Revista Philomatica

quarta-feira, 31 de março de 2010

Sobre gatos, poetas e escritores

O impertubável mistério, a independência e o silêncio incomodam a todos. Acredito que a independência seja o ponto crucial. Afinal, ao redor dos homens, se dão ao direito de ignorá-los completamente, a não ser que se interessem ou queiram algo - assim são os gatos. Os homens? Ah, estes os invejam, certamente! Outro dado a considerar é que são seres silenciosos, embora acredite que do alto de atitudes e poses majestosas, sejam capazes de invadir e vasculhar nossas almas e de lá, por meio de olhares imóveis e sábios, captar a essência do nosso ser. O contrário, penso ser humanamente impossível. O homem é incapaz de encará-los profundamente e tentar penetrar em suas almas. Eles sempre ganham. Da experiência, o que resta são palavras e afagos com os quais, voluntariamente, os presenteamos, além, é claro, da melancolia que sentimos ao comprovar que nunca vão nos pertencer por inteiro.
Muitos dizem ser o gato interesseiro, desconfiado, contraditório, ambíguo etc e etc. Talvez por isso tenham estreita relação com escritores. Afinal de contas, qual escrita não tem lá sua dose de ambiguidade e não oferece margem para a contestação das partes, réplica, tréplica, impugnação? Só depende do leitor porque, a essas horas - como diria Barthes, o autor já é morto. A escrita, como se sabe, não se faz em meio a grande alarde mas, sim, na solidão, no silêncio. Muitas vezes o único barulho provém das páginas em branco, amassadas, que o escritor não pôde vencê-las. Os gatos, privilegiados, deixam para trás os estudiosos da crítica genética e são os primeiros e únicos a participar do processo de criação, a presenciar as palavras se desenhando ao longo da linha que se enreda ao parágrafo seguinte perfazendo a trama e, sabe-se lá, um pelo ou um bigode perdido fará parte do tecido da escritura que se completa. Quem tem gatos, ama livros e escrever, sabe do que falo. Antes, se esfregavam nas máquinas de escrever; hoje, caminham sobre os teclados produzindo uma sucessão infinita de rrrrrrrrrrrrrrs, sssssssssssssss e outras letrinhas tantas. Talvez uma tentativa de dar corpo à fala que neles inexiste.
Os gatos, muitos afirmam, são razão de estudos para toda uma vida. Exagero! Isso é coisa de quem adora escarafunchar a vida dos outros. Me contento em vê-los adormecidos sobre meus livros, usando meu Petit Robert como travesseiro, embora, confesso, os inveje. Fernando Pessoa também os invejava: “És feliz porque és assim. Todo o nada que és é teu”.
Os gatos são amigos dos poetas. Esfregam os bigodes no verso e produzem a rima, pressionam desconfiadamente as unhas na página branca ou no teclado e surge a metáfora; olham insistentemente a tela e, clarividentes, fazem brotar do parágrafo todo o sentido que o poeta escondia sob a retina. O poeta usa de artifícios: rimas, métrica, palavras, vírgulas, pontos, metonímias, hipérboles, litotes e etc etc para aprisionar as palavras. O gato, num salto apaga o parágrafo, liberta as palavras, dissemina intenções e libera sentidos.
Muitos foram os escritores e poetas de todas as épocas que se renderam ao fascínio dos gatos e com eles compartilharam suas obras e suas vidas. Guimarães Rosa admitia que adorava conversar com seus dois gatos persas. Lygia Fagundes Telles escreveu A Disciplina do Amor, obra onde declara seu amor pelos gatos. O musical Cats, encenado na Broadway resultou de um poema de T. S. Eliot, O Nome dos Gatos. Outro célebre poema, Ode aos Gatos, é de autoria do não menos célebre Pablo Neruda. Seu poema é até hoje uma das mais brilhantes descrições da personalidade felina e, diga-se, evocada por todo defensor desses misteriosos e cativantes animais.
Há ainda uma infinidade de outros autores e poetas: Victor Hugo escrevia ternamente a seus gatos em um diário, Jorge Luiz Borges deixou-se fotografar inúmeras vezes com sua gata branca, que adorava dormir de barriga para cima. Edgar Allan Poe fez do gato o tema para alguns de seus melhores contos e Baudelaire, em Les Fleurs du Mal, dedica três poemas aos felinos.
Transcrevo agora, trecho de artigo publicado na Revista Eletrônica Século XXX, sobre os felinos: "Para Ernest Hemingway os gatos eram as únicas criaturas que mereciam ser mimadas incondicionalmente – tinha tanta paixão por eles, que chegou a ter 50 gatos, os quais deixou protegidos em testamento, ao morrer, em julho de 1961. O escritor determinou que seus gatos deveriam ser mantidos com todo o conforto por meio dos rendimentos oriundos de direitos autorais de sua obra. E assim foi feito. A casa em que morava em Key West, na Flórida, foi transformada em The Ernest Hemingway Home & Museum e tem como principal atração 57 bem cuidados gatos – todos descendentes dos primeiros bichanos do escritor.
Como esses, muitos outros escritores, poetas e pensadores de todos os gêneros renderam-se ao fascínio dos felinos e com eles compartilharam suas obras e suas vidas. A lista é notavelmente longa: Lord Byron, Anton Tchekov, Collette, Alexander Puskin, Céline, Paul Gallico, Hermann Hesse, H.H. Munro, Thomas Hardy, Edward Lear, Lewis Carroll, Beatrix Potter, W.B. Yeats, Théophile Gautier, Ray Bradbury, Colette, Honoré de Balzac, Raymond Chandler, Jean Cocteau, Marcel Mauss, Júlio Cortazar, Alberto Moravia, Rudyard Kipling e Charles Perrault (criador do Gato de Botas) adotaram gatos como seus companheiros de silêncio e de escrita e adoravam ou adoram falar deles, escrever sobre eles, transformá-los em personagens de suas histórias.
Também é o gato, com seus mistérios e sua ligação com o encantamento, o animal favorito de muitos autores de ficção científica e terror, como H.G.Wells, Stephen King e Patricia Highsmith. A lista continua com Mark Twain que, da infância compartilhada com 19 gatos, até a velhice, nunca deixou de viver na companhia de pelo menos dois gatos. "Não se imagina uma casa de Mark Twain onde os gatos não reinem supremos", diz um de seus biógrafos. Em sua fazenda em Connecticut viviam 11 gatos. Entre os intelectuais brasileiros os “gateiros” também são muitos: Clarice Lispector, Ana Miranda, Jorge Amado, Ruy Castro, Mario Quintana, Mauro Rasi, só para citar alguns.
Mas o que pode haver de tão intrínseco entre essas duas espécies – gatos e escritores – que as une tanto? “Eles foram feitos para se entender”, afirma a psiquiatra Nise da Silveira no livro Gato, a emoção de lidar. Conhecida por ter transformado seus muitos gatos em co-terapeutas no tratamento de doentes mentais, a doutora Nise nunca teve dúvida de que os gatos são os companheiros ideais para o ser humano. “O gato é remédio para a solidão – a doença mais devastadora de nossos dias”, afirmava. Mas seriam os escritores seres solitários? Talvez solitário seja o ato de escrever e, para isso, não há companhia melhor do que a silenciosa, delicada e elegante presença felina. Talvez seja mais correto pensar que escritores têm a alma livre, capaz de se deixar levar pelo sonho e viver outras vidas por meio de seus personagens. Seria a liberdade – característica essencialmente felina – um desafio para a imaginação de escritores?
Ou será que são os gatos que procuram os escritores? Há gatos que adoram livros e vivem em bibliotecas, como o gato Dewey, um filhote de pelo dourado abandonado que foi adotado por uma bibliotecária da cidade de Spencer, nos Estados Unidos e se transformou em mascote de toda a população. Ele tinha o hábito de escolher o colo de um visitante da biblioteca para dormir todas as tardes. Com um apurado sexto sentido – que todo apaixonado por gato sabe ser natural nos felinos – Dewey escolhia sempre a pessoa mais carente para mimar com seus afagos. Sua história correu os Estados Unidos e se transformou no livro Dewey – Um gato entre livros, escrito em parceria por Vicki Myron (a bibliotecária) e o escritor Bret Witter. Será que os gatos, de maneira geral, não se compadecem ao ver aquela criatura diante do teclado, em companhia apenas de seus pensamentos e letras e, intuitivamente, decidem lhe dar carinho e atenção? Será que os gatos, que odeiam a subserviência, não perceberiam nos escritores um espírito mais aberto, despojado da pretensão humana de se dominar a tudo e a todos? Ou será que os gatos simplesmente apreciam essa companhia pensativa e silenciosa, o som do teclado, o cheiro dos livros? Quem sabe? O fato é que muitas considerações filosóficas já foram tecidas sobre a atração mútua entre gatos e escritores, mas não há conclusões a respeito. Talvez este seja apenas mais um mistério felino entre tantos que vêm desafiando a imaginação humana desde o princípio dos tempos".
E fim de prosa: corra, adote um gato e escreva algumas páginas!
Imagens: Frederick, the literate, by Charles Wysock; Cabral - o gato, em dia de muita paz e O Gato Preto (aquele que não é o da Alice, portanto, não ri, apenas observa).

