Revista Philomatica

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A ética ainda é possível?


Em nossos dias, quando nos esforçamos para compreender o mundo, sim, este mundo que nos parece tão familiar, mas que nos surpreende a todo instante, se perguntarmos a alguém o que vem a ser ética é o mesmo que perguntarmos o que é o tempo. Santo Agostinho, no capítulo XI de confissões, esclarece as nossas dificuldades diante destes conceitos que nos perseguem ao longo de nossas vidas. Sobre o tempo, Santo Agostinho pergunta: “Que é, pois o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de constatação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.”
Com a ética, ocorre quase o mesmo. Todos sabemos o que é a ética, o que é ser ético, mas se nos propormos a explicá-la, é provável que nos atrapalhemos. E por quê? Porque assim como o tempo temos dificuldade em traduzir por palavras o seu conceito. À busca do carro das ideias, lancei a pergunta “O que é ética?” ao Google. A resposta foi o esfacelamento da ética; é claro que a definição dicionarizada dá margem a isso, pois lá no dicionário ética é um “conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade”, por isso as éticas moral, profissional, cristã e por aí vai...
De hábito, as relações entre ética e moral são ordinárias, comuns, mas nem por isso deixam de ser delicadas, isto porque a distinção entre esses dois termos é diferente, segundo os pensadores. No sentido “comum”, o termo ética é sinônimo de moralidade e refere-se a uma prática destinada a determinar o modo como se vive em um habitat em correspondência aos fins ou papéis da vida do ser humano.
No entanto, se o termo “ética” é sinônimo de moralidade no sentido “comum”, por que a palavra “moral” não é encontrada nem uma vez na Ética de Espinosa, por exemplo? A razão para isto é que a moralidade consiste em um conjunto de regras “relativas” estabelecidas ficciosamente como boas e más absolutas, enquanto a ética é precisamente a moralidade livre de suas crenças supersticiosas que absolutizam o relativo e suas condenações moralizadoras e que são usadas como arma contra os outros, consonante Constantin Brunner, filósofo herdeiro espiritual de Spinoza.
Abandonando a erudição, vamos a exemplos da falta de ética e moral nessa nossa sociedade líquida em que nada mais assegura uma conduta adequada do ponto de vista ético ou moral. Veja o que a polícia acaba de descobrir sobre o Dia do Fogo, dia em que fazendeiros, madeireiros, empresários e motoqueiros juntaram-se para pôr fogo na floresta Amazônica e, depois, foram protegidos por delegados, deputados e senadores. A polícia descobriu que os incêndios dos dias 10 e 11 de agosto foram orquestrados via grupos de Whatsapp e financiados por meio de uma vaquinha, com o objetivo de bancar os custos do combustível – mistura de óleo e gasolina – e dos motoqueiros, pagos para disseminar o fogo em trilhas perto das estradas.
Não é preciso dizer que depois do esforço do grupo, os focos de incêndio em torno da cidade de Novo Progresso (o novo em si revela-se bastante irônico), no Pará, aumentou em nada menos que 300%. Um dos suspeitos é Agamenon Menezes (Agamenon, o nome, é uma afronta aos gregos), senhor bastante ético da cidade e presidente do Sindicato dos Produtores Rurais da cidade (de um sindicalista não esperava algo diferente; desafio aqueles que creem em sindicalistas a me convencerem do contrário).
Há também um senhor de moral ilibada, Ricardo de Nadai, proprietário da loja Agropecuária do Sertão e organizador dos grupos no Whatsapp; claro, imaginando quanto faturaria com o desmatamento e a venda de apetrechos para a formação de pastos. A notícia se espalhou e o delegado da Polícia Civil, Vicente Gomes, da Superintendência da Polícia Civil de Tapajós, também ético, determinou que o delegado de Novo progresso não repassasse a informação à Polícia Federal.
O acordo entre fazendeiros e madeireiros foi revelado por Adécio Piran em 5 de agosto, no site paraense da Folha do Progresso; o rapaz, após a publicação, fugiu da cidade por ter sido ameaçado de morte pelos moralmente éticos fazendeiros e madeireiros de Novo progresso.
Mas não é só isso caro leitor: um dos representantes dos ruralistas no governo federal, o Sr. Luiz Antônio Nabhan rondou Novo Progresso e os policiais da cidade afirmam que os fazendeiros da região são bem relacionados com deputados e senadores do Pará e têm contatos com o alto escalão do governo federal. Moralmente éticos ou não, covardes quando são pegos com a boca na botija, esquivam-se: Agamenon atribuiu o aumento dos focos de incêndio ao período seco e aos indígenas; o presidente da República, por sua vez, à época negou a existência das queimadas.
Notou porque é difícil responder o que é ética, leitor? A ética ainda é possível em meio a tanta canalhice?



Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/a-etica-ainda-e-possivel/

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Réquiem a Harold Bloom


 

Ao Leitor:
Se você tem algum apreço pela literatura e por aqueles que dela se ocupam, continue a leitura. Caso contrário, deslize os dedos pela tela do seu smartphone ou clique um botão qualquer de seu teclado; abandone a leitura pois este não é assunto do seu interesse.

Assim como parece não ter sido do interesse do site de notícias que se anuncia como “a maior empresa brasileira de conteúdo”, ao menos no dia 14/10/2019, segunda-feira, dia em que Bloom partiu para os Campos Elíseos. Neste dia, o tal site ocupou das separações e das bundas das celebridades, conteúdo, parece-me, do interesse de um público que ignorou Bloom. Mas não culpemos o público; muitos professores universitários fizeram – e fazem – o mesmo.
Harold Bloom – se você é daqueles leitores teimosos e resolveu insistir no texto – morreu aos 89 anos e foi um titã da crítica literária. Cultíssimo, era uma enciclopédia ambulante da literatura inglesa; notório por se opor ao politicamente correto e por seus julgamentos tradicionais e fora de moda sobre poetas, romancistas e dramaturgos. Não era lá muito do gosto da patota multiculturalista, sobretudo aquela que flutua pelas periferias do texto.
Professor de longa data de Yale e da Universidade de Nova York era, em si, um verdadeiro oximoro, considerando que se tratava de um estudioso sério que escrevia para as massas. A Ansiedade da Influência e O Canône Ocidental são best-sellers inquestionáveis. O primeiro, publicado em 1973, é uma obra densa que expõe uma teoria fortemente dependente de Freud, sobre a luta psíquica que produz grandes poetas. Nos anos posteriores, contudo, Bloom foi um populista determinado, traduzindo preocupações de alto nível sobre educação literária para um público geral e mais abrangente, razão pela qual tornou-se um dos raros críticos a ter suas obras nas listas de best-sellers.
Tratando das inseguranças culturais, Bloom ofereceu respostas inequívocas a perguntas que considerava fundamentais para a literatura e o aprendizado dela. Quais escritores pertencem ao panteão literário e quais estão no meio da confusão? Devemos ler para satisfazer agendas sociais ou políticas, ou devemos ler para entender nosso eu essencial? À medida que novas escolas de crítica tomavam conta das universidades americanas na década de 1960, permitindo que os defensores do marxismo, desconstrucionismo, feminismo e multiculturalismo revisassem o currículo, Bloom emergiu como um defensor da tradição.
O Canône Ocidental (1994) tornou-se sua réplica para os teóricos multiculturalistas, que ele reuniu e ridicularizou como adeptos da “Escola de Ressentimento”. O livro destaca 26 escritores - quase todos homens brancos europeus mortos, incluindo Shakespeare, Dante, Borges e Beckett - cujas obras ele considerou leitura obrigatória, razão do chororô dos ressentidos. Sem papas na língua, extravagante em sua incorreção política, ele alienou movimentos inteiros com críticas irreverentes sobre o que chamou de mal-estar a varrer a academia. “Eu não sou”, proclamou maliciosamente em um artigo no Times londrino, “um defensor da ficção lésbica esquimó”.
