Revista Philomatica

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Cacos de chuva


Depois de cinco dias chuvosos, textos sobre o fenômeno climático inundam a internet. Acabei, por acaso, correndo os olhos por um deles cujo título era “Por que o barulho da chuva acalma e ajuda a dormir?”. Saber que os sons da natureza são aconselháveis para momentos críticos, pois tranquilizam a alma, é de grande valia. Embora o assunto me despertasse o interesse, não continuei a leitura. Fui interrompido por vídeos, anúncios e mais anúncios; insisti, rolei a tela até o final para ver a extensão do texto, encontrei um “continue lendo” em meio a outros anúncios e, cansado dos ruídos que abafavam o barulho da chuva, parei.
Dei-me conta de que não me importo com a extensão dos textos no formato livro, leio, como dizia Hemingway, “de uma sentada só”, duas, três horas! Mas na tela do celular ou do notebook, a paciência me é pouca. O culpado, claro, acho que é o tal do merchandising. Conversando com meus botões, chegamos à conclusão de que o assunto é mais sério (sempre dramatizamos as situações).
O fato é que em todos os domínios, a sociedade atual vive um interregno, qual seja, aquele momento em que abandonamos as regras antigas (ao menos afirmamos isto) e ainda não temos nada que as substituam. Na melhor das hipóteses, debatemo-nos com conjecturas geradas por especialistas – a maioria facebookianos oriundos das escolas de filosofia e sociologia.
A minha impaciência em ler o texto na tela tem um pouco a ver com o modo como ele se mostra na atualidade: estilhaçado, desordenado. Antes, em tempos de menos turbulência e ansiedade, tudo, o tempo era mais linear, progressivo. Hoje, não bastasse aquela ideia de liquidez idealizada por Bauman, em que temos dificuldade de firmar laços, já que a liquefação da consciência deixa para as instituições a imposição de regras, condutas e sistemas simbólicos, nada nos resta além de seguirmos um pouco como zumbis, já que nossa memória está fragmentada.
Esta memória em cacos nos oferece tudo o que lemos na internet, daí a nossa falta de paciência em seguir um tempo linear. O resultado é a perda da memória. Esquecemos das coisas à medida em que perseguimos qualquer hipertexto, qualquer link, às vezes, esquecemo-nos até mesmo daquilo que procurávamos quando havíamos decidido usar o celular ou o notebook.
Até “ontem” a memória era indispensável para qualquer continuidade, para o progresso e avanços futuros – até mesmo os pessoais. O futuro dependia da memória. Hoje, ela nos desorienta, nos deixa perdidos. Dizem que na época áurea do Império Romano, qualquer dos Césares possuía muito menos memória histórica e informação que qualquer garoto de sete anos hoje!
Por outro lado, nossa memória recente nos oprime: o horror das duas grandes guerras, os genocídios perpetrados por ideologias, a ânsia de poder que produz miséria, tudo isso nos culpabiliza.
Diante disso, chego à conclusão de que não devo concluir a página. Quem leria? Os cem leitores de Stendhal? Talvez os cinco de Machado? Não creio! Topo todos os dias com estudantes de letras que nunca leram as Memórias. Olho para fora e vejo a chuva. Busco fragmentos de memória, chuvas antigas, reminiscências, lembranças. Desvio o olhar e resolvo ouvir a chuva. Os sons, dizem, acalmam. Mas só ouço cacos, cacos de chuva!