segunda-feira, 29 de março de 2010

A Língua de Voltaire

A marca francesa como um dos constitutivos que contribuíram para a formação da cultura brasileira ao longo do século XIX já se tornou afirmação banal. A compreensão de muito do que pensávamos – e pensamos, deve-se à cultura francesa, um misto de tradição e modernidade[1], para a qual nos voltamos em nossa tentativa de acesso ao grupo das nações ditas civilizadas. As contribuições foram muitas e em todos os campos: filosofia, medicina, geografia, literatura, tecnologia e, não menos, a moda, que fez da Rua do Ouvidor, no centro do Rio, o ponto de convergência da elite brasileira, tal a quantidade de lojas e produtos franceses ali disponíveis. Ali se falava francês, assim como na corte afrancesada acantonada nos trópicos, donde ter-se cunhado expressões tais como Paris Tropical, para se referir à capital federal e, Belle Époque Tropical[2], para tratar da virada do século XIX para o XX, em que a sociedade e a cultura na cidade do Rio de Janeiro, focavam - e copiavam - o que se produzia na capital francesa.

Em um texto de grande importância para os estudos brasileiros – O francês instrumento de desenvolvimento[3], Antônio Cândido traça o percurso do francês como língua que adquire caráter universal em fins do século XVIII e ao longo do século XIX, relativiza as línguas clássicas – o latim e o grego, na Europa, até chegar às nações sul-americanas numa época de transformação radical das visões de mundo, em que a era industrial toma forma e que, portanto, as línguas clássicas já não respondiam pela compreensão das novas fontes de cultura e desenvolvimento que se avizinhavam. O autor é enfático ao afirmar que foi “graças ao francês que pudemos ver o mundo, que adquirimos o senso da História, que lemos os clássicos de todos os países, inclusive gregos e romanos” [4].

Em se tratando de literatura lemos Goethe, Byron, Schiller, Hegel, Poe, etc., em versões francesas, incluindo-se aí, as eventuais lacunas francesas, pois, como afirma Cândido, “as traduções e interpretações eram algumas vezes deformantes e até empobrecedoras”, além do que, descobrimos o romance russo a partir de 1880, ainda que em versões francesas sofríveis, fato que os próprios franceses se encarregaram de rever por volta de 1930.

A França como pólo irradiador de cultura e modelo, ao qual nos voltamos em detrimento da cultura portuguesa, fez com que sua língua e cultura adquirissem certa “aura” de prestígio principalmente entre a elite brasileira. Evidente que diante de tal interesse os filhos dessa elite fossem desde muito cedo expostos ao aprendizado daquela que viria a ser conhecida como a língua de Voltaire. “A publicação de um livro didático, os Princípios Geraes ou verdadeiro methodo para se aprender a ler e pronunciar a Lingua Francesa, devia fazer falta na praça, pois é o primeiro do gênero que se publicou no Brasil.”, afirma Borba de Moraes[5]; Passos, em seu trabalho, A Miragem Gálica[6], destaca o fato de que a língua de Voltaire era pré-requisito obrigatório para os estudantes do Largo São Francisco ingressarem na Academia, isso em 1834. Não se pode esquecer, contudo, que também se exigia o inglês.

A universalidade da língua francesa e sua flexibilidade, já que também respondia aos anseios das classes inferiores, após o evento da Revolução, tornou-a elemento constitutivo de nosso desenvolvimento; no início do século XIX era ensino obrigatório na escola secundária brasileira. No Colégio D. Pedro II, fundado em 1837, “cujos currículos, enciclopédicos, apresentavam feição predominantemente literária” [7], o francês, desde os primeiros programas de ensino, consta como uma das principais disciplinas. Needell[8] comenta a importância da língua francesa no ensino das diferentes disciplinas ministradas no Colégio; ali os alunos manuseavam o Atlas de Delamarche, a Grammatica Franceza de Sévene, as Nouvelles narrations françaises de Filon, a História Romana de De Rosoir et Dumont, o Cours de Littérature française de Charles André, o Cours élémentaire de Philosophie de Barbe e o Manuel d’études pour la préparation du baccalauréat en lettres: Histoire de temps modernes, para citar alguns. Racine, Fénelon, Massilon, Montesquieu, Bossuet e tantos outros fariam parte dos estudos no Colégio.

A língua francesa a qual, em seu ápice na Europa, fora elevada à condição de elemento capaz de fomentar a unidade europeia, pois, segundo o excessivo Rivarol (1784) era a única que dava conta da ordem natural do pensamento, aqui ganha certa obrigatoriedade entre a elite e, depois, com a disseminação das ideias libertárias oriundas da Revolução, encontra amparo também entre as classes populares, consolidando uma galomania que se estenderá por todos os campos do conhecimento e será vista como necessária ao nosso desenvolvimento e à nossa emancipação literária. Passos, em seu estudo Panorama Cultural Franco Brasileiro[9], cita trecho de Elementos de Rhetorica Nacional, de 1869, de Junqueira Freire I (p.50-51): “Depois da gloriosa época da nossa emancipação política, têm surgido muitos gênios, mas ainda não temos completa a nossa emancipação literária. Enquanto não a tivermos, e formos obrigados a seguir um norte, sigamos a França. Porque é ela o farol que ilumina todo o mundo civilizado.”

