Revista Philomatica

terça-feira, 30 de abril de 2019

Formados e iletrados


Em busca do carro das ideias corro os olhos pelas notícias produzidas ao longo da semana. Acostumado à manipulação de periódicos antigos e recentes, noto a flagrante ruptura ocorrida com a ocorrência da internet. Refiro-me à interação responsiva do leitor. Em grandes periódicos impressos ainda resistem as seções “Painel do Leitor” ou “Carta dos leitores”, que muitos já tratam como gênero textual.
Esses leitores comentaristas e críticos maturavam suas ideias ao escrever, qual seja, supõem-se que liam os textos, senão demoradamente, mas em sua integralidade, antes de se comunicarem com os jornais. A interlocução era mais demorada, o que, acredito, impunha certo filtro aos comentários. Havia opiniões que extrapolavam a simples manifestação da concordância e ou discordância da matéria, estendiam a discussão proposta provocando uma interação que acabava por abarcar um grupo amplo de leitores e, com isso, criava-se um diálogo em que o objeto em questão era analisado em seus diferentes aspectos. Isso, em muitas das vezes, destituía a parcialidade primeira imposta à matéria.
Hoje, contudo, com a agilidade impressa aos meios de comunicação, sobretudo sites de notícias que permitem a opinião instantânea do leitor, algo mudou. Há certa impaciência na leitura de textos um pouco longos. Quando digo ‘um pouco longos’ refiro-me a textos que dobram ou triplicam a quantidade de caracteres imposta pelo Twitter, por exemplo. Nesse novo formato não se tem mais tempo para pensar sobre o que se está lendo e o resultado disso tudo é um circo de horrores que se materializa nos comentários.
A opinião dos leitores é rasteira, superficial e, não bastasse isso, vem acrescida de uma enormidade de erros gramaticais. É certo que os adeptos da Escola do Ressentimento defendem a ideia do preconceito linguístico, mas não estou falando disso, até mesmo porque, dependendo do viés, isto pode ser desmontado como um castelo de cartas. Em tempo: considero a existência do preconceito linguístico, mas é incompreensível que alunos saiam de curso universitário escrevendo como escrevem nos comentários que deixam ao final das matérias em sites de notícia. É lamentável! Mesmo o ensino superior (falo dos departamentos de letras, os outros, só Deus na causa!) passou a só instrumentalizar: lê-se para ler manuais, bulas e informativos. Se não generalizo é porque justaponho ao lado da redundante “grande maioria”, uma minoria perdida quase extraterrestre.
Ginecomastia, fotofobia, dor abdominal superior, constipação, boca seca, disgeusia, dispepsia, astenia, calafrios, fadiga, fogacho, mal-estar, pirexia icterícia, reação anafilactóide, hiperlipidemia, aumento do apetite, mialgia, tontura, parestesia, calor, formigamento, sonolência, insônia, nervosismo, epistaxe, eritema multiforme, prurido, erupção cutânea, urticária, xeroderma, hipotensão ortostática etc, são alguns dos sintomas que o leitor ou alunos sentem face a um texto que demanda algum tempo e alguma reflexão.
Nesses tempos de intensa cultura massa e pasteurização do conhecimento, em que clássicos são reduzidos a extratos e textos de duas colunas dão conta de assuntos complexos, que não pedem mais que dois minutos de leitura, é impossível não se lembrar de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury e citá-lo de memória sem aspas nem nada!
Os alunos saídos hoje da universidade, tornam-se leitores preparados para a leitura instrumentalizada de manuais, bulas e informativos, porém, ao sair, acreditem, mostram-se pouco íntimos de livros que têm textura e poros. Os poros, para Bradbury, significam qualidade e qualidade muitas vezes traduz-se por clássicos. Para quem não sabe, nos departamentos de letras há a tchurma especializada em refutar os clássicos. Ocorre que esta espécie de livro têm feições, diz Bradbury, e as feições nem sempre agradam à massa bovina e frívola que quotidianamente se movimenta como títeres e cuja preocupação é a expressão, o elogio ou a crítica que pode ferir o outro, não pela intenção, maldade, exploração ou preconceito, mas porque o discurso montado pela Escola do Ressentimento assim o quer. E voilà, continuamos todos bem informados, mas pensamos pouco, bem pouco. Afinal, a ignorância é tranquilizadora e traz a felicidade que todos procuramos.

