Revista Philomatica

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Um viajante entre os nazistas


Na tentativa de fugir do carro das ideias, que, medíocre, hoje chegou quase vazio, volto-me aos livros. O viajante, de Ulrich Boschwitz ainda não ganhou uma tradução para o português, mas aí vai uma dica se você lê francês, inglês, italiano, espanhol, alemão... Bem, você não precisa ser poliglota ou erudito, um idioma estrangeiro resolve o problema, até mesmo porque a menção a esses idiomas ironicamente nos mostra o quanto somos um povo singular; traduzimos best sellers de Gary John Bishop (Pare com essa merda), de Mark Manson (A sutil arte de ligar o foda-se), de David Focker (Seja foda, seja inteligente) e ignoramos solenemente obras não ligadas à moda dos excrementos  ou da escatologia, a coprologia.
Falemos então de O viajante. Como fugir da Alemanha em 1938, quando você é judeu?  A resposta encontra-se nesta obra de Boschwitz, uma obra-prima escrita em 1939 por um autor de 23 anos.
A personagem se chama Otto Silbermann. Difícil ter esse nome na Alemanha, sobretudo após a célebre Noite dos Cristais (novembro de 1938) e passar despercebida. Tão logo negociara apressadamente a venda de sua casa, os nazistas vieram prendê-lo. Escapando por uma porta dos fundos, Silbermann inicia uma odisseia ferroviária. Berlim-Hamburgo-Dortmund-Aix-la-Chapelle-a fronteira belga-Berlim-Dresden-Berlim: o Reich, que fechou suas fronteiras para os judeus, tornara-se uma vasta e perigosa armadilha. A aranha nazista teceu sua teia silenciosa, fazendo de todos os caminhos um beco sem saída, e um pária como Silbermann sentia o laço apertando cada vez mais o seu pescoço, considerando-se que tudo o que tinha não ultrapassava os 40.000 marcos que carregava em uma toalha.
Novo judeu errante, ele passa por um café, depois um restaurante, um hotel, que ele logo deixa; enfim, um fantasma fugindo dos arianos, potenciais denunciantes, cujas vítimas deviam evitar. Tudo o que era simples, de repente tornou-se bastante complicado, a menor certeza vacila e a vida fácil já é impossível. Nos corredores dos trens, nos vagões, Silbermann conhece outras figuras, judeus mais pobres que ele, mas também em fuga, cidadãos sobre os quais ele não sabe o que pensar e que nada suspeitam do seu drama.
Era preciso dizer que ele não era judeu. Mas, a propósito, como é parecer judeu? “Parecer ansioso, alarmado.” Ora, ele estava cada vez mais ansioso. “Os judeus declaram guerra à Alemanha”, lê nas manchetes de jornais. “Que seja a guerra, eu estou bem ciente disso”, disse ele a si mesmo, “mas se fui eu quem a declarou, isto eu não sabia”.
Silbermann lutara na Primeira Guerra Mundial. “Mas nós éramos muitos em ambos os lados. Hoje, sou só eu e tenho que lutar a minha guerra sozinho.” Ele a luta, contudo, mas luta cheio de humor estridente – “ao menos eu descubro a Alemanha”, “eu deveria ter feito uma assinatura” - ou desespero – “o que quer que fazemos, sempre atraímos suspeitas”.  Há muitos sobressaltos, parênteses reconfortantes, mas, diante dos fracassos, ao sabor das traições de amigos que subitamente o ignoram, esse Ulisses confuso acaba perdendo a coragem e a humanidade. Um ódio estridente de seus irmãos acaba por invadi-lo. “Tudo isso é por causa deles. O que eu tenho em comum com eles?” Silbermann tenta o suicídio; a loucura o ameaça, a loucura de um animal que gira em sua gaiola. Um bolero trágico realizado com maestria.
 O viajante também poderia ser chamado de O fugitivo, Perseguido pela morte ou O inimigo invisível. Um inimigo que imperceptivelmente tira do homem tudo o que ele tem e tudo o que ele é. “O que resta de mim?”, ele se pergunta. “O que eles querem de mim?” O leitor sabe bem, e no entanto, se consome ao acompanhar a fuga de perder o fôlego empreendida por Silbermann, torcendo por ele.
Devemos esta obra-prima esquecida a um judeu de 23 anos, Ulrich Boschwitz, que a redigiu apressadamente em Paris, em um mês, depois de ter fugido da Alemanha após o evento da Noite dos Cristais. Essa emergência contamina o texto muito literário, tornando-o ao mesmo tempo engraçado e desesperado, e, paradoxalmente a pressa imprime à narrativa um tom de reportagem: temos a impressão de estar lá, um sentimento tão raro e tão precioso na literatura.
Precocidade surpreendente de um autor, capaz desde 1938 de restaurar, assim, do exterior, a decomposição progressiva de um indivíduo preso nas rodas dentadas de uma máquina infernal. O viajante apareceu nas principais editoras de Londres e Nova York em 1939, nunca em alemão ou francês, e só foi encontrado no final de 2015 nos arquivos de literatura exilada da Biblioteca Nacional de Frankfurt pelo editor Peter Graf, que revisou o manuscrito - o autor ainda queria corrigi-lo, mas não teve tempo. Partindo para Londres antes de 1940, Boschwitz teve o triste privilégio de ser internado como alemão pelos ingleses em um campo australiano. A história, que ainda não havia terminado, não abriria mão dessa esperança da literatura mundial. Quando ele acabou de ser libertado em 1942, contra a promessa de se envolver com os Aliados, seu navio inglês foi torpedeado por um submarino alemão perto dos Açores. Como seu herói, ele não escapou dos tentáculos do polvo nazista.
Por fim, aqui no torrão tupiniquim, é esperar passar a moda dos best sellers excrementológicos e torcer para que um editor se disponha à empreitada de publicá-lo.


* A partir da reportagem de François-Guillaume Lorrain, Le Point.
Ulrich Boschwitz. Le Voyageur. Ed Grasset. Trad de l'allemand par Daniel Mirsky. 340 p. 19 €.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Sobre sobremesas