O fato é que autores como Rousseau, Montesquieu e Voltaire adquirem foros de profetas do novo mundo[10], na esteira do que já ocorrera em Portugal, país que ostentava relativo atraso e prescindia das inovações técnicas, artísticas e científicas já em prática no ambiente europeu. Não por acaso Marmontel e Voltaire aparecem como mentores da Arcádia Lusitana.

As bibliotecas particulares e públicas eram repletas de obras em francês. A despeito das interdições da Real Mesa Censória. Rousseau, Montesquieu, La Mettrie, Diderot, Descartes, Marmontel, Bitaubé, Corneille, Racine, Bossuet, Molière, Voltaire - e tantos outros, foram presenças constantes em inúmeros inventários, fossem eles particulares ou de bibliotecas como as jesuíticas. Casos como o da biblioteca da Academia dos Guardas-Marinha, composta essencialmente por obras técnicas, indicam a língua francesa como importante instrumento na aquisição de conhecimento, pois, conforme afirma Nizza da Silva, “se tratava de uma biblioteca predominantemente francesa, quer pelos autores, quer pelos tradutores.” [11]

O hábito de ler romances que atingira Portugal no início do século XIX, chega ao Brasil junto da família real e dá novo fôlego à língua francesa. Além das leituras técnicas e de cunho político, esta, mais tarde acrescida da contribuição do ecletismo de Coussin e do positivismo de Comte, a marca francesa se solidificará no país com poetas do calibre de Musset, Lamartine e Victor Hugo.

Ao longo do século XIX a França mantém-se como pólo irradiador de ideias filosóficas e literárias que só farão integrar a literatura brasileira à francesa. É de lá a origem do pré-romantismo brasileiro, assim como é de lá que virão Musset, Vigny, Victor Hugo, Chateaubriand, Lamartine, Zola, Balzac, Dumas, Stendhal, Beaudelaire e tantos outros a saciarem o desejo do leitor brasileiro, ávido pelo que se produzia na língua de Voltaire.

Nota: Como citar este artigo:
MAGRI, D. Aspectos da presença de Voltaire nas crônicas machadianas, 368 f. Dissertação (Mestrado em Língua e Literatura Francesa) - Departamento de Letras Modernas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Modernas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 219-223.

[1] PASSOS, Gilberto P. O Napoleão de Botafogo – presença francesa em Quincas Borba de Machado de Assis. São Paulo: Annablume, 2000 (Coleção Parcours), p. 11.
[2] NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
[3] SOUZA, Antônio Cândido de Mello et al. O francês como instrumento de desenvolvimento, in O francês instrumental, a experiência na Universidade de São Paulo. São Paulo: Hemus, 1977, p. 9-17.
[4] Idem, p. 12.
[5] MORAES, Rubens Borba de. Livros e Bibliotecas no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1979, p. 137.
[6] PASSOS, Gilberto P. Op. cit., p. 59. Veja página 9.
[7] PIETRARÓIA, Cristina Casadei. A importância da língua francesa no Brasil: marcas e marcos dos primeiros períodos de ensino. ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago, 2008, p. 8.
[8] NEEDELL, Jeffrey. Op. cit., p. 78.
[9] PASSOS, Gilberto P. A miragem gálica – Presença da França na Revista da Sociedade Filomática. São Paulo: Instituto de Cooperação Interinstitucional – Inter/Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, 1991, p. 29.
[10] Idem, p. 19.
[11] SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 181.

Imagens: Rio Antigo: Avenida Rio Branco e Rua do Ouvidor; Gravura da Obra Candide, de Voltaire e pintura de Anicet Charles Gabriel Lemonnier, Lecture de la tragédie de Voltaire, l’Orphelin de la Chine, dans le salon de Madame Geoffrin en 1755, 1812, Château de la Malmaison.

terça-feira, 23 de março de 2010

O inseto voador

"Certa manhã, ao despertar de um um sonho inquieto, Gregor Samsa descobriu-se em sua cama transformado em um insuportável inseto. Deitado de costas, duras como um casco, ele viu, ao erguer um pouco a cabeça, sua barriga arredondada, pardacenta, repartida por pregas arqueadas, do alto da qual a coberta, já quase toda caída, escorregava. Diante de seus olhos moviam-se desesperadas suas várias pernas, ridiculamente finas em comparação com suas proporções de antes". Isso foi há quinze dias, ou melhor, para Gregor Samsa, foi depois de um longa noite de sono, para mim, há quinze dias que, sem querer, lembrei-me de A Metamorfose, de Franz Kafka. Não sei se exatamente por causa do inseto, que muitos dizem ser uma barata, dada a descrição do autor, mas acho que em razão da conjunção com a chuva. Explico-me: ao ir até a cozinha, ouvi a chuva que caía batendo nos vidros da janela, que ficam rente à pia, onde está o filtro d'água. Por razões que só a sinapse explica, lembrei-me do trecho em que o caixeiro viajante, amanhecido e preso no corpo de um inseto contempla a chuva: "O olhar de Gregor voltou-se então para a janela, e o tempo fechado - ouviam-se gotas de chuva batendo no peitoril de metal - deixou-o bastante melancólico". Antes que você, leitor, se perca por entre essas linhas, adianto: continuo firme sobre duas pernas, ereto qual homo sapiens moderno. A conjunção a que me referi anteriormente, completou-se com a presença de uma barata em minha cozinha. Vi-a entrar voando na noite quente e chuvosa, talvez à procura de abrigo. Embora chovesse, confesso, melancolia não senti; de fato, fui tomado pelo asco. Começou a perseguição: de chinela em punho, optei por agir lentamente, à espreita, certo de que teria à frente uma presa fácil. Engano o meu, o pequeno inseto deve ter lá seus censores. A menor aproximação e disparava pelos cantos procurando tornar-se invisível, embora os azulejos sejam brancos e ela, a barata, marron avermelhada, ou pardacenta, tal qual Gregor. Resistente em seu intuito de fazer-se imperceptível, fez-se perversa. Aproximou-se de meu filtro São João - aqueles que têm um pequeno pedestral, oco, à maneira daqueles santos usados como cofre-forte em tempos idos, nas pequenas cidades do interior. Afastei o filtro, segurei a chinela mais forte e, num só golpe, acreditei tê-la esmagado. Que nada! Seus censores pressentiram o golpe mortal, o que a fez entrar pelo oco do filtro, através da fenda que a superfície da pia proporciona.
Sonolento, desisti do inseto, tranquilo por tê-lo deixado preso. Ao encaminhar para a cama, pensei que ao menos não experimentara da sensação que tomou Brás Cubas ao lançar a toalha e desferir o golpe mortal na borboleta preta como a noite que lhe pousara na testa. Anteontem é que fui descobrir a resistência da barata. Ao mover o filtro, ela disparou em velocidade inacreditável, como se em todos esses dias de cárcere estivesse acumulando energia para a fuga final. Precavido, dei o golpe certeiro e confesso, não me aborreci feito o defunto autor, nem sequer entrei em estado de reflexão procurando razões que me desculpassem por tão certeiro golpe. Nem é preciso dizer: sonhei com barata.
No dia seguinte decidi saber mais sobre o inseto, afinal, pensei, por que razão teria Kafka escolhido inseto semelhante - se é que era realmente uma barata? Eis o que descobri:
1) Há um site que tem o nome do inseto - A Barata. As razões para isso? Bem, seu autor também menciona Kafka e afirma ser A Metamorfose uma parábola social e que, de fato, as pessoas pouco se importam com o estado do caixeiro viajante, mas sim com o impacto que seu estado causará àqueles que o rodeiam; outra razão: baratas gostam de papel, igual a escritores, donos de sebo etc (e eu que sempre adorei os gatos porque resfestelam-se sobre os livros); diz ainda nosso amigo: a barata é um ser underground, que todo poeta com ela se identifica (será?; queria poder perguntar isso ao Drummond, ao Beaudelaire -rsrsrs); e mais: barata em inglês é roach, gíria também para "bagana" - toco de cigarro de maconha - Ah! aí entendi tudo! (rsrsrs).
2) As baratas sobreviveram aos dinossauros, ou seja, foram concidadãos;
3) Conseguem sobreviver - algumas espécies, por até dois meses sem comida e, sem cabeça, por nove dias;
4) Em situações extremas, se reproduzem sem o macho;
5) Algumas chegam atingir até 10 cm;
6) Gastam 75% de seu tempo descansando (Eh, vida boa!);
7) Aqueles negocinhos do tamanho de um feijão, na verdade é um ovo e se chama ooteca;
8) Alguns machos, durante o acasalamento, estridulam emitindo sons que chegam a 60dB;
9) Nos Estados Unidos, gastam-se US$ 1,5 bilhões por ano para tentar exterminar o inseto;
10) Na alimentação humana, para muitos povos orientais as baratas fazem parte de sua dieta, sendo comidas cruas ou cozidas. No Brasil, os índios Chocleng, de Santa Catarina, apreciavam as baratas. (Eca, eca, eca, mil vezes eca!!!)
Embora repugnantes - claro, acabei por respeitá-las, porém, elas lá, em qualquer lugar, longe, bem longe da minha cozinha. E fim da prosa: reli bom trecho de A Metamorfose, de 1915, publicado originalmente na revista expressionista Weifbe Blätter, que abrigava textos da nova geração de escritores alemães como Heinrich Mann, Ernest Bloch e Rosa de Luxemburgo. A novela narra a singular história de Gregor Samsa, um caixeiro viajante que certo dia acorda transformado em inseto. Plena de significados simbólicos, a obra deu origems às mais diversas interpretações. Wladimir Nabokov, professor e escritor russo, afirma que a obra não é redutível a drama familiares do autor mas, sim, traz a expressão da tensão do artista em meio à sociedade burguesa de sua época.