Publicado originalmente em https://z1portal.com.br/formados-e-iletrados/

Quasímodo chorou


A semana não foi das melhores para os amantes das artes: na segunda-feira à noite a Catedral de Notre-Dame de Paris foi parcialmente consumida pelas chamas, deixando atrás de si uma multidão dividida: os consternados com a tragédia e os que boquejaram quando começaram a afluir os donativos para a restauração da centenária Catedral.
A pobre e maledicente turma do boquejo, penso, deve ser ignorada, até mesmo porque não estou aqui para falar da Escola do Ressentimento. Os estudantes islâmicos da UNEF, tênias no estômago francês, e os muçulmanos que comemoraram o incêndio são provas da existência de um radicalismo doentio e de uma intolerância perversa, por isso e só por isso, são-me indiferentes.
A Catedral, cuja construção começou no ano de 1163, pelo bispo Maurice de Sully, é inspiradora e frequentou as melhores páginas da literatura e da poesia francesa. Rabelais, Peguy, Claudel, Nerval e Balzac são alguns dos que se inspiraram na Notre-Dame.
Talvez a obra que maior repercussão deu à Catedral foi Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo. Um dos protagonistas da trama, o corcunda Quasímodo, é uma das personagens mais feias e populares da história da literatura; coxo, ensurdeceu devido à atividade de sineiro dos sinos de Notre-Dame. Quasímodo também é a chave para a justaposição do grotesco e do sublime em Notre-Dame de Paris, algo que Hugo faz de modo extraordinário.
Na segunda-feira, Quasímodo chorou.
Cego de um olho, aos quatro anos Quasímodo é abandonado pelos pais por causa de suas deformidades físicas. Recolhido pelo padre Claude Frollo, a ele se dedica inteiramente, passando a morar na catedral de Notre-Dame. Quasímodo, o nome, recebera-o de Frollo em referência à festa homônima, celebração católica realizada no primeiro domingo após a Páscoa, porque este fora o dia em que o padre o encontrara. O pequeno abandonado tornar-se-ia um dia o responsável pelo badalar dos sinos da Catedral.
Rejeitado pela multidão, que não apreciava ver um corcunda, caolho e coxo circulando por entre ela, Quasímodo pouco se aventurava pelos espaços exteriores, limitando-se a uma autoclausura na Catedral. Aos 20 anos, apaixona-se pela cigana e dançarina Esmeralda, que, por sua vez, encanta-se pelo oficial da guarda Phoebus.
Frollo também apaixona-se pela cigana e, louco por ter sido desprezado por ela, entrega-a à justiça. A caminho da forca, Quasímodo tentará salvá-la, levando-a nos braços para a Notre-Dame, que, na condição de igreja, era lugar de asilo.
Após a execução de Esmeralda, Quasímodo, que assiste a cena do alto das torres, joga Frollo no vazio; depois, morre ao lado do corpo de Esmeralda, onde eram depositados os restos dos torturados.
Assim como Frollo, partes da catedral caíram no vazio. Assim como Esmeralda, a Catedral foi consumida pela ignorância. Assim como Quasímodo, choramos a morte da arte e da inspiração e morremos um pouco em meio à mediocridade.