Considerado o crítico mais audacioso de sua geração, em 1900 publicou O Livro de J, em que tratava a Bíblia como literatura e sustentava que o Antigo Testamento fora escrito por uma mulher. Não é nem preciso dizer que os estudiosos da Bíblia refutaram a sua tese; o livro, porém, tornou-se um best-seller. O mesmo aconteceu com Como ler um livro e por quê (2000), versão condensada do cânone de Bloom.
A celebridade de Bloom era devido tanto à sua personalidade quanto às suas ideias; foi uma personagem tão colorida quanto Falstaff, a grande criação cômica de Shakespeare. Bloom, com seus olhos melancólicos, podia ser cáustico, bombástico, atrevido e encantador. Aos 30 e poucos anos, sofreu uma depressão profunda e começou a ler Freud obsessivamente. Suas lutas psíquicas se arrastaram por seis anos, durante os quais ele começou a escrever um poema épico inspirado em um pesadelo. O poema se transformou em uma teoria da poesia, que veio à luz em A Ansiedade da Influência.
Sua teoria sustentava que os poetas são como filhos que se rebelam contra o pai - adaptação da teoria da raiva edipiana de Freud. Segundo Bloom, o desejo de ofuscar o trabalho brilhante do passado leva poetas “fortes” a usurpar seus antecessores e criar seus próprios trabalhos significativos. Para isso, baseou-se nos românticos para ilustrar a teoria de que compor um poema é um “processo feroz” de ultrapassagem e revisão das melhores obras poéticas do passado. O livro, ao mesmo tempo deslumbrante e confuso, empregava tantos termos obscuros que levou a escritora nova-iorquina Larissa MacFarquhar a afirmar “que parecia ter sido escrito por um cabalista Lewis Carroll”. O crítico britânico Terry Eagleton, contudo, chamou-o de “uma das teorias literárias mais ousadamente originais da década passada”.
Bloom era uma celebridade na academia, mas ficou cada vez mais atormentado. Ele havia tolerado os desconstrucionistas - o principal deles, o pensador francês Jacques Derrida - e, embora tenha contribuído com um ensaio para um livro com Derrida e outros defensores da desconstrução, negou que fosse um deles. À medida que outras novas escolas de crítica ganhavam popularidade - novos historicistas, socialistas, feministas e multiculturalistas -, Bloom as ridicularizou afirmando que faziam parte de “grupo de lemmings” que estavam destruindo os estudos literários com suas agendas não literárias – por isso foi visto como reacionário. Um de seus ex-alunos, o escritor Charles McGrath, observou que o velho professor começou a brincar dizendo que era marxista da “escola marxista Groucho ... cujo lema é Seja o que for, sou contra”. Ao escrever O Canône Ocidental afirmou que procurava salvar a educação literária tradicional dos bárbaros, momento em que considerava o que era ensinado nas academias como resultado de uma culpa social e cultural que assumira o controle.
Tratado como um dinossauro pela maioria de seus colegas, afirmava, disse não se importar, pois acreditava na genialidade literária e no “poder de alterar o mundo da imaginação de um poeta”, convencido de que a grande poesia mudou o mundo.