O ano começa e, parece-me, as notícias ainda não se reciclaram ou não se deram conta de que o calendário mudou. A balela veiculada pelos emburrecedores (e embrutecedores) programas de TV e portais de notícia de que é preciso se vestir de verde amarelo rosa azul-anil para ter dias felizes no próximo ano, as notícias, impávidas, olharam indiferentes para o vozerio e continuaram a oferecer o café amargo do dia a dia que, embora delicioso, para os açucólatras lembra o lado cruel e amargo da vida.
As ameaças dos países centrais e periféricos estão na ordem do dia. Cada um acusa à sua maneira e também usa seu poderio militar e terrorista a seu modo – e que vença não o melhor, o mais ético, mas o mais forte. Afinal, o que dizer? Melhor é se conformar como o povo ovelha que, diante do aumento dos combustíveis, em um raro dia em que vi os noticiários na TV, dizia: “fazer o quê, né?, é sempre assim, não muda nada.”
Não à toa Leibniz dizia lá nos tempos de antanho que vivíamos no melhor dos mundos possíveis. Ainda que tenha sido ridicularizado por Voltaire, a máxima mostrou-se tão obstinada quanto a craca na crosta do navio, é preciso tempo e paciência para soltá-la.  Darwin, por sua vez, anteviu toda a bandalheira de hoje e de sempre com a sua teoria da evolução e a seleção natural. Não à toa, repito, o evolucionismo tornou-se a religião dos governos no século XIX e, hoje, vemos os governos e os poderosos solapando a massa sem dó nem piedade, e a massa, a massa, meu Deus, diz “fazer o quê?”. Achando-me revoltado, obtuso leitor? Você viu a notícia de que deputados e senadores, e toda a canalha que habita a ilha da fantasia Kubitschek, gastaram nada menos que R$ 3.100.000.000,00 (isso mesmo!, três bilhões e cem milhões de reais) em trajetos para Paris, Roma, Nova York e Las Vegas??? E o presidente interrompe sua pausa entre o Natal e o Réveillon para assinar um salário mínimo de R$ 1.039,00? E a massa que desconhece a ironia diz “fazer o quê?”
Isso só acontece, creio eu, em razão do esforço conjunto da mídia, de políticos, sociólogos, antropólogos, futurólogos, ideólogos, obtusólogos e todos os ólogos existentes que, consubstanciados com o poder, alienam e inculcam na massa que ela deve morrer de trabalhar porque trabalhar dignifica o homem. Não discordo, mas, pergunto-me ao ler tais notícias quais homens são ou serão dignificados.
Enquanto isso, parte da mídia alimenta o imaginário da massa com sobremesas. Machado de Assis há muito dizia que temos o hábito de comer a sobremesa antes do prato principal. Você viu que em algumas capitais, nas comemorações de Ano Novo, as escolas de samba já saíram à rua para dar, digamos, uma canjinha, para entreter a massa? Esta, dopada, drogada, surtada e descompassada não sei com o quê, ri às desbragadas, fica feliz e mostra o cartazinho às câmeras com os dizeres “mamãe, eu estou na Globo”. E assim la nave va.
Mas não só os opressores e poderosos que subjugam e embrutecem as massas não. A massa, quando pode, não perde a oportunidade de explorar seu igual. Anotem esta historieta que presenciei na feira sábado passado. Aproximei-me de um banca em que um agricultor expõe milho, limões e mandiocas que cultiva, na esperança de lucrar algum dinheiro para seu sustento. Como o milho não advém do agronegócio, as espigas são díspares, algumas plenas de grãos e maiores, outras, talvez em razão do solo ou das intempéries, não se mostram tão atrativas e suculentas. Por isso, o agricultor teve a ideia de separá-las e a elas atribuir preços diferentes. Nada que qualquer outro comerciante não faria.
Uma jovem, ao analisar o milho decide pela compra das melhores espigas. Ao ser informada do preço, reage com desdém e diz: “Mas isso é muito caro. Eu não quero pagar isso!” O agricultor sequer teve tempo para a resposta, pois o Iphone 11 da jovem começou a soar insistentemente. Resolvida a ligação que a interrompera, a jovem volta-se para o agricultor que, com suas mãos grossas pela lida do trabalho e o contato diário com a terra, descascava umas outras espigas e continua: “Já disse que não posso pagar isso!”, ao que o agricultor replica: “Moça, mas essas espigas foram selecionadas, por isso o preço é diferente das outras.” A jovem, por sua vez, insiste: “Veja, até mesmo as outras acho caras. Vou explicar: eu tenho calopsita!”
O agricultor: “Eu sei, mas é o melhor preço que posso fazer. Se você procurar pela feira vai ver que o meu preço não é maior que o dos outros que vendem milho.” A jovem: “Parece que o senhor não entendeu. Eu tenho calopsita. Não posso pagar esse preço. O senhor vai ter que fazer um preço diferenciado pra mim. Eu tenho calopsita!”
Irritado, deixei a banca, pensando na facilidade em que as pessoas transferem suas responsabilidades aos outros. A calopsita, assim como as farras em Las Vegas e a escola de samba animando a massa, tudo se insere na ordem das sobremesas. A calopsita, a jovem decidiu por vontade própria comprá-la, porém, na hora de pagar pela alimentação do pássaro, decidiu transferir o ônus para o pequeno agricultor que conta os poucos caraminguás que junta com a venda do milho para sobreviver; a canalha política, torra o erário sem qualquer medida abusando da sobremesa, enquanto ao pobre sequer o prato principal lhe é permitido colocar à mesa e, por fim, para esse pobre, oferecem a ele o samba como sobremesa, afinal, não é de hoje que o mundo gira sobre a roda do panem et circenses.

Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/sobre-sobremesas-o-ano-comeca-e-parece-me-as-noticias-ainda-nao-se-reciclaram-ou-nao-se-deram-conta-de-que-o-calendario-mudou/

Textos que ninguém lê


A semana revelou mais um pouco da perversidade humana. O revelar-se recai em pura redundância, uma vez que até o mais obtuso dos humanos conhece a si próprio e aqueles que o rodeiam, portanto, sabe de que barro é feito e não ignora que em meio algumas pitadas de ética, bondade e retidão, a grosso modo, o que dá consistência à matéria são ingredientes à disposição em qualquer prateleira da esquina: hipocrisia, vilania, ganância, violência, covardia, estupidez e muito mais. A diferença entre esses itens e qualquer outro produto é a disponibilidade do cidadão em prová-los, principalmente porque por eles não se paga.
Por isso, é só por isso, covardes, violentos e gananciosos são os 41 homens que foram presos por patrocinarem rinhas entre cães em Mairiporã. Dentre eles, destacam-se um veterinário, um médico e um policial. No frigir dos ovos, a balança da justiça pendeu para a injustiça, que aos olhos da lei deve ser perpetrada sempre. Dos 41 espúrios, só um ainda continuava preso - e duvido que continue. O que esperar da humanidade em tempos em que todos se voltam para o nascimento do Cristo e, hipocritamente, pregam a bondade, a nobreza e a retidão de espíritos?
A perversidade dos homens em seu quotidiano ressoa na literatura. Machado de Assis, por exemplo, demonstrou genialidade incomparável ao tratar da essência do espírito humano sob o crivo da ironia. Shakespeare fez das intrigas palacianas o fermento para obras monumentais. Outros, mais contemporâneos, buscam na curiosidade do leitor pelo desconhecido, sua intemperança, seu desespero e suas atribulações o mote de suas obras e com isso se dão muito bem. Dan Brown e Paulo Coelho estão aí a faturar milhões de caraminguás e a encher suas burras!
Mas nem todo mundo lê. É claro, não devemos culpar o leitor, jamais, agindo como agem as facções políticas de nossos dias, que preferem a animosidade ao entendimento. Mas o fato é que não raro o escritor escreve para um leitor ideal, conjecturando que um dia será lido, por isso a premissa de que todo mundo que escreve, escreve para ser lido.
As razões de textos não serem lidos têm suas variantes e, às vezes, isso parte de uma autocrítica. Kurt Wolff em Memórias de um editor conta o périplo de Kafka que, antes de morrer, recomendou a seu amigo Max Bord que destruísse o que escrevera, pois o considerava de baixa qualidade. Felizmente, Max Brod o desobedeceu. Há casos, como de Emily Dickinson, que, reclusa, escrevia em cadernos e cuja obra só veio à luz por causa de amigos.
Dito isso, a caça aos leitores depende de marketing – e Paulo Coelho está aí como prova de que não estou mentindo. Leandro Karnal, Mário Cortella e Mark Manson com seu A sutil arte de ligar o foda-se, entre tantos outros, também estão aí para trazer respostas rápidas a problemas incômodos.
Não vou entrar na questão da literatura de massa, a despeito de as subcelebridades em suas redes sociais recomendarem o foda-se; penso em Kafka, não porque eu seja um leitor melhor que os outros, mas porque procuro algo que me fale ao espírito e não somente às partes baixas – sejam elas intelectuais ou físicas. No mais, reflito no porquê de ninguém lerem meus textos e eu insistir em escrevê-los a mim mesmo: li que textos na internet devem ser curtos, cheios de espaços, fotos, insistir nas palavras-chave que os sistemas lembrem quotidianamente e, o mais importante, devem ser curtos, bem curtos, sempre curtos. Curtíssimos.
Portanto, já passei da medida. As intersecções entre a vilania do homem, sua representação na ficção e o fato de ninguém querer ler textos que a elas se referem, se não ficou claro, definitivamente não leia Lukács ou Auerbach, mas veja TV ou leia qualquer livro que traga a palavra foda-se ou merda na capa, e isso por três razões: subcelebridades como Marília Mendonça e Juliana Paes os recomendam, editores dizem que são irreverentes e, o mais importante, a vida sob a máscara da ignorância é muito mais bela.
Portanto, se chegou até aqui leitor, considere-se “o cara”, pois terá sido um dos poucos ou quem sabe o único a ler essas garatujas. Sendo assim, recomendo A morte de Ivan Ilitch, de Tólstoi, ou Almas mortas, de Gógol.