Publicado originalmente em https://z1portal.com.br/quasimodo-chorou/

sábado, 20 de abril de 2019

As delícias do sexo a três


Leitor obtuso, por mais que você se esconda na crosta da hipocrisia moral e religiosa que protege a sagrada família brasileira, estou certo de que tem lá os seus segredos. Não há quem não os tenha. Revelá-los, fica por conta de alguns poucos corajosos. Para outros, no entanto, a literatura e as artes são espaços para inconfessas confidências. Leitores são como matilhas, dividem-se em grupos: alguns, amplos e populares; outros, restritos, diminutos, mas todos dispostos à caça. Há grupos que saem à noite em busca da carne tenra, apetitosa, promíscua e pecaminosa; há outros que procuram mistérios, desejos gozosos e recônditos, dissimulados nas entrelinhas, nas dobras da páginas, nas curvas macias das lombadas, sob a contra capa e as cantoneiras. O foda é que até mesmo esse grupo de leitores chegou à conclusão de que a literatura séria é coisa para poucos, muito poucos, arcaísmo quanto o latim, embora escrita em vernáculo.
Quem lê Guimarães, Machado, Hilda Hilst? Poucos, creiam-me. Hoje, nem mesmo escritos sobre a boa literatura atraem leitores. A prova, encontrei-a nas asneiras que semanalmente aqui escrevo.
Quando falo da perversão religião ou dos prazeres do cu, o público leitor aumenta: a primeira, arrisco, desperta a ira de fanáticos, saudosos da santa inquisição; os últimos, desperta nos que leem a busca por alguma correspondência, afinal, uma cunilíngua e uma borboleta paraguaia devem ter lá sua nesga simbolista.
Não sou Hilda Hilst, mas estou certo de que o leitor quer mesmo é bandalheira. Corri os olhos pelos sites de notícia e a matéria mais lida tratava-se da suruba da Anitta. O livro Furacão Anitta, de Leo Dias (?), uma biografia “não autorizada”, sequer despertou o interesse do público, mas o comentário de que a celebridade gosta de transar a três viralizou. A ressalva, feita pelo jornalista, foi que Anitta não fizera ménage durante o casamento, afinal, nossa hipocrisia tem limite. Um ménage aqui, uma suruba ali, tudo bem, mas nem tudo deve ser dito e feito, sobretudo no sagrado do lar.
Hilda Hilst afirmou um dia que só começou a escrever bandalheira em razão da escassez de leitores para sua literatura séria. Não estava errada: a literatura séria obriga a reflexão e o leitor sedento de pornografia gosta mesmo é de putaria e bandalheira! Refletir? Não, jamais!
Mas caiu do cavalo aquele leitor que cavalga em espaços sujos, promíscuos e pegajosos do gozo anterior de prostitutas e prostitutos, de pais e mães de família. A escritora não! Hilda não se dá a tanto, não se rebaixa. Sua literatura oferece níveis, degraus a subir: engana-se o leitor que está só à procura da devassidão, da transgressão e do sujo.
Hilda aproxima o divino do profano: toda a sujidade daquele que foi feito à semelhança de Deus é escancarada. “Deus é quase sempre essa noite escura, infinita. Mas ele pode ser também um flamejante sorvete de cerejas. É uma escuridão absoluta, mas de repente te vem uma volúpia doce lá dentro.”[1]
Em Estar sendo, ter sido (1997), Hilda, apresenta Deus no lugar mais improvável – e reprovável -, porém o mais desejado pelos leitores sedentos de pornografia. Face à morte e delirando, o velho Vittorio repensa a vida e, obstinado com a ausência do Deus que o habita, pede a empregada que procure vestígios do sagrado em uma parte de seu corpo na qual jamais imaginaríamos experimentar a presença de Deus:
[…] sabe, Rosinha, ele está aí dentro, estou sentindo
onde seo Vittorio, onde?
No meu cu, idiota, ah, está bem, não chora, já vi que você não entende nada de deus, eu precisava é falar com Dom Deo, mostrar-lhe o único buraco aqui na Terra onde deus habita.[2]
Ao leitor que renega a literatura, mas gosta de uma putaria, um pouco de reflexão: se és feito à semelhança de Deus, teu corpo é obra divina, teu cu é obra divina! E nem vou perguntar se Deus tem cu.
Até nossos próximos encontros gozosos – caso apareça, leitor -, e, para justificar o título, que venha acompanhado!



[1] Entrevista concedida a Caio Fernando Abreu, em 1987. Em: Fico besta quando me entendem, 2013, p. 99.
[2] Estar sendo, ter sido, 2006, pp. 101-102.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Livros das sagas Harry Potter e o Crepúsculo são queimados em auto de fé na Polônia