domingo, 21 de março de 2010

A Exposição Brasiliana

A exposição Brasiliana Itaú, em cartaz na Pinacoteca, é inegavelmente algo suntuoso e excepcional. Destaca-se não só por sua amplitude e variedade, mas, principalmente, pela importância, diversidade e natureza das peças, inteiramente dedicadas ao Brasil, através das quais se pode recontar parte da história, da arte e da literatura brasileiras. A exposição está disposta em seis diferentes núcleos: Terra Brasilis, dedicado aos séculos XVI e XVII, com uma cartografia de encher os olhos, além de livros que tratam das terras recém descobertas, incluindo-se ai o Grande Atlas Blaeu, de 1664; o Brasil Holandês, compreende o período da ocupação do nordeste do Brasil pelos holandeses (1624 a 1654), quando o Príncipe Maurício de Nassau trouxe com ele artistas e cientistas para documentar sua estada no Novo Mundo, dentre os quais se destacam Frans Post e Albert Eckhout; o Brasil dos Naturalistas, documenta a enxurrada de naturalistas que vieram ao país logo após a abertura dos portos em 1808, por D. João VI, cujos trabalhos estavam diretamente ligados ao estudo da flora e da fauna brasileiras, dentre eles destacam-se os alemães Spix e Martius; o Brasil dos Viajantes, traz aquarelas e pinturas de Debret, Rugendas, do Conde de Clarac e de Armand Julien Pallière, algo de beleza ímpar; Rio de Janeiro, o quinto núcleo, traz as diferentes impressões dos viajantes europeus que, obrigatoriamente, faziam parada na capital do Império e deixaram registros panorâmicos inigualáveis, dentre eles há obras do italiano Eugenio Rodriguez, do espanhol Miguel Blasco, dos ingleses J. Dickson e Henry Chamberlain, do francês Debret, do suiço Frédéric Salathé e pinturas de Victor Meirelles; finalmente, o núcleo Memória da Cultura evoca grandes momentos da história e da cultura brasileiras com documentos, tratados e uma iconografia ímpar sobre a escravidão no Brasil, além, é claro, de primeiras edições de livros, cartas e manuscritos de nossos principais romancistas e poetas. Enfim, algo imperdível.
Os quinhentos metros, acho, que se percorre entre mapas, aquarelas, pinturas e objetos nos fazem percorrer, de fato, quinhentos anos de história e cultura. Cultura brasileira em parte construída por franceses, suiços, alemães, italianos e portugueses. Era o princípio e, nesses primórdios, nada mais natural que em todos os campos do conhecimento tivéssemos a presença estrangeira. Porém, logo após a Independência nasce o desejo por uma identidade nacional. algo que pudesse nos identificar e que pudéssemos chamar de nosso, só nosso. Na literatura, vamos ter José de Alencar como o principal representante, no auge do romantismo idealista de meados do século XIX, a idealizar a figura do índio nobre e corajoso, em comunhão com a natureza e amigo do colonizador como o elemento chave do indianismo, movimento literário que nasce de um nacionalismo em busca de uma identidade própria e que encontra no índio seu herói mítico.
Pensei, ao final da Exposição, se não seria essa a razão desse nosso mal psicológico, essa nossa busca obcecada por uma identidade nacional. Afinal, passou-se décadas e muito do que hoje achamos genuinamente brasileiro - o samba, a feijoada, o futebol, a capoeira etc, ainda não eram ícones nacionais. Até 1930, por exemplo, a feijoada não passava de um prato regional e o futebol era um estrangeirismo que muitos intelectuais reprovavam. Graciliano Ramos, acreditem, em crônica de 1921, se perguntava: "Mas por que o football? Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo?" e, mais à frente, sugere: "Reabilitem os esportes regionais que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira".
O fato é que em busca desta identidade passamos por várias fases: lá pelos anos 20 ainda tínhamos vergonha da mestiçagem, uma vez que estávamos impregados pelas ideias em voga na Europa, onde acreditava-se que as etnias tinham características imanentes, permanentes, isto é, não mudavam com a cultura e a educação. O francês Arthur de Gobineau, acreditava que a mistura racial era a grande causa da decadência das civilizações e da degeneração dos povos. Entretanto, ao longo do caminho, apareceu Gilberto Freyre que, ao publicar Casa-Grande & Senzala, mostrou o reverso da moeda ao afirmar que a nossa riqueza estava justamente na mistura de índios, negros e brancos. Até a publicação da obra de Freyre, aqueles que se preocuparam com a identidade nacional não foram muito longe. Ora enalteceram o índio romântico, belo e valente, a exemplo das personagens de Alencar, ora manifestaram o desejo que o povo adquirisse o máximo de cultura europeia que pudesse, enfim, uma busca pelo embranqueamento que valia fosse para o sangue fosse para as ideias. Tempos depois veio o modernismo, escritores e poetas passaram a valorizar e pesquisar o folclore e os regionalismos, na tentativa de conhecer a alma brasileira. Assim como na Europa, o nacionalismo uniu intelectuais e políticos. Segundo a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, resolvido o complexo de inferioridade do brasileiro, veio um novo distúrbio -o "complexo do Zé Carioca", isto é, criou-se uma "necessidade de cobrar uma certa singularidade local", o que levou à condenação de expressões culturais que não pareçam genuinamente brasileiras. Felizmente, antes não se pensou assim, razão pela qual, hoje, pode-se apreciar com orgulho a Brasiliana.
Notas: Imagens: 1) Engenho, Frans Post, 1668, 2) Mantiqueira, Rugendas, 3) Mapa de Pernambuco, Willem J. Blaeu, 1635, 4) São Paulo, Vista da Várzea do Carmo, Armand Julen Pallière.
. Sobre citação de Graciliano Ramos ver Milton Pedrosa, Gol de Letra: O Futebol na Literatura Brasileira, Gol, 1967, p. 167-168; sobre citação de Lilia Moritz Schwartcz ver "Complexo de Zé Carioca", Revista Brasileira de Ciências Sociais, número 19, 1995; sobre nacionalismo ver Leandro Narloch, Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, Leya, São Paulo, 2009, p. 130-136.

