tarde deste sábado no centro do Rio de Janeiro. De acordo com informações preliminares do Corpo de Bombeiros, ...noticias.bol.uol.com.br/brasil/2009/.../ult4733u47248.jhtm - Em cache
CASARÃO DESABA EM FRENTE IGREJA DE STO ANTONIO - Bahia notícias
18 Mai 2009 ... Mais um casarão desabou na manhã desta segunda (18) por causa das fortes ... 02/01/2010 00:00 - CHUVAS NO RJ FAZEM GEDDEL SUSPENDER FÉRIAS ...www.samuelcelestino.com.br/.../40171,casarao-desaba-em-frente-igreja-de-sto-antonio.html - Em cache
Chuva provoca desabamento de casarão, queda de árvores e ...
21 Abr 2009 ... Um casarão desabou na manhã desta terça-feira, 21, ... é so aqui? sao paulo fica alagada,recife,rio de janeiro,TODAS.ou seja,brasil :) ...www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=1128571 - Em cache
Parte do Casarão do Embaixador Expedito Resende desabou ...
6 Mai 2009 ... Parte do Casarão do Embaixador Expedito Resende desabou ... Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte ...www.meionorte.com/piripiri,parte-do-casarao-do-embaixador-expedito-resende-desabou,83930.html - Em cache - Similares

Nada a comentar: é só você, leitor, se aventurar por uma dessas notícias (Isso é só a primeira página de uma pesquisa!!!) e verá o descaso de prefeituras e autoridades. Lamentável!

Felizmente, não se perde tudo e a memória não se apaga totalmente em razão de registros e da passagem de espíritos altaneiros, curiosos e elevados, a exemplo de Marc Ferrez, fotógrafo, nascido no Rio de Janeiro e um dos pioneiros da fotografia no Brasil. Ferrez, abandonou seus estudos em Paris (1859) e, de volta ao Rio, trabalhou com o gravador e litógrafo George Leuzinger. Aprendeu a fotografar com o engenheiro e botânico Franz Keller e fundou sua própria firma, a Marc Ferrez & Cia (1864). Participou de uma expedição científica da Comissão Geológica do Império do Brasil, quando fotografou pela primeira vez, em plena selva, os índios botocudos (1875). Participou de várias exposições internacionais e teve algumas obras premiadas. Foi professor de fotografia da Princesa Isabel e, por seu trabalho artístico, recebeu do Imperador D. Pedro II o grau de Cavaleiro da Ordem da Rosa (1885). Entusiasta do cinema, inaugurou o cine Pathé, na avenida Central (1907). Morreu na sua cidade natal e deixou um acervo de centenas de chapas fotográficas. Sua obra constituiu um acervo fotográfico que se destacou pelo registro da natureza do país e registro da transformação radical da paisagem urbana do Rio de Janeiro no início do século XX. Um álbum de fotografias (1906-1907) sobre a arquitetura da avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, é tida como sua obra mais conhecida.

A família Ferrez há muito mantinha ligação com o Brasil. Os dois primeiros membros da família que se radicaram no Brasil, vindos da França, participaram do esforço inaugural de sistematização do ensino de arte no Brasil, iniciado com a criação da Escola Real de Ciências Artes e Ofícios, em 1816 - transformada, em 1820, na Academia de Belas Artes. Vieram em 1817, um ano depois de ter aportado, no Rio de Janeiro, o primeiro grupo de escultores, arquitetos e pintores, aos quais convencionou-se chamar de Missão Artística Francesa, de 1816. Eram eles os irmãos escultores Marc e Zépherin Ferrez, que se entusiasmaram tanto com o Brasil que aqui decidiram ficar pé.

Filho de Zépherin, o fotógrafo Marc Ferrez (1843-1923) foi não só o mais importante profissional da fotografia no país, no século XIX, a ponto de ter sido o único agraciado com o título de Fotógrafo da Marinha Imperial, mas também um destacado representante de produtos fotográficos, contribuindo para a difusão e a consolidação da prática da fotografia no Brasil. Ferrez também integrou a primeira leva de exibidores cinematográficos do país, e, como representante de equipamentos e produtos cinematográficos, ajudou a montar salas de cinema Brasil afora, inclusive fornecendo filmes para programá-las. Em São Paulo, na Galeria Olido, é possível ver parte do trabalho de Marc Ferrez na Exposição Família Ferrez: em retrato de grupo, uma vez que a mostra também traz parte do trabalho de seus descendentes, Júlio, Luciano e Gilberto Ferrez, todos, amantes da fotografia que ajudaram a registrar a memória que insistimos dizer que não temos e, de certa forma, a eternizar a nostalgia de tempos em que a natureza já foi mais exuberante e a arquitetura mais que uma caixa de concreto, tijolos e vidros, não raro enquadrada por alumínio e erigida em meio ao puro asfalto, desprovida de charme, mas abundante de néon.
Imagens: Avenida Central (atual Rio Branco), no Rio, em 1910, quando era repleta de construções em estilo neoclássico; Largo do Paço e Rua Primeiro de Março, 1890, Rio de Janeiro; Rua Primeiro de Março, 1890, Rio de Janeiro e Machado de Assis, 1890, por Marc Ferrez.