A ressurreição e morte de Eva Todor


Em busca do carro das ideias, deparei-me, uma vez mais, com a obtusidade que permeia as redes sociais. Ontem, muitos lamentavam a morte da atriz Eva Todor. Eva Todor morreu?, perguntavam os internautas entre boquiabertos e surpresos. Sim, uma grande atriz, mas viveu bem, faleceu aos 98 anos, constata um senhora. Outro, maldiz 2019 por levar mais um representante das nossas artes, estabelecendo comparações com a mediocridade, leme das celebridades de nossos dias. Há ainda aqueles que relembram personagens interpretadas pela atriz e, saudosos, choram a sua perda.
Ocorre que Eva Todor partiu em 10/12/2017. As redes sociais têm dessas coisas. Ali, sem qualquer risco que traz as generalizações, ninguém lê. Quando lê, lê as manchetes, pouco se importando se a notícia é de hoje, ontem ou será a de amanhã. O que interessa é repassar o que tomam por uma notícia quente e fresquinha, com todo o oximoro de direito. Não é preciso dizer que o grosso dessa lama toda são as chamadas fake news, anglicismo desnecessário diante das nossas notícias falsas, calúnias e fofocas. Também não é preciso dizer que no caso das notícias falsas, elas só são propaladas porque interessam às forças envolvidas no exercício da defesa de suas cabalas. Sabem como é, o ditado popular é impiedoso, nada resiste ao “onde há fumaça há fogo”, e, nesse ponto, o adágio assemelha-se às notícias divulgadas na internet, razão pela qual a expressão “cair na rede” equivale à marca de ferro quente no dorso do gado ovelha.
Diante do nada a partir do qual se produziram as notícias da semana, sobraram-me me os livros. Corro os olhos pela estante e Aqueles que queimam livros, de George Steiner, salta-me aos olhos. Cético e pessimista, Steiner é um daqueles humanistas que questionam a contradição entre a riqueza da cultura e do pensamento ocidental e sua capacidade de produzir genocídios que assustariam até mesmo o mais ingênuo dos neandertais. Não por outra razão, diante da incredulidade, Steiner começa seu livro com a afirmação: “Aqueles que queimam livros, que banem e matam os poetas, sabem o que fazem. O poder indeterminado dos livros é incalculável.”
Contudo, ao ressaltar o caráter dialético do livro, Steiner traz um sopro otimista ao afirmar que “precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores”, cabe aos lúcidos a tarefa do convencimento, já que nem a hermenêutica e nem a psicologia podem prever os estragos que uma obra mal lida pode causar. Não por outra razão muito da barbárie conhecida foi gerada no seio da alta cultura por homens letrados e intelectuais que sistematizaram o horror e banalizaram a virtude, razão pela qual o autor sustenta que “na experiência humana, não há fenomenologia mais complexa do que aquela dos encontros entre o texto e percepção, ou, como observa Dante, entre as formas da linguagem que ultrapassam nosso entendimento e os níveis de compreensão em relação aos quais nossa linguagem é insuficiente”.
Por isso, se o livro e a literatura, por mais singelos que sejam, são a chama ínfima que ilumina o espírito perdido na escuridão da ignorância e do fanatismo, também pode ser a flâmula que alimenta o obscurantismo, tal a hibridez das ideias que o objeto livro pode abrigar. Mas nem por isso devemos nos desanimar, sobretudo diante do muito que tem sido produzido em nossos dias - falo das obras efêmeras e oportunistas que, segundo Steiner, são de apelo fácil à violência, à intolerância, à agressão social e política -, pois, acreditem, o autor, otimista, afirma que os “livros são a chave de acesso para nos tornamos melhores”; diante de tal afirmativa, é claro, não se pode esquecer o leitor, este ser repleto de ilusões e desilusões, esperanças, desesperanças e expectativas. Se a obra pode suscitar o mal, também pode ser paliativo ao espírito e afugentar o mal: quem não se lembra de Primo Levi, que recitava Dante a seu amigo Pikolo, em Auschwitz?
O poder da leitura é inquestionável e os livros com suas alegorias e metáforas desconstroem clichês e preconceitos, provocam discussões e nos elevam o espírito, até mesmo diante do real que, ficcionalizado, ressuscitou Eva Todor, só para matá-la uma vez mais e entristecer internautas incautos. Que venha 2021, quando então poderemos prantear o novo luto de Eva Todor. E há incrédulos que não creem na ressurreição do Cristo!


Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/a-ressurreicao-e-morte-de-eva-todor/

sábado, 21 de dezembro de 2019

Como manter sua sanidade mental

Em dias em que tudo se liquefaz, principalmente as amizades, é sempre bom despir-se de preconceitos. Talvez seja esse o primeiro ponto para que tenhamos uma mente saudável. Por isso, lance mão daquele esquecido livro de autoajuda e folhei algumas páginas à procura de uma ideia qualquer que lhe possa indicar um caminho. É provável que entre uma centena de páginas, você encontre duas ou três que de fato mereçam ser lidas e guardadas no espírito, e só por isso vale a pena.
Não se esqueça de que a leitura é sempre seletiva. Quem não se lembra do homem da tesoura, o guarda-florestal e leitor contumaz mencionado por Antoine Compagnon? Pois bem, nosso leitor afirmava que tinha uma biblioteca pessoal que não servia como exemplo a qualquer outro leitor; nela, dizia, havia livros de todos os tipos, mas, se um leitor comum decidisse abri-los levaria um tremendo susto, pois a maioria deles não continha mais que duas ou três páginas; todos incompletos, haja vista nosso leitor ler com a tesoura nas mãos e cortar tudo o que o desagradava. De Baudelaire dizia ter conservado apenas duzentos versos; de Proust, apenas o relato de um jantar em casa da duquesa de Guermantes.
Na vida, caso queiramos manter a sanidade mental, não devemos nos deixar enveredar pelos redemoinhos criados por aqueles que estão à nossa volta, devemos sim é andar com a tesoura nas mãos. Ao selecionarmos colegas e amizades, resultado de nossas tesouradas, não fazemos nada além daquilo que pedimos ao Altíssimo em nossas orações, qual seja, que nos livre de todo o mal, amém. Não devemos nos sentir arrependidos ou ter remorsos de nos afastar deste ou daquele, até mesmo porque quotidianamente encontramo-nos com os bons e os maus. Há, por exemplo, os vampiros de energia, pessoas que se aproximam de nós com um único objetivo: reclamar da vida e nos colocar para baixo. Reflita: quantos à sua volta são assim? O que fazer? Tesoura neles!
Há também aqueles que são como Monsieur Orgon, personagem de Tartufo, de Molière. Orgon entrega-se instintivamente a algo único que lhe preenche o espírito: tiranizar e atormentar o próximo. É célebre a frase da personagem faire enrager le monde est ma plus grande joie (enfurecer o mundo é minha maior alegria), que dá vazão à sua necessidade instintiva, tornando-o um sádico tirano familiar. A vida não é fácil e, como dizia Sartre, o inferno são os outros, por isso, respire fundo e siga alguns passitos:
1. Medite. Meditar tem lá suas especificidades, para cada um é uma coisa, mas, no frigir dos ovos, nada mais é que desanuviar-se, tranquilizar-se. Ouça uma música relaxante, inspire, expire, pense na sua respiração, procure um lugar calmo, aproxime-se da natureza, escute o som dos pássaros, o vento a tocar nas folhas, ouça o barulho da água. Discipline-se sobretudo, pois isto requer treino uma vez que nos tornamos seres autômatos, guiados pela produção.
2. Tenha um animal. Deixe as frescuras e a viadagem de lado, aquilo de ah! cachorro e gato soltam pelos; cachorro cheira; é preciso limpar cocô; tem que sair para caminhar com o cachorro; e quando eu viajar?, sim esses amigos vão tornar-se bastante dependentes de você, mas o retorno para a sua saúde mental não há Credicard que pague. Eles são seus AMIGOS e amizades precisam ser cultivadas - estão aí a raposa e o Pequeno Príncipe que não me deixam mentir.
3. Reavalie seu estilo de vida. Não podemos nunca transformar nossa mente em uma fortaleza. As paredes são sólidas caso acreditemos que uma situação x será determinante para o futuro de nossa existência. A vida muda, as coisas mudam, as pessoas mudam. Nada é perene. Por isso, seu grande problema de hoje, amanhã, você o verá como algo desprezível e que não valeu a pena toda a energia e o esforço nele consumido. Durma bem. Dormir ajuda a desligar os botões do estresse, da vida profissional, dos vampiros de energia e dos sádicos. 
4. Procure válvulas de escape. Caminhe, cante, cozinhe, movimente-se, enamore-se! Busque a natureza. Leia! Ocupe sua mente. Prefira o simples. Aprecie o céu e as estrelas. Fuja das muvucas, por mais que você seja curioso. A confusão não é contigo? Seja indiferente, ignore, não opine. É com você? Pondere, reflita; às vezes é preciso dar o braço a torcer, faça seu opositor achar que está no controle e recupere sua paz e sua calma.
5. Respeite seus instintos. Relaxe. Ame-se e viva bem! Mesmo que queiramos, não vamos consertar o mundo, por isso, cuide de seu quadrado e seja feliz!



sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Igualdade entre os homens? Só na criaturalidade ou na morte.


Há um aforismo popular a dizer que devemos andar pra frente e esquecer o passado. Também dizem que a voz do povo é a voz de Deus, por isso acredito nos adágios e ditos populares, mas, como trago na alma um ceticismo ferrenho que não me larga nem quando acontece aquela explosão no espaço que vai da fruta ao caroço, vivo desconfiado, razão pela qual bato o pé e insisto nas releituras.
É certo que em meio à descrença não deixo de me lembrar de Santo Agostinho e sua reflexão sobre o tempo, quando o religioso comenta sobre os conceitos de passado, presente e futuro. Budistas também preferem o caminho do meio, não ficam remoendo o passado – e ali vivendo –, penso que nem mesmo planejam um futuro incerto. Já os cristãos, estes se culpam pelo passado, penitenciam-se, não se perdoam.
O fato é que o passado nos deixa fortes quando o canibalizamos, e, se na vida o tempo escorre pelos vãos dos dedos sem que possamos recuperá-lo, nos livros conseguimos preservá-lo e dele tirar lições – e quem sabe algum rumo para continuar nossa aventura até que nos tornemos todos iguais. Sim, pois só a morte traz a igualdade entre os homens, o resto é retórica, filosofia, sofismas – balela.
E como falei da releitura como veículo para voltar ao passado, passo a comentar um texto de Auerbach, em que o autor chama a atenção para o conceito de criaturalidade, isto é, o sofrimento a que o homem é submetido como criatura mortal, algo comum e que se aplica a todos nós mortais, que nela nos irmanamos.
Basta olhar para o passado e lá encontramos traços da criaturalidade desde os primórdios do homem. Tome-se por exemplo a antropologia cristã, que ressalta a condição criatural do homem, sujeito a sofrimentos e à mortalidade. A Paixão de Cristo surge como o mais insigne exemplo desse modo de pensar, isto é, para se chegar à salvação é preciso sofrer – e muito! E olha que nem falo de toda a santaiada criada pela Igreja...
Nessa lógica, acontece uma relativização e uma desvalorização da vida terrena; não à toa, no século XVIII, os Iluministas clamaram pela felicidade agora, já! O paraíso? Deixa pra lá, depois a gente vê. Segundo Auerbach, “nos primeiros séculos da Idade Média ainda estava muito vivo o conceito segundo o qual a sociedade terrena tinha valor e metas”. Dante surge como “exemplo de um homem para quem o planejamento secular e o esforço político por parte dos indivíduos e da sociedade humana em geral eram esteticamente importantes, altamente significativos e decisivos para a salvação eterna”.
Velhos tempos. O que há de diferente entre este homem do antigo humanismo e o homem atual, que ejacula alteridade quotidianamente, clama por igualdade, mas é indiferente à exploração e à miséria? Nesses nossos tempos cruelmente particularistas e regidos pelos interesses, em que os novos acontecimentos são incompatíveis com as ideias genuinamente humanistas, em que fingimos ser, guiando-nos pelas aparências, já não conseguimos mais interpretar e ordenar esteticamente as novas formas políticas, econômicas e artísticas. A arte tornou-se um amontoado de fragmentos que responde às individualidades, em detrimento do coletivo. Este, determinado pelo consumo, deixa-se alienar e trata a cultura de massa como arte genuína. E paro por aqui, porque senão...
Vivemos um tempo de cansaço, esterilidade e aparências. Somos egoístas, venais, mas sequer admitimos isso, porque antes de tudo somos vis e hipócritas! E, como o tempo é curto, volto à minha releitura, mas não sem antes deixar um pequeno entrecho de Auerbach, que ecoa lá do passado: “O que há de peculiar nesta imagem radicalmente criatural do homem, o que está em nítido contraste com as características do antigo humanismo, reside no fato de que, por mais respeito que demonstre diante da roupagem terrena e social que o homem veste, perde todo o respeito diante dele mesmo, tão logo a despe; por baixo desta vestimenta não há nada além da carne, que será ofendida pela idade e pela doença, que será destruída pela morte e pelo apodrecimento.”
Por isso, no sofrimento e na morte, enfim, somos iguais, por mais que na vida tenhamos sido Gugu.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Homens: hipocrisia, barbárie e literatura