Não, leitor, não se trata de mais um ato das Inquisições Espanhola e Portuguesa, mas sim de mais um episódio em que a ignorância, despudoradamente, grassa sob nossos olhos, na tentativa de reforçar algum obscurantismo em almas ainda guiadas por certa metafísica teológica ou pura carolice, seja lá o que isso for.
O fato é esta semana sacerdotes católicos queimaram livros das sagas Harry Potter e Crepúsculo, na cidade polonesa de Koszalin. Os clérigos consideraram-nas sacrílegas e justificaram seu ato afirmando a necessidade e “obedecer à palavra divina”. Esses religiosos, oriundos de um grupo denominado ‘SMS dos Céus’, sustentam que os livros promovem a bruxaria. Leitor, se você vislumbrar nisso ecos medievais e inquisitórios, mantenha a sanidade, estamos sim em 2019. Não é delírio!
A cerimônia, promovida pelos padres católicos, foi fotografada e publicada no Facebook, o que provocou fortes reações. Nas imagens, vê-se três sacerdotes que levam uma cesta de livros, incluindo alguns da série Harry Potter, de J. K. Rowling, e do vampiro Edward Cullen, de Stepheine Meyer. No auto de fé, enquanto os padres entoam rezas, ardiam na cesta, além dos livros, outros objetos, como uma máscara de estilo africano, um guarda-chuva da Hello Kitty e uma estatueta hindu.
Na publicação,  os integrantes do ‘SMS dos Céus’, reproduzem uma parte do Deuteronômio, um dos livros do Antigo Testamento, cuja frase “vocês queimarão seus ídolos com fogo”, justifica a ação dos padres, que exortam os fiéis a destruírem os “inimigos de Deus”.
A ação é controversa, é claro, sobretudo porque intolerantes e fanáticos arrogam-se o direito de falar em nome de Deus. A pergunta que me vem ao espírito é rasteira: “Qual Deus?” A narrativa, leitor, é a mesma que se espraia em nosso torrão tupiniquim, em que uma certa autoridade do MEC (contratada, demitida e não empossada), julga-se no direito de atribuir apostos a Deus, fazendo do Altíssimo matemático e geógrafo. Por sua vez, Jan Kucharski, exorcista e pároco de Gdansk, no norte da Polônia, afirma que “não se tratava de queimar nenhum livro, mas objetos associados à magia e ao ocultismo”.
A Polônia, país beato que corroborou o genocídio judeu impetrado pelos nazistas, parece-me, tornar-se-á a mais nova teocracia na Europa, à moda de países do Oriente, com a diferença de que em vez da crescente, teremos a cruz; mas não se engane, a dose de intolerância e fanatismo será equivalente. Embora tenham recusado comentar o auto de fé, o episcopado e o bispo local reconheceram-no após sua visibilidade, afinal, antes de queimarem livros, amuletos e talismãs trazidos pelos fiéis, afirmaram que era “hora de colocar as coisas em ordem”.
A publicação do grupo religioso “SMS dos Céus” tornou-se viral e alguns fizeram comparações com a Alemanha nazista, referindo-se às queimas de livros de 1933, sob Hitler, quando vários intelectuais judeus e alemães pereceram em autos de fé. “Eu gostaria de pensar que isso é uma piada. Sério? Como as pessoas podem queimar literatura de fantasia no século XXI em um ritual de mau gosto?”, pergunta um internauta desorientado, perdido no tempo, e confuso com o obscurantismo. Por outro lado, outros aprovaram a ação dos padres: “Devemos parar a idolatria e o fanatismo que são contrários à nossa ética. Eu valido esta ação”, pode-se ler também.
Esta não é a primeira vez que a saga do mundialmente famoso mago Harry Potter atrai a ira de fanáticos religiosos. Por delírio de intolerantes, que acusam-na de suposto conteúdo oculto e satânico, a série de J. K. Rowling foi alvo de representantes de vários cultos. Nos Estados Unidos, por várias vezes tentou-se proibir Harry Potter. O debate ultrapassou as fronteiras americanas e o simpático mago teve-se que ver com os mais virulentos discursos de grupos evangélicos fundamentalistas de igrejas evangélicas, católicas, ortodoxas e anglicanas. Embora a oposição à série venha principalmente de cristãos, alguns países muçulmanos sentiram que os temas contidos na história conflitavam com a fé de Maomé. Em 2002, livros foram banidos de escolas nos Emirados Árabes Unidos.
J.K. Rowling negou várias vezes que queria atrair crianças para a bruxaria; em 1999, disse à CNN: “Eu não criei essa história para incentivar as crianças a praticar bruxaria.” Em 2000, ela, que nunca havia se pronunciado sobre sua religião, disse: “Sim, eu sou cristã, o que parece incomodar mais alguns religiosos do que se eu tivesse afirmado que Deus não existe”. A controvérsia, o fanatismo e a intolerância continuam, de modo que, se por um lado a autora vira e mexe é obrigada a se justificar; por outro, Fernando Báez, autor do vigoroso A Destruição universal da destruição dos livros, corre o risco de acabar com um livro obsoleto, isto, é claro, se não se dispuser a escrever mais alguns capítulos.  

quinta-feira, 11 de abril de 2019

O que é cultura?