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Machado de Assis pop star


Depois de haver desabrigado o bichano que dormia profundamente na grande almofada, o garoto, que ali ainda mal se instalara, ouviu os gritos da mãe:
— Quantas vezes eu já disse que é para estudar no quarto e não na sala? — Mas mãe...
A mãe, dona Tonica, professora de literatura e mãe de Francisco desde sempre, retrucou:
— Não tem mais nem menos!
Salvo pelo gongo, ou melhor, pela campainha, ele ali continuou, refestelando-se na grossa almofada, preocupado com a folha e o lápis que, à sua frente, meio que lhe indagavam pelo toque suave dos dedos. Esquecera completamente a bronca da mãe. Era sempre assim. Quando algum de seus alunos chegava, ela se transformava: sua meiguice e delicadeza atingiam nível igual ou superior à sua inteligência. Conhecia tudo de literatura brasileira.
Aos dez anos, o pequeno Paco – era assim chamado em homenagem ao avô espanhol – não entendia muito bem porque era tão importante para a aluna de sua mãe, que chegara há pouco, saber das intimidades de Bentinho e Capitu. Afinal, ia ser médica. À menção de Capitu, lembrou-se de quando o pai dissera que a vizinha, dona Lucrécia, era mulher dissimulada, Capitu na vida, ouviu até mesmo quando ele suspirou um coitado do seu Ernesto, tão jovem e corno!
— Não diga isso na frente do menino, homem!, dissera a mãe.
Atento às explicações de dona Tonica, aos poucos sentiu-se sonolento e passou a visualizar a sua Capitu: loura como dona Lucrécia, seios grandes, olhos azuis... Não via mais nada, deixou-se levar e murmurou: Capitu...
— Ei! Acorda, moleque. Paco, Paco! Você não está me ouvindo? Venha cá, rápido! Vá até a banca de revistas do seu Manoel e me traga uma revista sobre o Machado de Assis. Ele sabe qual é; eu já havia reservado.
Num sobressalto o menino ouviu a enxurrada de imperativos e em instantes já corria em direção à banca do seu Manoel, que, numa liberdade não concedida, sempre lhe beliscava as orelhas e exclamava: “Mas é a cara do avô, não há o que dizer!”
— O que queres?
— Vim buscar a revista do Machado que minha mãe reservou.
— Não separei, meu jovem. Estou só, uma porção de coisas a fazer e, ainda por cima, adoentado. Ah! que saudades de quando era assim como tu, um pirralho... Bem, deixa pra lá! Vá lá, procure nos clássicos.
— Mas minha mãe acabou de dizer que ele é moderno!
— Ora, pois! Tão jovem e já acha que para ser clássico há que ser antigo. Mas aposto que tua mãe não te disse é que hoje já estamos a ver clássicos modernos. Pois lhe digo que, para mim, os clássicos são os mais procurados. Já ouvistes de tua mãe que, para o momento, nosso maior clássico está para ser o senhor Coelho?
— Não, esse nunca!
— Pois vá lá, se Machado é moderno estará entre os clássicos. Minutos depois, Paco, mãos vazias, exclama: “Não achei nada, seu Manoel!”
— Ah! Tu não sabes procurar! Não te disse que os clássicos são os mais procurados? Pois então, a revista de Machado está na seção dos populares, que para dar um ar de modernidade chamei de a seção dos pop stars. É fácil, vá lá! Vais encontrar o que mais se procura: Madonna, a mulher Melancia e também o teu Machado.
Paco contorna o estreito corredor e dá de cara com a mulher Melancia, pernas em V, bumbum em riste, como a piscar para Machado que, sereno, plácido, olhos perdidos sob o pince-nez, parecia olhar para além da Melancia (para Paco ele estava a apreciar), a apreciar Madonna que também de pernas ao ar e em contorcionismo radical provava a tese do seu Manoel.
A mãe, quando soube onde Paco encontrara os Cadernos Literários que estampavam Machado na capa, não se conteve e exclamou: “Ah, meu Deus! Ainda bem que ele já se foi”. A aluna, kardecista e pró-Capitu, disparou: “Eu penso é na Carolina, dona Tonica, que a essa hora pode até ter reencarnado!”



* O texto acima, escrevi-o quando existiam mulheres Melancias e Madonnas a provocar a libido masculina. Hoje, alguma poeira do tempo já sepultou as duas no ostracismo e a libido, fragilizada, perdeu-se entre os gêneros, foi criminalizada.

Caricatura de Machado de Assis: autor, Jefferson Nepomuceno

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Machos, pero no mucho!