quarta-feira, 17 de março de 2010

"Mais c'est beau!"

Hoje, mais uma vez, caí na armadilha das chamadas pomposas. Me explico: à época em que se comemorou o centenário de Machado de Assis, vi um exemplar da Bravo cuja capa estampava o escritor em uma foto de 1890 e, ao lado, o título da matéria: As obsessões de Machado de Assis. Nada mais decepcionante - artigo para lá de chinfrim. Anunciavam novos estudos que desvendavam os temas que atormentavam o maior escritor brasileiro. Acreditem, ali não havia nada além do que a crítica repete há anos. Hoje, novamente, caí no engodo da primeira página. O título? Rubem Fonseca sai da reclusão para promover livro de escritora-pupila. Pensei cá com meus botões: Puxa! Nem sabia que o homem estava recluso! Bem, de posse da Folha, vou eu à procura da Ilustrada e - não, não pode ser! Duas míseras e minúsculas coluninhas dizendo que Fonseca virara criança para promover sua escritora-pupila. Ao fim da leitura conclui que o jornalista se enganara, trocara criança por senil. Mas vamos aos fatos: a escritora-pupila trata-se da carioca Paula Parisot, famosa no mundo da moda como designer de bolsas e que agora investe na carreira literária. Para promover seu livro Gonzos e Parafusos (Ed. Leya), a escritora está há seis dias vivendo em um cubo de vidro montado dentro da Livraria da Vila. Ali, Parisot, performática, ensaia choro reproduzindo a clínica de repouso descrita em seu livro. Fonseca, nada criança, mas sim tentando se comunicar com uma criança, faz biquinho e diz: "Chora não, meu bem, chora não". (Eu, então, provo que Barthes estava certo ao tratar da morte do autor; me transformo em leitor-autor e, a partir da informação de que Fonseca pegou uma fatia de pão e tentou fazer sua pupila comer, já descrevo a cena: "Bilu-bilu, olha o aviãozinho. Tome (come) neném, tome, sinão neném não vai clescê! ). Próxima cena (esta descrita pelo autor da matéria): Fonseca, ao notar um fotógrafo tem a esperada reação da celebridade com a burra já cheia do vil metal: "Porra! Puta merda! Estragou meu dia". Reação oposta àquela que busca sua pupila. Puxa, deviam ter se falado, sei lá, combinado, ensaiado tudo antes! Afinal, uma reação dessas pode afugentar os fotógrafos e jornalistas e aí, como ficam as vendas? Enfim, o assunto era tão interessante, mas tão interessante que, num flash (Não me perguntem por que meu cérebro produziu tal sinapse!), me lembrei das histórias que li sobre a vinda de Anatole France ao Brasil. Curioso, naquela época (1909) com uma imprensa e meios muito mais modestos, não se faziam performances e, ainda assim, os leitores assediavam os escritores, ao menos, assim foi com Anatole France.
Anatole chegou em 17.5.1909 a bordo do navio Amazon. Estava a caminho de Buenos Aires e Montevidéu e só na volta deveria visitar o Brasil. O navio chegou à noitinha e o repórter do Correio da Manhã, Luís Fernando, na manhã seguinte já relatava sua malograda entrevista com o escritor. Na verdade, ao chegar a bordo já encontrara alguns membros da Academia Brasileira, entre os quais Filinto de Almeida, que tentavam se aproximar do escritor. O repórter interroga o comandante e descobre que o escritor está doente, porém, como bom jornalista, descobre o camarote onde ele estava e empurra ousadamente a porta. O repórter se apresenta e Anatole, gentil, diz: "Ah! Perdoai-me receber-vos assim... Mas uma súbita indisposição....". O escritor tem nas mãos o quarto volume de Grandeza e decadência de Roma, de Ferrero. Não dá qualquer declaração ao repórter. Diz apenas que sofria muito e em seguida, leva a mão esquerda à testa sorrindo e diz: "Vá-se embora". Como se vê, reação bem menos contundente que o nosso Fonseca. Mas, convenhamos, eram outros tempos!
Na manhã seguinte a mesma comissão de imortais que estivera a bordo convida Anatole a dar um passeio pelo Rio. Anatole aceita e depois é conduzido ao Hotel dos Estrangeiros, onde almoça e se encontra com Rui Barbosa, em seguida, conhece a Biblioteca Nacional e vê o raro exemplar da Bíblia de Gutenberg, jóia da instituição.
De regresso de Buenos Aires, a 22 de julho, aporta novamente no Rio e em 4 de agosto embarca para São Paulo. Em São Paulo, visita escolas, o Museu do Ipiranga, a Faculdade de Direito e instituições culturais. Em todos os lugares, nada de aparições performáticas. Seu Lys rouge e seu Thaïs já eram apreciados por todos.
Uma tarde, foi contemplar o panorama da cidade de um mirante em Higienópolis, num suave pôr-do-sol, quando acendiam as primeiras luzes. Mostrou-se encantado, deixando escapar: "Mais c'est beau!". Alfredo Pujol, que o acompanhava, teria lhe dito: "Como poderia achar bela a paisagem paulistana, depois do esplendor do Rio? Ao que o escritor respondera: "O Rio é grandioso, é bonito demais. Para o meu temperamento este é o tipo de paisagem que convém". Belos tempos aqueles em que não se precisava ficar recluso ou preso em um cubo para despertar o interesse do leitor. Talvez houvesse mais matéria, digo, mais contéudo, menos fotos, menos performances... Mas, enfim, bilu-bilu, é preciso nos atualizarmos!