Agnès Varda e Nana Caymmi, mulheres e artistas geniais, o que têm em comum? Pouco, é claro, considerando-se que desenvolveram suas obras em esferas diferentes das artes e a quilômetros de distância uma da outra. O fato é que ao longo da semana ambas foram notícia; ambas, ressalto, têm em comum algo que as iguala, são pilares de uma memória que desaparece sob nossos olhos.
Nana, em deliciosa entrevista dada a Folha, conta um pouco de suas aventuras, dispara sua espingarda de dois canos, acerta Gil, Caetano e Chico, chamando-os todos de “chupadores de pau de Lula” e, de quebra, acerta também Belo, o pagodeiro cujo nome é mesmo Pires Vieira. (O porquê de ele ter adotado a alcunha de “Belo” é algo que me atormenta de um jeito, meu Deus; o nome não se ajusta à figura...). Vá lá, de Belo, Nana Caymmi lamenta o fato de as netas ouvirem o tal cantor, lastimando nas entrelinhas uma cultura popular que desaparece, que se esvai, acantonada pela indústria, a cultura de massa que emburrece a massa, fazendo-a a cada dia mais bovina, gado que sequer passará nos projetos do futuro.
Pois é, estamos todos no caminhão desgovernado que desce a ladeira: eu, você, Lindo, quer dizer, Belo, Nana e o blogueiro Chico Barney, que alfinetou Nana, conclamando-a a respeitar o pagodeiro. Barney, o blogueiro, não contente em tratar Belo como um “grande vulto da música brasileira”, detentor de uma “obra poderosa”, comparou-o a Dorival Caymmi. O que dizer ao blogueiro? “Menos, rapaz, menos, para tudo há limites!”
Por outro lado, Nana ombreia Agnès porque – como disse - também é parte de uma memória que se acaba, uma cultura que não mais se encaixa no reducionismo do pensamento cultural contemporâneo, ambas são resquícios de uma cultura que justapõe a tensão entre fazer e ser feito, algo que compreende racionalismo e espontaneidade e de certo modo intervém positivamente na cognição do indivíduo.
Agnès Varda morreu na quinta-feira. Agnès Varda foi uma das pioneiras da revolução cinematográfica francesa dos anos de 1960, cineasta de Cléo de 5 à 7 e Sans toit ni loi. “Eu deveria parar de falar de mim mesma, e aqui estou eu, tenho que me preparar para me despedir", disse Agnès Varda, há um mês no Berlinale, ao anunciar sua aposentadoria artística. Hoje suas palavras ressoam como profecia.
Internacionalmente conhecida, Varda foi uma das raras mulheres cineastas da Nouvelle Vague e construiu uma obra original, pioneira, na fronteira entre o documentário e a ficção e que resultou em trabalhos como Cléo de 5 à 7 (1962), Sans toit ni loi (1985), Les Glaneurs et la Glaneuse (2000), Les Plages d’Agnès (2009) e Visages, villages (2017). Seu último trabalho foi o documentário Varda par Agnès, apresentado no último Festival de Berlin.
Mas quem se importa com Varda? Quem se importa se Nana Caymmi canta Tito Mardi e na sequência vai gravar Tom Jobim, quem se importa? Quem foi Tito Mardi? Quem foi Tom Jobim? A cultura não quer saber. Quem foi Agnès Varda? Quem viu alguma sequência de Sans toit ni loi, filme que deu o Leão de Veneza à cineasta, em 1985?
Varda, Mardi, Jobim e Nana? Quem foi essa troupe esquecida da memória? Pouco importa; o que importa (a notícia mais lida) é a festa da Anitta. Qual é a ideia de cultura? Nós trópicos, Eagleton, é isso: cultura é arrastar o traseiro do asfalto! Mas quem se importa?

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Só Cristo salva? Não, mas a Literatura sim!