Colocando os pingos nos is: cansado da hipocrisia, da lisonja e do politicamente correto que, como qualquer um, trago no espírito como arranhões, ao referir-me a homem falo dos dois gêneros tradicionais e dos outros cinquenta e tantos que a diversidade nos trouxe com a flâmula da liberdade desses nossos tempos mais livres, porém, não menos ignorantes, bárbaros e bestiais.
Hoje, ao ler uma daquelas reportagens absolutamente dispensáveis, que jornais e sites de notícias produzem como uma mancha de tinta, só para não manter o espaço em branco – talvez seja o caso desta crônica –, consegui ainda me surpreender com a ética, o respeito, a humanidade, a compreensão, a alteridade, a bondade, enfim, a cristandade dos internautas em seus comentários. Ali, tem-se a impressão de que vivemos no melhor dos mundos possíveis e, arrisco afirmar, é provável que já estejamos vivendo a Era de Aquarius tal a generosidade, a gentileza e a empatia que brotam do espírito dos homens na convivência do dia a dia; tudo é tão intenso, tão eufórico, que acredito ter havido uma total inversão da ordem: estamos nos céus e não nos demos conta – algo difuso tem vedado nossos olhos –, a harmonia é tanta, o amor está no ar, tudo é tão bom que o inferno evaporou nos ares ou adentrou às páginas dos livros de literatura, este espaço inominável em que perversos e libertinos insistem em invencionar e garafunhar sobre páginas em brancos a vida obscura e devassa de personagens que a ficção tem produzido sem qualquer verossimilhança com este nosso mundo real, caridoso e magnânimo, uma prova de que também o realismo e a mimeses já não têm razão de ser, acabaram-se, por mais que tentemos endeusar Aristóteles ou reler Auerbach.
O século XXI é a glória, sobretudo se comparado ao anterior, que hoje jaz silencioso entre as páginas de livros cujas bordas e miolos acumulam o pó que também cobriu a desfaçatez, a corrupção e o mal caráter do homem, fazendo deste um ser sublime e etéreo que desliza pelos caminhos do céu terreno.  
Vivemos um pós-realismo metafísico em que nossas vestes, alvas, sequer imaginam a vida pregressa de aventuras que os livros escondem – e que não nos atrevemos a curiosar, até mesmo porque já não temos mais paciência para a leitura, afinal, para que ler 200, 300, 400 páginas se temos o Twitter, o Facebook, áudios e as imagens no Instagram? Para que precisamos aprender a escrever se até recentemente insistiam em nos dizer que devíamos nos arvorar contra tudo e contra todos que ousassem nos corrigir ou nos ensinar? Felizmente em nossos dias já não há mais preconceito linguístico, e o mais genial, já não há mais qualquer preconceito, já não há mais nada!, pois somos lindos, felizes, humanistas, somos da Era de Aquarius! Tudo isso está lá, nos comentários das redes sociais e das reportagens publicadas em sites de notícia. É como se lêssemos um diário celestial. Atingimos a perfeição! Quem imaginaria? Rousseau? Este se foi há muito tempo...
Alguém arriscaria a dizer o contrário? Ninguém, claro! Só se quisesse passar uma temporada na Casa Verde... bem, deixe-me explicar dado que já não lemos, a Casa Verde, conhecem? Sim, aquela, aquela lá de Itaguaí, a do Alienista...
Quem arriscaria a dizer que no século passado ainda éramos cruéis, hipócritas e corruptíveis? Quem ousaria afirmar que usamos muito de nossa criatividade para criar um mundo de horrores, duas guerras mundiais, governos fascistas e totalitários, e proibíamos as pessoas de ir e vir? E tudo sob a desculpa de espalhar a igualdade? Quem arriscaria uma temporada na Casa Verde, sob o risco de imitar Lúcifer e ser expulso desse paraíso em que vivemos hoje? Só para ter o gostinho de afirmar que criamos técnicas de extermínio em massa, câmaras de gás, campos de concentração, muros, cercas eletrificadas, sequestros, terrorismo, o maniqueísmo da direita-esquerda, e que implantamos tudo isso em nome dos direitos do homem, da igualdade, da justiça e da liberdade? Eu não!
Orgulhosos, criamos as revoluções culturais, a libertação dos povos, as teologias da libertação... criamos tudo isso e muito mais! E tudo, repito, pensando nessa nossa Era de Aquarius que ora vivemos e desfrutamos sem sequer nos darmos conta! Os livros, ah! os livros... para que lê-los? A ignorância e a hipocrisia são tão pacíficas, belas e aprazíveis... Para que fuçar em Tolstói, Dostoievski, Bradbury, George Orwell, Machado, Voltaire, Bielinski, Herzen, Turgueniev e tantos outros? Por que acreditar nesses homens espúrios que denunciavam a falaciosa autonomia do homem e que, a exemplo de Franz Werfel, afirmava que tudo terminaria em uma “confusão fatal da liberdade com a anarquia moral” – e acrescento, ética!? Pra quê? Pra vermos a mentira e nos cegarmos com a verdade, sermos expulsos desse nosso mundo céu paradisíaco? Afinal, quem se atreveria a dizer que não vivemos no melhor dos mundos possíveis? Está tudo tão perfeito... ontem mesmo, leitor, tivemos a prova disso: quem não soube do ministro do STF homenageado pela câmara dos deputados por serviços prestados a esse mundo que não é o nosso, mas deles?


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A banalidade do mal e a causa animal


A história vem de longa data. Quem já não ouviu falar de Caim, o lavrador que, ciumento, deu cabo em Abel? Por estas horas, a serpente já havia enrolado Eva na conversa e Adão também já havia visto a boa vida que tinha no paraíso escorrer-lhe pelos dedos. É provável que tenha se irritado com Eva e até mesmo a odiado. O ódio, convenhamos, tem lá a sua pitada de maldade, assim como o ciúme, razão pela qual Caim fez o que fez com Abel, o pastor. Disso, deduz-se que o tropos do maior dos livros é um eterno embate entre o bem e o mal, maniqueísmo que persiste até nossos dias e nos faz a ser o que somos.
Nos anos de 1960, quando o Mossad, em uma operação espetacular, raptou Adolf Eichmann, criminoso nazista e um dos principais idealizadores do Holocausto, na Argentina, país também comandado por nazistas, a filósofa Hannah Arendt, a serviço do jornal The New Yorker, acompanhou o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Findo o julgamento, Arendt escreve Eichmann em Jerusalém, obra em que aprofunda o conceito de “banalidade do mal” por ela criado, ao defender que o resultado da massificação das sociedades criou uma multidão incapaz de qualquer juízo crítico, qual seja, inábil para julgamentos morais, aceitando ordens sem ao menos questioná-las.
Eichmann, membro da elite nazista e um dos idealizadores da solução final, portanto, visto como monstro em potencial, no julgamento revelou-se apenas um funcionário zeloso que fora incapaz de descumprir as ordens que recebera. Com isso, o mal torna-se algo banal. Bastante criticada, sobretudo porque o livro traz exemplos de judeus e instituições judaicas que, submetidas aos nazistas, cumpriram suas diretivas sem questionamentos, Arendt reflete principalmente sobre a violência impetrada por governos totalitários, cujo domínio revela-se mais opressor que a escravidão. Nas tiranias, sob a batuta das ideologias que as sustentam, seres humanos são capazes de realizar ações impensáveis, como a destruição e a morte, sem, contudo, serem motivados por qualquer malignidade.
Ao se deparar com o depoimento de Eichmann, que relatava suas atividades como carrasco nazista sem qualquer hesitação ou perplexidade, usando clichês e palavras de ordem, justificando seu comportamento sob a moral da obrigação que a função lhe exigia, e mais, argumentando que em nenhum momento poderia ser tomado por um criminoso, pois apenas cumpria o seu dever, além de ser um bom pai de família e não possuir nenhum ódio ao povo judeu – mas que, no entanto, viabilizou a morte de milhões de pessoas –, Arendt pergunta: “o que faz um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?”
Deixo a questão filosófica por aqui, porém, transfiro a reflexão para a causa animal. Se em nossas sociedades massificadas, em que a humanidade torna-se algo raro e o que mais importa são as organizações econômicas e o lucro que elas geram, enfim, universo em que ninguém se importa se nos sentimos abandonados, solitários, submissos e alienados, imaginem o que não acontece com vidas que transitam embaixo dos nossos narizes e não têm voz, voz para gritar quando o desespero, o perigo, a fome e a morte batem à porta?
As pessoas, robotizadas, não veem cachorros, gatos e outros animais perambulando esquálidos pelas ruas. Essa falta de sensibilidade, penso, revela um pouco do mal que paira sobre e em nossos espíritos, mas, não bastasse isso, alguns se comprazem em torturá-los, agredi-los, matá-los. Às vezes, o que o animal procura e quer é apenas um pouco d’água, algo para comer. E o que recebe? Pauladas, chutes, água fervente. Se estiverem pensando que estas ações são praticadas por pessoas moralmente descompensadas, enganam-se! São senhoras e senhores, pais e mães, avôs e avós, muitos dos quais, aos domingos, vão à missa ou ao culto e lá imploram pela bondade divina, esquecendo-se do mal que cometeram.
O leitor deve estar pensando porque falo disso agora, não é mesmo? Só porque depois de um tempo sem acessar as redes sociais, especialmente o facebook, onde participo de alguns grupos de proteção animal, surpreendi-me, mais uma vez, com a quantidade de denúncias e pedidos de ajuda para animais vítimas de maus-tratos. Muitas vezes, a ajuda resume-se a uma assinatura, na espera de que o caso venha a ser visto pelas autoridades e os criminosos punidos, pois o animal já está morto. Mas a condenação, acreditem, nos tempos em que vivemos, receio seja algo raro.
Lamentavelmente o dito de Schopenhauer continua atualíssimo: “O homem fez da terra o inferno dos animais.” Eis a banalidade do mal, eterna como o céu, profunda como o inferno.