Notas: Dados a partir de Brito Broca, A Vida Literária no Brasil 1900; caricatura Anatole France, de Lauro Ribeiro da Silva (Ribs), publicada no jornal A Tribuna, de Santos, na matéria Santos noutros Tempos, edição de 10 de maio de 1953 e caricatura de Anatole por Gustave Leroux.

domingo, 14 de março de 2010

Bibliotecas e o conhecimento democratizado

Há poucos dias comentei aqui sobre bibliotecas, inclusive citando a opinião de jovens que as consideram espaço destinado ao acúmulo de poeira. Concordei com a opinião, nem tanto pela poeira - apesar da alergia, mas principalmente porque não se esqueceram de mencionar a desorganização do acervo e o despreparo dos funcionários. Concordei, sobretudo, porque me lembrei das inúmeras visitas que fiz à bibliotecas públicas. Hoje, porém, li uma matéria no Estadão (de ontem) sobre a Biblioteca Pública de Nova York. Mas antes, leitor, se alguém lhe perguntasse qual a possível relação entre a crise financeira do ano passado e as bibliotecas, o que diria? Talvez que as bibliotecas sofreram com falta de verbas e por isso deixaram de ser reformadas ou restauradas? É possível, haja vista a Biblioteca Mário de Andrade, com sua reforma interminável, embora a crise por aqui não tenha passado de uma marolinha. Lá, nos Estados Unidos, pasmem, elas, ou melhor, ela, a Biblioteca Pública de Nova York, não só foi restaurada como também teve importante papel durante o desenrolar da crise.
Inacreditavelmente, a Biblioteca de Nova York recebeu mais visitantes que todas as outras atrações culturais e esportivas somadas ao longo do ano de 2009. Não que a recessão e o desemprego tenham transformado o nova-iorquino num admirador dos livros e amante das artes e da literatura, mas a Biblioteca tornou-se um porto seguro. Ali foi possível, em pleno inverno, enfrentar o desemprego no calor aconchegante de uma sala de leitura e, de quebra, economizar com a conta de aquecimento a óleo. Momento de crise e necessidade urgente: encontrar um trabalho. A atualização do curriculum? Podia ser feita com a ajuda de um funcionário da Biblioteca, treinado em escrever curriculuns e expert em informar quais áreas estavam contratando. Com os pais desempregados, vieram as crianças às bibliotecas e, como se sabe, é de pequenino que se torce o pepino. Enfim, a Biblioteca de Nova York adaptou programas para ajudar a população a enfrentar a crise.
Essa é uma parte da história da biblioteca. A outra deve-se a Pierre LeClerc, acadêmico especializado em literatura francesa e à frente da Biblioteca há dezesseis anos. LeClerc é uma das personagens centrais ligadas à transformação da Biblioteca. Ele esteve à frente de importantes decisões, de debates filosóficos, jurídicos e tecnológicos para a digitalização do acervo da Biblioteca. Segundo o artigo que leio, a galeria digital da Biblioteca é um sucesso. A quantidade de acessos é de cair o queixo: mais de 7 milhões de vezes por mês, sendo que os internautas podem baixar qualquer uma das 700 mil imagens de domínio público para fins não comerciais. Em associação com o Google, a biblioteca já disponibilizou mais de 300 mil livros em domínio público. E algo interessante: a Biblioteca faz empréstimos digitais. Ano passado "emprestou" mais livros que qualquer outra biblioteca americana, cerca de 350 mil títulos, para leitores de 220 países. O internauta usa um software para baixar o livro na íntegra e a obra desaparece no fim de três semanas. LeClerc admite o problema do copyright, mas salienta que esta questão é negociável e vai mais além, preocupa-se com um dilema que a cultura enfrentará daqui para frente: a preservação. Afinal, qual a tecnologia digital que se mostrará duradoura e economicamente viável para preservar o acervo já existente. E outra questão que ronda os países desenvovidos e, inclusive o Brasil: como preservar a informação produzida de forma digital? Não são questões para o futuro imediato, mas que se encaminham para o próximo milênio. Por fim, questiona LeClerc: "Vivemos num ambiente em que a informação já nasce digital. Então, como preservar esta cultura? Como é que uma pessoa que tenta escrever a história social e econômica do seu país ou do meu vai encontrar a informação?" Resignado diz: "O fato é que não temos solução para este problema." Com isso, LeClerc volta-se às bibliotecas e conclui: "Há cinco mil anos não inventam lugar melhor do que a biblioteca para democratizar o acesso ao conhecimento".
Nota: Site da Biblioteca Pública de Nova York: www.nypl.org.
Imagens: 1. Salão de leitura da Biblioteca, hoje chamado de Rose Reading Room, em homenagem ao casal de filantropos, Frederick e Sandra Rose, que bancaram sua restauração em em 1998; 2. Vista da Biblioteca a partir de cartão postal antigo.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Madame du Châtelet