domingo, 13 de outubro de 2019

Irmã Dulce e os mitos fabricados


Um dos parâmetros da caridade de Irmã Dulce é a internet. Hoje, quando a vida é devassada e submetida aos comentários e julgamentos de uma tresloucada multidão de internautas, a maioria obtusa, manter certa unanimidade e uma biografia respeitável é algo no mínimo sagrado - e só por isso Irmã Dulce já pode ser canonizada.
Ontem, li que a quase santa baiana, lá do além, anda a fazer milagres. E que milagres são esses?, pergunta-me o leitor curioso. Ora, cristão crédulo, não lestes o anúncio de que o presidente não comparecerá à canonização de Dulce? Dulcinha, frágil, porém porreta, já fez valer o dito bíblico de que se resistir ao diabo, ele fugirá de ti, de vós, de nós. Ô Glória!
O fato é que em um país ético e moralmente pobre de homens e mulheres inspiradores, alguns gatos pingados que fazem o que se espera que todos façam, ganham relevância e voilà, tornam-se heróis pátrios ou recebem as graças de anjos e arcanjos, sobem aos céus e descem santos cá pra essa terra cheia de maldades, pecados e corrupção. Não por outra razão Deus está conosco até o pescoço e religiosos organizados em lobbys ditam as regras de uma República em que pastores travestidos de lobos devoradores não só roubam os sonhos do povo, mas também seu intelecto; dividindo assim, anjos e demônios, as almas a seu bel prazer.
Alguns demônios – sim, porque os demônios são vários, assim como os santos – não precisam ser tentados à exaustão, afinal, acreditam desde sempre que comandam todos os reinos da terra e são adorados por todos os seus súditos. Lendas à parte, o fato é que às vezes anjos são expulsos do paraíso e jogados terra abaixo. Rolados pelas encostas, aqui ganham legiões de adoradores, tripudiam dos honestos, tomam a vil forma humana, tornam-se vereadores, deputados, senadores e até mesmo presidentes. Há demônios desviantes que se autodenominam juízes, promotores e que em razão dos privilégios ostentados, perpetuam-se materializando seções do inferno sobre a terra, esquecendo-se das profundezas, das grutas e das masmorras que alimentaram o gótico romântico.
Mas não crucifiquemos Dulce, afinal, a baiana não é culpada da fragilidade das instituições e da dispersão dos devotos, ainda que estes, heréticos, lembrem-se da fé só em momentos limites da existência. O fato é que Dulce vem no rastro da Santa de Manto Azul, achada às margens do Paraíba, e que só no início da República, na tentativa de tranquilizar as almas, o poder central decide torná-la Rainha e Padroeira do país, concedendo-lhe diversos títulos eclesiásticos e civis.
Antes dela, porém, veio Tiradentes, cuja indumentária foi aos poucos transformada pelos interesses do poder a ponto de se assemelhar ao próprio Cristo, e, Aleijadinho, o fazedor de anjos barrocos, o nosso Quasímodo, personagem criada bem ao costume do Romantismo e que, segundo seu biógrafo, Rodrigo Ferreira Bretas, teria sofrido de uma doença desconhecida (algo não comprovado), “provavelmente sífilis ou lepra, que o fizera perder os dedos, os dentes, curvar o corpo, não conseguir andar a não ser de joelhos e mutilar-se, numa tentativa dramática de que a dor nos membros diminuísse” e que só não virou santo como Padim Ciço, porque Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, devia ser um mineiro de bem e também porque em Minas não havia cangaço, nem um Lampião, com o qual o escultor pudesse tramar os seus ardis.
O fato é que a Igreja, necessitada de santos, ainda que os devotos já os tenham em demasia, precisa atualizar seu repertório, afinal, que emoções Santos como Hipátia de Alexandria, Platão e Sócrates inspirariam no devoto do século XXI, época em que a miséria espiritual se mede pelo estômago e não pelo intelecto?
Por fim, Irmã Dulce, louvável Irmã Dulce, que se preocupava com os humildes e miseráveis vai tomar um banho de loja de historiadores, museólogos, professores e semiólogos (a maioria, ateísta!), ciosos em construir uma indumentária cuja simbologia responderá aos desejos e à ignorância do povo e, de quebra, atenderá, mais uma vez, aos interesses dos poderosos e da canalha política (o Congresso vai pagar a viagem de sete senadores a Roma, em mais uma gastança turística bancada pelo erário), que deveria – e não fez – o que fez Irmã Dulce.
Assim, leitor, reserve alguns caraminguás para comprar mais um oratório e mais uma santa. Esta agora, observe, deverá ter especificações precisas (se não as tiver, não hesite em abrir um chamado no Procom ou no Reclame Aqui). Em sua imagem canônica oficial, Irmã Dulce deve vir assim: vestida com seu tradicional hábito azul e branco (vestes de quem integra a Congregação de Nossa senhora da Conceição), trazer um terço de Maria, de quem era devota, e “carregar no colo uma criança negra, sem roupas, descalça e desnutrida que, de acordo com uma possível leitura iconográfica da peça, representa o menino Jesus”.
A embalagem e todo o mais fica por conta da imaginação e da fé do devoto. Ah, atente para o preço, que deve ser módico!
 