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Literatura pra quê?


Você já ouviu especialistas dizerem que comida boa é aquela que você retira da terra e não da prateleira do supermercado, é aquela que você descasca e não a que você desembala? Parece o óbvio não é mesmo? Mas, mesmo assim a maioria insiste em desembalar e ter overdoses de sódio ao consumir miojo e outras porcarias como o leite, cuja validade ultrapassa um ano naquela caixinha projetada pela indústria, em que sequer a soda cáustica misturada ao produto para neutralizar sua acidez consegue corroê-la. Alguém das antigas conhece a validade do leite de vaca – vaca mesmo!
Os hábitos foram tão alterados pela indústria que hoje as pessoas recusam o leite in natura por considerá-lo nojento, intragável. Pois é, com a literatura, acreditem se quiser, aconteceu o mesmo. Se a narrativa não estiver a serviço de uma causa ou de uma ideologia – e quando digo ideologia considero a indústria cultural e de entretenimentos – não presta, é erudita demais, é canônica, representa o sistema, o opressor e tudo o mais.
Desconfio de tudo! Se não leio, desconfio do texto; quando o leio, desconfio mais ainda, tento esmiuçá-lo, trato-o como inimigo, não me deixo convencer, busco nas entrelinhas o discurso sub-reptício que pode me alienar e me colocar a serviço de uma causa cujos interesses sequer desconheço, até mesmo porque a dificuldade em descobrir quem controla as marionetes na tentativa de nos tornar títeres de seus desejos e interesses é inimaginável.
Tome-se por exemplo – antes de adentrarmos ao puramente literário – as celebridades. Não falo de artistas, como Sophia Loren, que em sua biografia relata a ajuda que teria dado a um menino e que tentara manter em secreto, mas que fora descoberta pela imprensa. Refiro-me a uma casta de atores e atrizes cujo talento, na maioria das vezes (pleonasmo) é fugidio. Na tentativa de trazê-lo para perto de si, contratam empresas que gerenciam suas vidas profissionais e do nada tornam-se ativistas e pilares do politicamente correto. Às vezes o passado condena, mas essa mesma empresa trata de torcer a vara e adequar os discursos para que as celebridades surjam ilibadas, quase perfeitas. Li há pouco que existe até mesmo um cardápio de causas e à celebridade basta escolher entre militar na causa feminista, indígena, racial, gay e demais variantes. O curioso é quanto mais medíocre a celebridade, mais ela aparece! Houve até mesmo um casal que adotou uma cachorrinha abandonada na beira da estrada... bem, previra tratarmos de literatura.
Pois bem, na literatura acontece o mesmo. O Estadão publicou uma reportagem sobre o “mais completo levantamento sobre o hábito de leitura do brasileiro, a Pesquisa Retratos de Leitura”, agora sob a batuta do Itaú Cultural (desconfio de bancos sobretudo!). A novidade, no caso é realizar pesquisas “menores” em “festivais literários para conhecer o perfil do brasileiro que frequenta esse tipo de evento”. Deduz-se que quem frequenta estas feiras já é alguém ligado a livros. Não creio. É o mesmo que afirmar que alguém vai a Roma só para ver o Papa ou que todo muçulmano é terrorista!
É claro, relativizei, mas há algo errado nessa reportagem que também generaliza o brasileiro como grande leitor. Vejam: afirmam que 30% dos brasileiros gostam muito de ler, porém, na Bienal, este índice sobe para 74% e na Flup (Feira literária das periferias) 77%! Não creio que os hábitos se alteram ao badalar dos sinos. Fato é que a mesma pesquisa Retratos da Leitura recentemente divulgou que 44% da população brasileira não lê e 30% nunca compraram um livro! Ademais, basta pesquisar na rede para dar de cara com notícias que revelam uma queda de 17,94% na venda de livros nos primeiros meses deste ano em comparação com 2018.
O fato é que em sua maioria os livros e autores mencionados na lista da reportagem referenciada parecem produtos das empresas de gerenciamento, cada um contando seu drama pessoal, ajustando-o a uma causa da moda. No mais, me intriga a distância desses 70% e trá lá lá de leitores das escolas e universidades. Onde se meteram eles? Confunde-me o espírito tal leitura, considerando-se o esforço que nós professores fazemos durante um curso para que os alunos leiam três ou quatro livros ao longo do semestre, sobre os quais giram as discussões em sala de aula. Onde andam esses leitores que povoam as feiras de livros? Nunca adentram as escolas e universidades?
Vislumbro públicos diferentes: há um caduco, em ruínas, que aprecia Machado de Assis, Guimarães, Clarice, Dalton Trevisan, Rubem Braga, Dante, Balzac, Amós Oz, Drummond, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa, Camões (os nomes vieram-me aleatoriamente); e há os antenados e socialmente comprometidos ou psicologicamente fragilizados à procura de pertencimento e de algum alento, que aprecia Zibia Gasparetto, Alan Kardec, Lázaro Ramos, Augusto Cury, Paolo Coelho, Stephen King, Djamila Ribeiro etc.
Não vou adentrar a questão do cânone e nem à resposta que deveria dar à pergunta que mantive como título, mas algo afirmado na reportagem continua a me corroer o espírito: “enquanto 56% dos ouvidos pelo Retrato da Leitura em 2015 disseram ser leitores, os números saltam para 95% na Bienal e 97% na Flup. É leitor pelo menos quem leu um livro inteiro ou em parte nos três meses que antecederam a pesquisa. [Meu Deus! Que definição!] 6,6% é a média de livros lidos nos últimos três meses pelo público da Bienal, 7,9% pelo público da Flup e 2,5 pelo brasileiro em geral.”
Reflitam vocês quatro sobre os índices – sim, porque creio que este texto não será lido nem pelos cinco leitores que previra Machado ao escrevinhar seu Memórias póstumas, de modo que permanece a questão: literatura pra quê? Talvez para fugir à ignorância que nos rodeia e nos sufoca, e é exatamente por isso que me intriga saber o que um público de 95% 97% lê. Apesar da lista, a reportagem traz mais dúvidas que respostas. Detalhe: do público da Bienal, que supostamente tem maior poder aquisitivo, apenas 7% leem história, economia, ciências sociais, filosofia, economia e política, enquanto 17% do público da Flup consomem obras relacionadas a essas áreas, o que prova que outras pesquisas sobre a escolaridade na periferia não passam de lorotas. Não estou a desmerecer a periferia, até mesmo porque de lá saí; afora isso, a reportagem afirma que o gênero preferido dos leitores da periferia é o romance - e eu também gosto de romances. Também não estou a desmerecer o gênero, o que questiono é a diferença de índices. Perdidíssimo estou. Acho que vou ler um romance, o gênero preferido de 100% dos brasileiros, essa massa genial de leitores que ignora as celebridades pseudo-engajadas e até mesmo os derrières cantantes, como disse semana passada.
De minha parte, prefiro a literatura de raiz – como se diz por aí – à literatura das prateleiras de supermercado, alienante e ao gosto de interesses que sequer imagino.