Nesta semana, dia 8, comemorou-se o Dia Internacional da Mulher. Embora com atraso, aqui vai minha sincera homenagem, a história de uma mulher brilhante para sua época - Gabrielle Émilie Le Tonnelier de Breteuil, marquise du Châtelet. Deixe de lado a pompa e a nobreza do nome. Era comumente conhecida por Émilie du Châtelet ou Madame du Châtelet. Nasceu em Paris, em 1706, e morreu jovem, em 1749. Porém, ficou conhecida por ser uma intelectual sensual, que amava os livros, os diamantes, a álgebra e a física. Em geral, é tratada pelos biógrafos ora como mathématicienne, ora como physicienne. Teve a sorte de viver em um ambiente liberal. Era bastante instruída e amava as ciências. Estudou matématica e traduziu os princípios de Newton, acrescentado a eles comentários de álgebra. Desde menina, teve contato com os poetas Jean-Baptiste Rousseau e Fontenelle, no salão de sua família, em Paris. Deve a seu pai uma educação que raramente era dada às meninas. Ele lhe ensinou latim, grego e alemão. Como o pai também mostrava talento para a música, ela aprendeu a tocar cravo, amar a dança e o teatro. Amava a vida e os prazeres que ela oferecia, por isso se deu ao luxo de cometer extravagâncias. Tinha certa queda por roupas, sapatos e jóias. Casou-se aos dezenove anos com o marquês Florent Claude du Chatelet (ou Chastellet), porém, seu marido a deixa viver livremente, talvez por ter se dado conta de suas próprias limitações e por ter reconhecido as capacidades intelectuais da mulher. Devido à carreira militar, o marido a vê raramente. Nada mais compreensível que tivesse vários amantes. Voltaire foi, sem dúvida, o mais influente, encorajando-a a aprofundar seus conhecimentos de física e matemática, para os quais, reconheceu, ela tinha habilidades especiais.
A essa época, a palavra cientista não existia, mas, efetivamente, Madame du Châtelet, foi uma das primeiras mulheres a manter documentação capaz de comprovar sua atividade e ser assim chamada. Isso não significa que não tenha havido, antes, mulheres com pendor para as ciências. Basta lembrar-se da trágica morte de Hipátia, na antiguidade.
Émilie du Châtelet estudou Leibniz e manteve contatos com Claurault, Maupertuis, König, Bernoulli, Euler, Réaumur e muitos outros, aos quais se pode creditar o surgimento das ciências exatas, termo ainda inexistente à época. Atuante, quando começou a tradução Principia Mathematica, de Newton, foi visitar Buffon. Conheceu Voltaire, em 1734, quando ele tinha caído em desgraça na corte e se ausentado de Paris para viver seu inferno astral em Cirey. A relação dos dois durará por quinze anos. Voltaire incentivou-a a traduzir Newton, ressaltando a importância da liberdade de pensar por si mesmo.
Ela entrou na vida de Voltaire em momento em que ele precisava de um porto seguro. A perseguição era um hábito na França desses dias. A justiça e seus ministros tinham decidido perseguir Voltaire. O arcebispo de Paris, Vintimille, "que amava apaixonadamente as mulheres e detestava os filósofos", se queixa com o responsável pela polícia de Paris de um certo Epître à Uranie, de autoria de Voltaire. Falava-se também de uma epopeia sobre a virgem d'Orléans, que era um escândalo sem igual. Voltaire foi ameaçado; se o poema viesse à tona, seria enterrado em uma masmorra. Para Voltaire era inconveniente ter vocação para o apostolado quando não tinha sequer a de mártir, já que desejava viver e pensar livremente e não habitar a Bastille. Madame du Châtelet lhe oferece abrigo em seu castelo de Cirey, perto da fronteira, a alguns passos da Lorraine, onde seria fácil conseguir refúgio em caso de perseguições. Ele, claro, aceita e aí passa quatorze anos em estreita intimidade com a dona da propriedade.
Foi uma longa ligação, porém, não menos tempestuosa. A agitação de Voltaire e o "temperamento de fogo" de Madame du Châtelet eram o combustível para faíscas frequentes e, quando havia hóspedes, recorriam ao inglês para se insultarem. Eram ativos e sem algum rancor. Cirey tornou-se um laboratório, um reduto da química. Voltaire e Madame du Châtelet se separavam todos os dias para fazer suas experiências ou para escrever. Eles concorrem entre si, sem que um não saiba sobre o outro, a um prémio dado pela Académie des Sciences sobre a natureza do fogo. Madame du Châtelet coloca tanto calor ao escrever seu estudo que, não raro, precisava se acalmar e mergulhar os longos braços em água fria. Ali, em Cirey, Voltaire escreveu os Éléments de la Philosophie de Newton e inúmeras outras obras. Matemáticos como Claurault e Maupertuis visitam os dois confrades. Admiram o ambiente simples e elegante do lugar, porém, a vida ali girava em torno do trabalho, das leituras, dos estudos e da ciência, capitaneados por Voltaire e pela não menos interessante e notável Madame du Châtelet.


Nota: Madame du Châtelet e Château de Cirey, litografia da época.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Je ne fay rien sans gayeté

Aqui estou eu a bater na mesma tecla. Quem conhece Mindlin, ao ler o título - pimba!, já matou a charada. Hoje não falo dele, mas da Brasiliana, a jóia que aprimorou ao longo dos anos, pacientemente. Me permitam bater nessa mesma tecla porque, longe de parecer repetitiva e enfadonha, ela rende muito. A empatia que temos por alguém, às vezes é obscura e não sabemos muito bem explicar o porquê. O fato é que vem, assim, do nada. Há casos, porém, em que as causas da empatia, a exemplo do que dizia Mindlin sobre os livros, é uma atração multiforme. Para um amante de livros, por exemplo, a coisa funciona da mesma maneira, ou seja, se o fulano também gosta de livros, isso já é razão suficiente para olhá-lo por outro viés, mesmo que você goste do azul e ele do amarelo, o que importa é que ambos apreciam os livros. O livro exerce uma sedução que vai muito além da leitura, embora seja este o ponto de partida. Compra-se livros também pelo prazer de tê-los à mão, pelo interesse em ter à disposição uma obra reconhecidamente de qualidade ou pela satisfação de possuir toda a obra de um autor de quem se gosta, e por aí vai. Mindlin, o fez por todas essas razões e também pelo gosto peculiar de poder garimpar uma primeira edição ou algo raro. É sabido que se deixava seduzir pelo livro enquanto objeto - objeto de arte, pois analisava e prezava as ilustrações, o papel, a qualidade do projeto gráfico, a encardenação etc. Tudo isso fez com que Mindlin formasse a Brasiliana, uma biblioteca enorme cujo nome dispensa explicações. Hoje, a Brasiliana passa por processo de digitalização e está à disposição de qualquer internauta, basta clicar http://www.brasiliana.usp.br/ . É um prazer navegar pelas páginas de livros raros e antigos. Ali é possível encontrar preciosidades e também livros anotados e ou autografados de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Machado de Assis. Um deleite!
Pensando nos livros, resolvi pequisar na rede o que pensam os internautas sobre bibliotecas. Descobri que nas instituições privadas, para atender os requisitos do MEC, não é incomum a compra de livros “por metro”. Li também que, em geral, vale a ideia de que excelentes bibliotecas contribuem para que o ensino superior consiga atingir excelência em investigação e docência. Esse é provavelmente o pensamento de alguém envolvido com livros e, talvez, universidades e escolas. Descobri ainda o que pensam os mais jovens (uma minoria, espero!): “Boa parte das bibliotecas são espaços onde sobram poeira, desorganização do acervo e servidores desestimulados". Estão errados? Certamente não. Basta visitar algumas das bibliotecas públicas. Digo isso porque me lembro das visistas que fiz à Biblioteca Kennedy, em Santo Amaro - experiência desanimadora. (E a Mário de Andrade, que vive eterna reforma?)
Porém, há internautas que afirmam ser a presença ubíqua do livro importante para sedimentar o hábito da leitura, algo em que acredito piamente. Só nos tornamos íntimos daquilo que podemos ver, tocar ou que está à nossa volta. O mundo moderno é ágil. O apelo audiovisual é quase irresistível, porém tudo é visto e experimentado muito ligeiramente, não se aprofunda. Uma vez morta a curiosidade, um outro clique, um segundo fugaz e, no momento seguinte a informação anterior já está na lixeira, não repousa no cérebro. A leitura, esta, requer um ritual próprio, exige concentração. Ainda que, às vezes, dispense o ambiente, é preciso se deixar cativar, tal qual aquela história do príncipe e a raposa. Exige tempo e o amanhã jamais será igual depois de uma centena de páginas lidas, viajadas, vividas e aprecidas.
Mas, divagações à parte, voltemos à Brasiliana. Ali, em meio a exemplares luxuriantes, há um espaço para comentários, que vêm de todas as partes do país. Um, em especial me chamou a atenção: "Sinto-me orgulhoso de ser brasileiro a cada vez que ouço falar de Mindlin. Esteja em paz". Parece clichê, mas acho que não, foi verdadeiro. Mindlin foi um herói para poucos, para privilegiados e interessados. Sobreviverá, ao contrário de tantos outros heróis momentâneos e midiáticos. Afinal, em vida, mirava-se em Montaigne e como ele afirmava: "Je ne fay rien sans gayeté". E faz o que gosta, perdura!