O texto de hoje é curto, como é curto o tempo, a vida. Em busca do carro das ideias, corro os olhos pelas notícias diárias e, para manter alguma sanidade mental, decido não ler nada! Volto-me à literatura, consolo-me com Carpeaux, que há muito afirmou ser o poema ainda uma das melhores formas de avaliar a imbecilidade humana, profunda como o mar.
Contudo, leitor, se quiser mergulhar nos gouffres amers da mediocridade, leia, por exemplo, o portal trois étoiles do jornal a serviço do Brasil. Mas a culpa não é dele, outros também reproduzem as mesmas asneiras, haja vista a política ter gerado a maior parte dos disparates publicados quotidianamente. Sim, culpa dos políticos, cuja maioria destaca-se pela mediocridade, a imbecilidade e o idiotismo de seus pronunciamentos – e de suas próprias existências. Todos, sem exceção, encastelados nas torres do poder, ignoram os desejos da população. E não é que hoje Maia resolveu ser porta-bandeira?
Por outro lado, apresso-me entre os tempos longos e breves, uma vez que o presente não tem nenhum espaço, mas, ainda assim surpreendo-me com as novas estratégias do MEC, cuja segunda representante defende um ensino baseado na palavra de Deus. Iolene Lima, afirmou que o “primeiro matemático e geógrafo foi Deus" e que "as crianças começam a ter contato com essas matérias no primeiro livro da Bíblia, o Gênesis”. Ela também defendeu organizar o currículo escolar “a partir das escrituras”.  
E, como o governo acaba de criar uma comissão para o aparelhamento da prova do Enem e, ontem no Rio, o ministro-chefe da casa civil do governo pediu o fim da manipulação ideológica nas universidades, resolvi dar uns pitacos:
1. a Iolene Lima: redija problemas matemáticos aos alunos bem à la Gêneses, elabore-os tendo em mente as pragas que consumiram os egípcios, algo como: quantos gafanhotos de Maia seriam necessários para destruir a plantação do funcionário do Bolsonaro, considerando que a metragem determinada de sua plantação fora baseada em projetos criados a partir de hipóteses geradas por um sistema copia e cola?
Sugiro ainda que Iolene promova reuniões interministeriais e teste os alunos deste modo: considerando-se que uma goiabeira possui 130 galhos, cada galho 19 goiabas, quantas goiabas tem a goiabeira? Cristo, materializando-se sobre essa mesma goiabeira, quantas goiabas comeria a cada 10 minutos? Quanto tempo levaria ele para comer todas a goiabas levando-se em conta que cada fruta pesa em torno de 100 gramas?
2. ao eminente ministro, aconselho que leia Adorno; é claro, não peço que leia seus textos mais elaboradores e difíceis, não quero que tenha lá uma enxaqueca, um surto de realidade. Basta que leia “Palestra sobre lírica e sociedade”. Caso não o encontre nas bibliotecas do palácio, aí vai um lampejo da inteligência do filósofo: “Recomenda-se vigilância, sobretudo, perante o conceito de ideologia, hoje debulhado até o limite do suportável. Pois ideologia é inverdade, falsa consciência, mentira.”
Por fim, na teocracia tupiniquim, face à reiterada afirmação de que só Cristo salva, resolvi fazer dela a questão do dia, carregada de alguma dúvida: “Só Cristo salva?” Imediatamente vieram-me ao espírito Machado de Assis, Guimarães, Manuel Bandeira, Drummond, Proust, Voltaire... e toda uma miríade de poetas, escritores, anjos e demônios. Certo de que vivo um momento de mens sana in corpore sano, respondo: “Não, mas Literatura sim!”