Confira:



segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sexo lésbico, suruba e diversão: a estreia de Geyse Arruda na literatura



Há quem diga que coincidências não acontecem - e eu acredito - mas há momentos em que o universo parecer conspirar e aí você fica sem saber o que dizer, algo como a dinâmica da natureza explicada pela ciência, que os metafísicos insistem em atribuir ao criacionismo. Em busca do carro das ideias, dei de olhos com notícias sobre o lançamento do livro de Geyse Arruda. Sim, aquela moça que esqueceu a calcinha na gaveta e foi ovacionada ou assediada pelos colegas estudantes em uma universidade na cidade de São Paulo.
Há tempos escrevi sobre uma autora que passou dias trancada em uma jaula depositada em uma livraria, na tentativa de chamar a atenção do público e da imprensa para o livro que acabara de publicar. Não sei se a peça de marketing surtiu efeito, haja vista nem me lembrar do nome da literata. No caso de Geyse, o marketing é mais agressivo. O Prazer da vingança, da autora, é anunciado não com a foto de capa, mas com a foto da bunda da “escritora”. As aspas indicam alguma ironia, mas não é culpa minha, afinal, em meio aos contos eróticos, o leitor leva de brinde muitas fotos da bunda e peitos da “intelectual”.
No Instagram sim há a foto da capa e para ser coerente nela também Geyse exibe seu avantajado derrière. Como disse, o marketing é ousado, de modo que a autora alerta o leitor: “Vai começar a putaria boa...Vocês pediram e eu vou liberar meus contos eróticos: Serão mais de 100 páginas de histórias com fotos exclusivas feitas por mim em um Motel Suite Sadô, para ilustrar cada conto. Teremos spoiler: contos de masturbação, sexo virtual, sexo lésbico, suruba, inversão, shibari, Cuckold “Corno Manso” e muitoooo mais...”.
Haja vista desconhecer o que seja “shibari” e “Cuckhold Corno Manso”, penso que a obra não é de se jogar fora e traz algo didático. Instrutiva ou não, Geyse conseguiu o sucesso que muitos outros autores jamais conseguiram ou conseguirão, isto é, que a grande imprensa divulgue, em diferentes espaços, o seu trabalho. Dizer o quê? Azar o deles e delas que talvez tenham mais cérebro do que bunda!
O sucesso deve ser retumbante, dado os comentários dos internautas. Vá lá, seguem alguns: “Vai fluir”, “Sexy”, “Ancioso” (sic), “Aí sim enh... adoro vc”, “Temas interessantes e eu já escrevi algo assim também...”, “Só compro se tiver os contos eróticos da faculdade.” – e por aí vai. Há também os solidários, que sugerem títulos, como este internauta: “Um título interessante seria "50 tons de rosa". Nota-se pelos pitacos um leitorado contumaz, quiçá leitores semióticos.
Em resposta à ala conservadora, há internautas que se revoltam contra o país e sua hipocrisia: “Brasil, o país mais careta, arcaico, conservador hipócrita que pode existir. Deve ser por influência da Igreja Católica, apesar de achar que o Papa atual é menos conservador que nossa sociedade hipócrita. Sociedade que condena tudo em público e faz mais orgias do que os liberais na sua mente ou até nas escondidas. Parabéns Geisy, apesar desses que tem (sic) medo de sexo, eles serão os principais leitores de sua obra de arte. Continuem no eterno papai-mamãe, é bom também.” Está valendo! (Ah! O destaque ao “obra de arte” é de minha autoria.)
Como tratei das coincidências, volto a uma obra sem surubas, shitakis, sushis ou sashimis: Boêmios, de Dan Franck, em que o autor olha para a Paris do início do século XX revelando o quotidiano de figuras como Picasso, Alfred Jarry, Modigliani, Braque, Matisse, Breton, Max Jacob, Apollinaire, Aragon e tantos outros que não mostraram a bunda, mas, extravagantes, “organizavam festas inusitadas, puxavam o revólver e provocavam o burguês de mil maneiras”.
A quarta capa do livro de Franck traz o seguinte entrecho: “A obra está além dos problemas da ordem e dos costumes. Antes de qualquer outra coisa, o artista produz obras de arte. Picasso pode se vestir como quiser. Alfred Jarry pode puxar a arma tantas vezes quanto desejar (e ele o fez), Breton e Aragon podem ameaçar aqueles que desprezam, todas essas bravatas pouco significam se comparadas aos caminhos que eles traçaram. A arte moderna nasceu das mãos desses sublimes provocadores. De 1900 a 1930, eles não se contentaram apenas em levar essa vida de artistas que os tornou detestáveis para alguns e que muitos outros invejaram: acima de tudo, eles inventaram a linguagem do século.”
Eis porque não se deve julgar, odiar ou invejar Geyse ou Anitta. Nesse começo de século XXI elas estão a inventar uma nova linguagem em que a bunda fala, escreve e canta, coisa que nem Jarry, Picasso ou Modiagliani conseguiram. E isso, leitor, convenhamos, não é pouca coisa!

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A ética ainda é possível?


Em nossos dias, quando nos esforçamos para compreender o mundo, sim, este mundo que nos parece tão familiar, mas que nos surpreende a todo instante, se perguntarmos a alguém o que vem a ser ética é o mesmo que perguntarmos o que é o tempo. Santo Agostinho, no capítulo XI de confissões, esclarece as nossas dificuldades diante destes conceitos que nos perseguem ao longo de nossas vidas. Sobre o tempo, Santo Agostinho pergunta: “Que é, pois o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de constatação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.”
Com a ética, ocorre quase o mesmo. Todos sabemos o que é a ética, o que é ser ético, mas se nos propormos a explicá-la, é provável que nos atrapalhemos. E por quê? Porque assim como o tempo temos dificuldade em traduzir por palavras o seu conceito. À busca do carro das ideias, lancei a pergunta “O que é ética?” ao Google. A resposta foi o esfacelamento da ética; é claro que a definição dicionarizada dá margem a isso, pois lá no dicionário ética é um “conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade”, por isso as éticas moral, profissional, cristã e por aí vai...
De hábito, as relações entre ética e moral são ordinárias, comuns, mas nem por isso deixam de ser delicadas, isto porque a distinção entre esses dois termos é diferente, segundo os pensadores. No sentido “comum”, o termo ética é sinônimo de moralidade e refere-se a uma prática destinada a determinar o modo como se vive em um habitat em correspondência aos fins ou papéis da vida do ser humano.
No entanto, se o termo “ética” é sinônimo de moralidade no sentido “comum”, por que a palavra “moral” não é encontrada nem uma vez na Ética de Espinosa, por exemplo? A razão para isto é que a moralidade consiste em um conjunto de regras “relativas” estabelecidas ficciosamente como boas e más absolutas, enquanto a ética é precisamente a moralidade livre de suas crenças supersticiosas que absolutizam o relativo e suas condenações moralizadoras e que são usadas como arma contra os outros, consonante Constantin Brunner, filósofo herdeiro espiritual de Spinoza.
Abandonando a erudição, vamos a exemplos da falta de ética e moral nessa nossa sociedade líquida em que nada mais assegura uma conduta adequada do ponto de vista ético ou moral. Veja o que a polícia acaba de descobrir sobre o Dia do Fogo, dia em que fazendeiros, madeireiros, empresários e motoqueiros juntaram-se para pôr fogo na floresta Amazônica e, depois, foram protegidos por delegados, deputados e senadores. A polícia descobriu que os incêndios dos dias 10 e 11 de agosto foram orquestrados via grupos de Whatsapp e financiados por meio de uma vaquinha, com o objetivo de bancar os custos do combustível – mistura de óleo e gasolina – e dos motoqueiros, pagos para disseminar o fogo em trilhas perto das estradas.
Não é preciso dizer que depois do esforço do grupo, os focos de incêndio em torno da cidade de Novo Progresso (o novo em si revela-se bastante irônico), no Pará, aumentou em nada menos que 300%. Um dos suspeitos é Agamenon Menezes (Agamenon, o nome, é uma afronta aos gregos), senhor bastante ético da cidade e presidente do Sindicato dos Produtores Rurais da cidade (de um sindicalista não esperava algo diferente; desafio aqueles que creem em sindicalistas a me convencerem do contrário).
Há também um senhor de moral ilibada, Ricardo de Nadai, proprietário da loja Agropecuária do Sertão e organizador dos grupos no Whatsapp; claro, imaginando quanto faturaria com o desmatamento e a venda de apetrechos para a formação de pastos. A notícia se espalhou e o delegado da Polícia Civil, Vicente Gomes, da Superintendência da Polícia Civil de Tapajós, também ético, determinou que o delegado de Novo progresso não repassasse a informação à Polícia Federal.
O acordo entre fazendeiros e madeireiros foi revelado por Adécio Piran em 5 de agosto, no site paraense da Folha do Progresso; o rapaz, após a publicação, fugiu da cidade por ter sido ameaçado de morte pelos moralmente éticos fazendeiros e madeireiros de Novo progresso.
Mas não é só isso caro leitor: um dos representantes dos ruralistas no governo federal, o Sr. Luiz Antônio Nabhan rondou Novo Progresso e os policiais da cidade afirmam que os fazendeiros da região são bem relacionados com deputados e senadores do Pará e têm contatos com o alto escalão do governo federal. Moralmente éticos ou não, covardes quando são pegos com a boca na botija, esquivam-se: Agamenon atribuiu o aumento dos focos de incêndio ao período seco e aos indígenas; o presidente da República, por sua vez, à época negou a existência das queimadas.
Notou porque é difícil responder o que é ética, leitor? A ética ainda é possível em meio a tanta canalhice?



Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/a-etica-ainda-e-possivel/

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Réquiem a Harold Bloom


 

Ao Leitor:
Se você tem algum apreço pela literatura e por aqueles que dela se ocupam, continue a leitura. Caso contrário, deslize os dedos pela tela do seu smartphone ou clique um botão qualquer de seu teclado; abandone a leitura pois este não é assunto do seu interesse.

Assim como parece não ter sido do interesse do site de notícias que se anuncia como “a maior empresa brasileira de conteúdo”, ao menos no dia 14/10/2019, segunda-feira, dia em que Bloom partiu para os Campos Elíseos. Neste dia, o tal site ocupou das separações e das bundas das celebridades, conteúdo, parece-me, do interesse de um público que ignorou Bloom. Mas não culpemos o público; muitos professores universitários fizeram – e fazem – o mesmo.
Harold Bloom – se você é daqueles leitores teimosos e resolveu insistir no texto – morreu aos 89 anos e foi um titã da crítica literária. Cultíssimo, era uma enciclopédia ambulante da literatura inglesa; notório por se opor ao politicamente correto e por seus julgamentos tradicionais e fora de moda sobre poetas, romancistas e dramaturgos. Não era lá muito do gosto da patota multiculturalista, sobretudo aquela que flutua pelas periferias do texto.
Professor de longa data de Yale e da Universidade de Nova York era, em si, um verdadeiro oximoro, considerando que se tratava de um estudioso sério que escrevia para as massas. A Ansiedade da Influência e O Canône Ocidental são best-sellers inquestionáveis. O primeiro, publicado em 1973, é uma obra densa que expõe uma teoria fortemente dependente de Freud, sobre a luta psíquica que produz grandes poetas. Nos anos posteriores, contudo, Bloom foi um populista determinado, traduzindo preocupações de alto nível sobre educação literária para um público geral e mais abrangente, razão pela qual tornou-se um dos raros críticos a ter suas obras nas listas de best-sellers.
Tratando das inseguranças culturais, Bloom ofereceu respostas inequívocas a perguntas que considerava fundamentais para a literatura e o aprendizado dela. Quais escritores pertencem ao panteão literário e quais estão no meio da confusão? Devemos ler para satisfazer agendas sociais ou políticas, ou devemos ler para entender nosso eu essencial? À medida que novas escolas de crítica tomavam conta das universidades americanas na década de 1960, permitindo que os defensores do marxismo, desconstrucionismo, feminismo e multiculturalismo revisassem o currículo, Bloom emergiu como um defensor da tradição.
O Canône Ocidental (1994) tornou-se sua réplica para os teóricos multiculturalistas, que ele reuniu e ridicularizou como adeptos da “Escola de Ressentimento”. O livro destaca 26 escritores - quase todos homens brancos europeus mortos, incluindo Shakespeare, Dante, Borges e Beckett - cujas obras ele considerou leitura obrigatória, razão do chororô dos ressentidos. Sem papas na língua, extravagante em sua incorreção política, ele alienou movimentos inteiros com críticas irreverentes sobre o que chamou de mal-estar a varrer a academia. “Eu não sou”, proclamou maliciosamente em um artigo no Times londrino, “um defensor da ficção lésbica esquimó”.
Considerado o crítico mais audacioso de sua geração, em 1900 publicou O Livro de J, em que tratava a Bíblia como literatura e sustentava que o Antigo Testamento fora escrito por uma mulher. Não é nem preciso dizer que os estudiosos da Bíblia refutaram a sua tese; o livro, porém, tornou-se um best-seller. O mesmo aconteceu com Como ler um livro e por quê (2000), versão condensada do cânone de Bloom.
A celebridade de Bloom era devido tanto à sua personalidade quanto às suas ideias; foi uma personagem tão colorida quanto Falstaff, a grande criação cômica de Shakespeare. Bloom, com seus olhos melancólicos, podia ser cáustico, bombástico, atrevido e encantador. Aos 30 e poucos anos, sofreu uma depressão profunda e começou a ler Freud obsessivamente. Suas lutas psíquicas se arrastaram por seis anos, durante os quais ele começou a escrever um poema épico inspirado em um pesadelo. O poema se transformou em uma teoria da poesia, que veio à luz em A Ansiedade da Influência.
Sua teoria sustentava que os poetas são como filhos que se rebelam contra o pai - adaptação da teoria da raiva edipiana de Freud. Segundo Bloom, o desejo de ofuscar o trabalho brilhante do passado leva poetas “fortes” a usurpar seus antecessores e criar seus próprios trabalhos significativos. Para isso, baseou-se nos românticos para ilustrar a teoria de que compor um poema é um “processo feroz” de ultrapassagem e revisão das melhores obras poéticas do passado. O livro, ao mesmo tempo deslumbrante e confuso, empregava tantos termos obscuros que levou a escritora nova-iorquina Larissa MacFarquhar a afirmar “que parecia ter sido escrito por um cabalista Lewis Carroll”. O crítico britânico Terry Eagleton, contudo, chamou-o de “uma das teorias literárias mais ousadamente originais da década passada”.
Bloom era uma celebridade na academia, mas ficou cada vez mais atormentado. Ele havia tolerado os desconstrucionistas - o principal deles, o pensador francês Jacques Derrida - e, embora tenha contribuído com um ensaio para um livro com Derrida e outros defensores da desconstrução, negou que fosse um deles. À medida que outras novas escolas de crítica ganhavam popularidade - novos historicistas, socialistas, feministas e multiculturalistas -, Bloom as ridicularizou afirmando que faziam parte de “grupo de lemmings” que estavam destruindo os estudos literários com suas agendas não literárias – por isso foi visto como reacionário. Um de seus ex-alunos, o escritor Charles McGrath, observou que o velho professor começou a brincar dizendo que era marxista da “escola marxista Groucho ... cujo lema é Seja o que for, sou contra”. Ao escrever O Canône Ocidental afirmou que procurava salvar a educação literária tradicional dos bárbaros, momento em que considerava o que era ensinado nas academias como resultado de uma culpa social e cultural que assumira o controle.
Tratado como um dinossauro pela maioria de seus colegas, afirmava, disse não se importar, pois acreditava na genialidade literária e no “poder de alterar o mundo da imaginação de um poeta”, convencido de que a grande poesia mudou o mundo.