Em tempos em que se discutem exaustivamente ideologias de gênero e que a cabeça do homem jaz como alvo sob o salto alto a lhe provocar enxaquecas, vale a pena voltar um pouco no tempo e resgatar a “origem” das mudanças que o tornaram, digamos, mais sensível. Sim, porque nem todo homem é um brutamontes como querem uns e outros.
Comecemos pela Primeira Guerra Mundial, evento que tornou difusa as fronteiras da masculinidade e da feminilidade. Entre 1914 e 1918, podemos vislumbrar crises que, justapostas, contribuem para o sfumato de crenças e definições cujos contornos eram antes bem definidos. A primeira delas é a morte do soldado heroico. A cultura de combate que imperava no século XIX, por exemplo, era uma cultura em que se valorizava a guerra. A guerra era uma prova de virilidade, um rito de passagem para o homem, uma questão de honra, razão pela qual, ao longo deste século, pululavam os duelos. Enfim, o soldado do início do século XIX era um soldado que combatia de pé e empunhava a espada ou a baioneta do fuzil na vertical.
Contudo, durante a Primeira Guerra já surgem os armamentos modernos e este soldado tem que se prostrar, abaixar a cabeça para se desviar dos tiros das metralhadoras. Ele, o soldado, não se mantém mais na vertical, algo que se traduz como um golpe para a sua virilidade. Não estamos mais em frente de um soldado de Napoleão, para quem a guerra era uma aventura, a glória, mas de um homem entrincheirado em buracos em meio à lama, em situações catastróficas.
Outra crise que desponta é a incapacidade de ordem moral e afetiva, já que retomar a virilidade de antes tornara-se algo impossível, ao menos para parte dos soldados que retornaram da guerra, a maioria, incapacitada, com rostos e corpos desfigurados e que já não podiam mais reintegrar-se à sociedade, obrigando-se a viverem em grupos separados. O sofrimento e o não-lugar dos heróis de guerra possibilita um dos grandes momentos da psiquiatria que, nesta época, começa a discutir os traumas psíquicos.
O fenômeno demora a ser compreendido, vem a Segunda Grande Guerra e a figura do soldado não servirá mais de ideal masculino; outras figuras vão surgir, em parte artistas, ainda que, à época, parte a população ainda tenha como modelo os grandes chefes militares. É nessa época que os gêneros são, digamos, desiquilibrados. Diferentes formas de amor são forjadas entre os soldados: relações homoeróticas, em razão de uma virilidade posta à prova e ao descaso; relações maternais, em que oficiais exercem o papel de mãe para soldados em situações de desespero, padecendo de sofrimentos físicos e psicológicos - e por aí vai.
É claro, havia as relações consentidas e aquelas não consentidas. O mundo militar era (ou é) um universo de frustração sexual em que a violência sexual aflorava. Para fugir do fronte, houve casos de soldados que se travestiram de mulher. Paul Grappe, em 1915, chegou a ser condenado por deserção, mas escapou por uma década, período em que viveu com sua mulher, sob falsa identidade.
Nesse período também, o homem é substituído pela mulher no mercado de trabalho, algo que propicia a emancipação da daquela. Não se pode ignorar, contudo, que logo após a guerra o homem busca recuperar seus postos de trabalho. Esse movimento pós-guerra produz o aumento da violência doméstica e conjugal, assim como um número maior de divórcios, sobretudo porque o homem tem dificuldade de sair da cultura de violência cultuada no fronte.
Tudo isso, vale destacar, não desculpa qualquer violência, mas é fato que a guerra alterou as representações de feminilidade e masculinidade, a ordem dos gêneros. O aparecimento da garçonne (jovem que usava cabelos curtos como os rapazes) na França dos anos 20 é um dos indícios da transformação da relação entre os sexos. 
Hoje, tal é a fluidez dos gêneros que nada sobrou além de esperneios conservadores, ranzinzice de quem jamais viverá uma Belle Époque. Por isso, acostumem-se aos novos tempos de machos, pero no mucho!


quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Agonia


Como o mar não está para peixe, falemos de literatura, ou sua materialidade, que seja! Hoje leio que editoras acabam de criar um bloco para negociar com as grandes livrarias. Estas, por sua vez, vivem um momento sombrio, em meio ao fechamento de lojas e pedidos de concordata. Quem já leu Ilusões Perdidas, este, um genial livro sobre o livro, há de saber que a vida nunca foi fácil para os livreiros, que sempre pescaram lambaris em água salgada.
A culpa, creditam à ausência de público leitor. Não os culpo, afinal, não é difícil constatar que o livro tornou-se um objeto estranho ao alunado. A má administração? Vá lá, pode ser que tenha nisso sua contribuição, afinal, hoje há muito gueri-gueri e livraria, sabemos, não é sex-shop ou grande magazine. Já não vemos aquelas livrarias em que a figura central era o livreiro com toda a sua sabedoria conhecimento invejáveis sobre autores, fábulas e personagens; verdadeiro crítico, este senhor que, não raro, ignorava as vitrines de néon em proveito de um banquinho de madeira puído, no qual se acomodava para trocar historietas com seus clientes habituais, encantava leitores. A memória me leva ao passado e imagino Garnier a tagarelar com os grandes de nossa literatura que flanavam pela Rua do Ouvidor. As reminiscências, verdadeira rede de arrasto, não me deixam esquecer do livreiro da Livraria Universal, ali na Francisco Glicério, ao lado do saudoso Hotel Terminus, a me recomendar Vida e feitos de Júlio César, obra que consumiu os caraminguás que havia poupado por mais de dois meses; a João Amêndola, onde adquiri meu Raul Pompéia, a Anchieta... todas, livrarias que se perderam na poeira do tempo e, com elas, seus grandes livreiros.
O fato é que não há culpados: a vida muda e isso é tudo! Houve o tempo dos códices, dos incunábulos; veio a imprensa e a popularização do livro, veio a Encyclopédie, veio muita literatura da boa, vieram as edições bem cuidadas, fetiches de colecionadores e orgulho das bibliotecas, veio a crítica que, por sua vez, matou os autores e previu a agonia e morte da literatura e, hoje, acreditem, vemos o fechamento de livrarias, alunos de letras que odeiam livros e se insurgem contra Vargas Lhosa, Harold Bloom e muitos outros, vomitando toda uma sapiência adquirida via scroll-down/scroll-up na grande obra facebookiana cujo autor, como previra a crítica, faleceu! Não há culpados, repito. Tornamo-nos uma sociedade pautada pelo visual, não temos paciência de ler meia dúzias de linhas; hoje, leem-se os títulos e produzem-se longos discursos orais cuja síntese é um tema na foto de perfil do facebook.
O fato é que a tecnologia, assim como fizera à época de Gutenberg, transformou o livro, a literatura, o que se lê e o jornalismo. Este último, parece-me, tem recebido estocadas mortais, sobretudo em época de eleições. Em um só golpe, padeceu a grande imprensa, antes chamada de golpista, e os marqueteiros, em proveito de um treco chamado whatsapp, execrado pelos jornais, televisões e toda a tropa que grita em favor da democracia. Para o bem ou para o mal, ainda não sabemos, o aplicativo deu certa independência ao cidadão, tirando-o das amarras alienantes impostas pelo poder e pelos órgãos de imprensa. Ao menos superficialmente, parece-me, a notícia tem se disseminado como rastilho de pólvora, sem as comportas impostas pelos grandes órgãos de imprensa associados ao poder. Ainda que haja muita invencionice, só o fato de você compartilhar a ideia sem ter que pedir aos Macedos, aos Saads e aos Marinhos, ah, convenhamos, isso já é uma grande coisa! 
A literatura? Esta jaz na cama do hospital, em agonia, mas resiste! Desde que os aspectos estéticos começaram a perder terreno em decorrência da banalização do conceito de “literatura” (Perrone-Moisés), e o sexo passou a ser discutido na narrativa de modo que toda uma leva de alunos está mais preocupada com o fiofó da personagem que seu lugar no mundo, muita gente já foi visitá-la no hospital e de lá saiu com um prognóstico nada positivo: Sartre, Blanchot, Todorov, Derrida, Otávio Paz e agora, em nossos dias, toda uma tchurminha que produz dissertações e teses sobre nada, já que não tem paciência ou não é capaz de ler textos que ultrapassem meia dúzia de linhas. Talvez, por isso mesmo a literatura resiste, ainda em estado de agonia, mas resiste!