segunda-feira, 1 de abril de 2019

IURD, o pastor e a cocaína da conversão


Em dias de desgoverno, em que escândalos pessoais e carnavalescos terminam na conta do Twitter do presidente da República, algo passou desapercebido de sua grande eminência: a carreirinha de pó oferecida por um pastor da IURD a um recém convertido.
O pastor Adriano Moraes, da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus - mesmo?) em intervenção dentro de um programa chamado “Balanço Geral”, entra no ar para promover um “ritual de cura”. Nele, exibe um usuário de droga; após a “cura”, no intuito de testá-lo - e exibir seus poderes sobrenaturais ao grande público -, prepara uma carreira de cocaína ao recém convertido e curado cidadão.
Antes de transcrever o diálogo entre o pastor e o viciado[1], as primeiras perguntas que me vieram ao espírito foram: “De onde veio a cocaína? O pastor diz durante o ritual que a cocaína lhe fora entrega para jogar fora; mas por teria ele tal incumbência? Quem lhe pediu para jogar fora? Onde o pastor descarta a cocaína? Nas próprias ventas?” Este é um daqueles pequenos rituais que a polícia, se vivêssemos em um Estado laico, certamente se ocuparia.
Por fim, permitam-me me ainda corrigir a Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Marx, em que este sintetiza a célebre analogia já utilizada por outros autores do século XVIII, qual seja: “A religião é o ópio do povo.”. Portanto, vá lá a errata: “A religião é a cocaína do povo.” Ô glória!
Transcrição:
Pastor: Qual é o seu nome?
Viciado: Anderson.
Pastor: Você mora onde?
Viciado: (fissurado) Casa Verde.
Pastor: Casa Verde?
Viciado: Sim senhor.
Pastor: Você sofre com o vício há quanto tempo?
Viciado: (fissuradíssimo, agitando as mãos) Quatro anos.
Pastor: E sua família, como é que tá?
Viciado: Tá destruída.
Pastor: Você tem vício do quê?
Viciado: Cocaína, maconha e lança... e bebida.
Pastor: O último dia que você cheirou foi quando?
Viciado: Anteontem.
Pastor: Anteontem?
Viciado: Anteontem.
Pastor: Você tá louco pra cheirar?
Viciado: (passa a mão pela cabeça, pressiona o nariz, fissurado) Bastante.
Pastor: (entendido) Mordendo de vontade cheirar?
Viciado: (agitado) Eu queria sair daqui correndo pra pegar um pó ali. Ahhhn!
Pastor: Venha aqui. Olha pra mim. Se hoje, você não sair daqui com nojo da cocaína, eu vou comer a Bíblia(!!!). Eu vou lhe ajudar a vencer. (Para a produção: “Cadê a cocaína que entregaram pra gente JOGAR FORA (enfatiza)?” Antes de jogar, a gente faz aqui um teste. (leva a cocaína ao nariz e cheira). Volta-se para o viciado e diz: Vê se é cocaína.
Viciado: (cheira a cocaína que o pastor encosta em seu nariz) É, é. (fissuradíssimo, louco)
Pastor: Quando você sente o cheiro da vontade?
Viciado: (morde os lábios, passa a mão pelo rosto) Muita vontade.
Pastor: Muita vontade? O que você já perdeu para a cocaína?
Viciado: Muito; dignidade, respeito.
Pastor: Uma noite assim, que você estava sem dinheiro, o que você fez para arrumar cocaína?
Viciado: Vendi meus cinco celulares, dei minha roupa todinha.
Pastor: Mas você deu um jeito para usar cocaína.
Viciado: (agitadíssimo) Dei.
Pastor: Está muito com vontade?
Viciado: (agitado)
Pastor: (coloca a cocaína de lado) Vou deixar aqui, pra ninguém mexer. Ninguém trocar.

VOIX OFF: Ouça agora o que acontece após o tratamento (que o público não vê, não sabe como funciona. Detalhe: pastor e viciado permanecem com as mesmas roupas, portanto, deduz-se que o tratamento seja instantâneo)

Pastor: Como está se sentindo?
Viciado: Bem, leve.
Pastor: (apanha a cocaína e mostra-a) Aqui a cocaína que entregaram pra mim (sic) fazer um teste, quer dizer, pra jogar, mas antes de jogar a gente faz o teste. (volta-se para o viciado) Sente o cheiro e me fala o que acontece.
Viciado: (antes mesmo de o pastor se aproximar dele com a cocaína, já simula ânsia de vômito, nojo da droga, leva uma das mãos à boca)
Pastor: O que acontece?
Viciado: (inaudível)... estômago (contorce-se diante do pastor, simula ânsia de vômito)
Pastor: Só de ver?
Viciado: Só de ver. Ai...
(palmas em off)
Pastor: Continua firme aqui, não para não.

Interrupção do vídeo disponível no Youtube. A foto em que o pastor faz a carreira de pó para o cidadão foi ao ar, segundo a reportagem.


Isto posto, leitor, como concluir, senão pedindo ao Altíssimo que mova céus e terra e que, um dia, charlatães e estelionatários religiosos sejam obrigados a pagar impostos pelo dinheiro que arrecadam de pessoas incautas e desavisadas? É certo que a fé será menor, bem menor, assim como os milagres.





Foto: Pastor da Igreja Universal do Reino de Deus põe cocaína em cena para curar usuário de drogas...


[1] https://youtu.be/k1qCIAw_3hA. Você também pode conferir reportagem em: https://www.bol.uol.com.br/entretenimento/2019/03/13/na-record-pastor-da-iurd-coloca-cocaina-em-ritual-de-cura-para-viciado.htm