sábado, 12 de outubro de 2019

Lula, o papagaio holandês, Greta, Malala e os nossos maniqueísmos quotidianos


O homem, capaz de feitos impensáveis, transformou o mundo ao longo da história, mas, parece-me, na sua essência permanece o mesmo; não admite, por exemplo, que dentro do seu coração branco e tão puro reside o mal. A um homem multiforme, fragmentado, senhor de desejos múltiplos, bondade e alguma vilania, prefere o ser raso, plano e imutável. Para isso, em casos extremos, ao deparar-se com pares que se mostram como de fato são, a ciência criou o Transtorno Dissociativo de Identidade, na tentativa de explicar como um pode ser tantos. Nesses casos, é claro, mal se fala da dissimulação quotidiana.
Mas o leitor deve estar se perguntando o porquê de todo esse intróito, não é? Bem, no fundo, não queria perder o carro das ideias, que passa rápido, e, se eu deixar para a semana que vem o que se fala agora, é provável que Lula já esteja discursando da sacada de sua cobertura (não a do Triplex!), o passarinho tenha voado, Greta apareça serena e dócil e Malaia, bem, não consigo ver Malaia com aqueles olhos crispados de raiva que Greta carrega, prova de que também sou maniqueísta e vejo em tudo um embate entre o bem e o mal, ainda que procure me afastar o mais que posso de todos os antipodismos e de todas as paralelas (estas, só porque me lembrei de Belchior).
Esta foi mais uma daquelas semanas espetaculosas que certamente renderia algumas páginas a Guy Debord e, é claro, a imprensa tem se deliciado com imagens, caras, bocas, cartas etc etc. Na política, longe de tomar partidos, dou razão à minha avó, para quem todos são “farinha do mesmo saco”. Mas, convenhamos, há momentos em que a situação em si é irônica, prosaica, e a mim não cabe outra coisa além de rir de uns e de outros – e de mim! Divirto-me ao ver as pessoas comporem antinomias e depois pares, iguaizinhos aqueles vasos que uma tia sexagenária insiste em manter alinhados sobre o aparador da sala; ainda que um deles já exiba a borda toda trincada, resultado da pátina do tempo, para ela o vaso é perfeito, sem máculas.
Veja, caro leitor, no mundo do espetáculo Lula não exibe nódoas e, impoluto, revela uma dignidade e elevação de caráter incomparável. Lula é o bem, e as pessoas lutam pelo bem, razão, acredito, da criação do movimento Lula Livre e de celebridades e intelectuais exibirem o polegar e o indicador, refutando o canônico paz e amor dos meus tempos de adolescência.
Não, leitor obtuso, não seja maniqueísta, não estou a condená-lo; procuro ver com olhar de míope, apertando os olhos à procura das fissuras onde se escondem as supostas verdades, ainda que relativas, até mesmo porque o maniqueísmo mostra só a superfície e raras as vezes chega ao fruto dentro da casca. Assim se produzem os espetáculos; da coxia, pouco se sabe.
Querelas jurídicas à parte, o fato é que agora Lula se recusa a sair da prisão. Ao fazê-lo, torna-se um herói diverso daquele que estamos acostumados, qual seja, inventivo e destemido, pleno de ações heroicas, de modo que vejo Dumas obrigado a repensar boa parte de sua narrativa. Lula prefere o embate no STF, casa carregada de todas as suspeições, cujas figuras sombrias que nela habitam, atravessados o portão, a antessala do mal e o Aqueronte, não encontrariam dificuldade alguma em se acomodar em qualquer dos círculos do Inferno de Dante.
A ironia da situação é que na briga de gato e rato, Lula e a Lava Jato, haverá o esvaziamento do Lula Livre. Mas isso não é nada! O risível da situação é contrapor o embate de Lula ao caso do passarinho levado à prisão em Utrecht, na Holanda. O pássaro, como Lula, não sabia de nada! Foi enclausurado só porque, durante um assalto, pousava no ombro do criminoso que, segundo o próprio pássaro, nunca o vira antes e não sabia sequer seu nome, só estava ali por uma infelicidade, como poderia ter pousado em um arbusto qualquer. “Não analiso a espécie de árvore ou arbusto antes de pousar em seus galhos.”, piou o pássaro aos policiais. A polícia holandesa, incorruptível, que desconhece até mesmo a palavra propina, não de u mole e levou o pássaro em cana; não houve, dizem, piados que convencessem os policiais. Na delegacia, como acontece com Lula, o pássaro tem recebido a atenção da imprensa e tem sido muito bem tratado pelos policiais, de modo que não poderá, em um futuro próximo pleitear indenizações do Estado – espera-se.
Sobre Greta Thunberg pouco sei: de uma família de atores (li isto!), assumiu o protagonismo do espetáculo das últimas duas semanas. Ao falar na ONU, exibiu uns olhos crispados de ódio, rosto tenso e, da boca, as palavras de ordem saiam como tiros de metralhadora. É louvável a sua preocupação com o meio ambiente, mas afirmar que teve a infância roubada é algo que, penso, não deverá sustentar por muito tempo, já que a retórica se altera de acordo com os interesses; à medida em que for ampliando seus contatos na política é certo que afinará o seu discurso. 
Malala, esta sim, penso, teve uma infância roubada, obrigada a fugir dos preconceitos tribais e do fundamentalismo islâmico. Comparar as duas, tornou-se mais um ato maniqueísta nas redes sociais: a Greta, creditam certa maledicência, por acreditarem ser ela títere de poderes obscuros em luta por seus próprios interesses; já Malala, colocada frente à raiva discursiva de Greta, seu rancor e sua agressividade, é vista como alguém que apresenta um semblante nobre, sereno e humilde, mas que consegue se impor. Para os críticos, tudo isto faz parte de um maniqueísmo maior e injetado de preconceitos, pois Malala representaria o feminismo aceitável.
Isto posto, à espera de que Lula resolva sair da gaiola e os internautas maniqueístas decidam entre Greta (saudosa Garbo!) e Malala, aguardo o voo livre do pássaro, que também não sabia de nada!