Nota: Ex Libris de Mindlin: Je ne fay rien sans gayeté (Eu não faço nada sem alegria).

sábado, 6 de março de 2010

A Expedição Langsdorff

Hoje vê-se o mundo das alturas. A tecnologia dos satélites nos permite explorar os confins do globo sem que precisemos abandonar nosso cantinho e o conforto que ele proporciona. Poderia esquadrinhar cada trecho deste imenso país, se quisesse, através da internet, ver imagens no Google e outras possibilidades tantas - como aquela ferramenta que permite ao usuário caminhar pelas ruas como se ali estivesse. Formidável! Mas não, enfrentei a chuva que caia pela manhã e fui ver a exposição Expedição Langsdorff, uma das mais importantes expedições científicas do século XIX, composta por desenhos e aquarelas de Johann Moritz Rugendas, Aimé-Adrien Taunay, Hercules Florence e mapas de Néster Rubtsov. Hoje, quando se apreende imagens por celulares ultra potentes e câmeras digitais não menos frágeis, é emocionante ver uma paisagem desenhada há quase dois séculos que, dado seu valor histórico e artístico, nos leva a pensar na emoção do artista ao desbravar a floresta e conhecer povoados quase que inexplorados. Sentiriam eles algo diferente? Ou o registro que faziam era puramente técnico? Questões e respostas à parte, o valor da exposição está em nos trazer aspectos da natureza e dos habitantes que compunham nosso território há cerca de dois séculos atrás, verdadeiro panorama de nossa flora e fauna. O Brasil, como se sabe, tornou-se objeto de desejo de pesquisadores europeus, logo depois que D. João VI abriu os portos às nações amigas, o que para muitos, ironicamente, dizer nações amigas equivale a dizer, de fato, Inglaterra. Mas isso é assunto para outra prosa. O fato é que o Brasil era um território inexplorado aos olhos da ciência, um paraíso repleto de uma diversidade ainda intocada. O barão de Langsdorff, integrante da expedição, fez exatamente o que outros tantos europeus fizeram: desbravou matas, colheu amostras e registrou conhecimento.
Com o apoio do governo russo, mais precisamente do Czar Alexandre I, Langsdorff deu início a sua expedição, em 1821. Com ele vieram pesquisadores de diversas áreas: botânicos, cartógrafos, zoólogos, etc. Fora a catalogação e anotações estritamente científicas realizadas pelos cientistas, havia o registro feito em desenhos e aquarelas realizadas por artistas como Rugendas, incumbido de retratar as paisagens, seus habitantes e seus costumes. O alemão, entretanto, se desentendeu com Langsdorff e partiu precocemente. Seu posto foi assumido por Aimé-Adrien Taunay, que se destacou pela aguda observação dos povos indígenas. Taunay, penso, também não aguentou o peculiar humor de Langsdorff e decidiu partir. Hercules Florence foi então contratado como segundo desenhista e produziu os registros de maior precisão e rigor científico.
Georg Heinrich von Langsdorff, e sua expedição, se embrenhou por 17 mil km do território nacional, quando o país ainda era praticamente uma gigantesca floresta, numa época conturbada, entre 1821 e 1829, quando D. João VI abandonou o Brasil e D. Pedro I, na condição de princípe regente, assumiu o país e proclamou a sua independência de Portugal. A exposição que conta a aventura da expedição Langsdorff é composta por 120 aquarelas e desenhos e 36 mapas que foram produzidos durante a viagem desses desbravadores que percorrem, em geral por rios, as províncias do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, de São Paulo, do Mato Grosso, do Amazonas e do Pará. No caminho, o território pouco explorado ofereceu perigos aos cerca de 40 integrantes da expedição. Taunay, filho do pintor Nicolas Antoine Taunay (da Missão Artística Francesa) e tio do influente Visconde de Taunay, em outubro de 1827, depois de se desentender com Langsdorff, deixa Cuiabá e parte rumo ao Rio Amazonas com um grupo liderado pelo botânico Ludwig Riedel. Poucos meses depois, Taunay, ansioso, tenta atravessar o Rio Guaporé sozinho, montado em um cavalo. O animal se desequilibra e cai na água. O artista é mordido por peixes e morre afogado. Nos últimos anos da expedição, o próprio Langsdorff contraiu uma doença desconhecida, que causava surtos passageiros, durante os quais ele perdia a noção de tempo e espaço. Diziam que tinha enlouquecido.
Langsdorff devia ser mesmo difícil, pois durante a viagem, quando Rugendas o deixou e retornou à Europa, levou consigo boa parte de sua produção, dizem, cerca de 500 gravuras. A outra parte do acervo da expedição foi encaminhada à Rússia, onde ficou perdida até 1930, quando foi encontrada nos porões do Museu do Jardim Botânico, em São Petersburgo. Hoje, os trabalhos pertencem ao Arquivo da Academia de Ciências da cidade e estão expostos pela primeira vez no Brasil. Entre as 120 peças reunidas na mostra Expedição Langsdorff estão obras inéditas como as aquarelas Sagui-de-cara-branca (1823), de Rugendas, Sebastiana, Filha da Mestiça Francisca de Sales e de um Branco (1927), de Taunay, e Mulher e Criança Manduruku, de Florence. Todas destoam do registro de paisagens ou cotidiano costumeiramente feito na época, apesar de elas também fazerem parte do acervo da exposição. Langsdorff escreveu sua aventura em diários, os quais foram publicados, em três volumes, pela FIOCRUZ.
Embora chovesse muito, me esqueci da chuva e, por uma hora e meia, cruzei rios, cascatas, vilarejos; vi pessoas, animais, pássaros, paisagens... e não foi das alturas!
Nota: Gravuras de Aimé-Adrien Taunay, junho de 1827, Palmeiras denominadas "buritis", desenhadas em Quilombo, distrito de Chapada; de Hercule Florence, onça aos seis meses e vista de Santarém, sobre o Tapajós, tomada do lado oeste, de agosto de 1828.

quarta-feira, 3 de março de 2010

José do Patrocínio: tribuno e visionário

Tudo bem que foi Santos Dumont o primeiro a decolar a bordo de um avião impulsionado por um motor a gasolina. Em 23.10.1906, o mineiro de Palmira, Minas Gerais, voou cerca de 60 metros a uma altura de dois a três metros com sua aeronave, o Oiseau de proie. Bem, isso foi na Europa, Campo de Bagatelle, Paris. Aqui no Rio, em condições muito mais difíceis, José do Patrocínio, também teve lá suas ideias mirabolantes e, longe de um nome pomposo, preferiu idealizar o Santa Cruz, um dirigível capaz de cruzar o Atlântico. Em A Conquista, de Coelho Neto, há trecho de uma palestra de Patrocínio, onde ele revela seu grande segredo: resolvera o problema da direção dos balões. Diante da incredulidade dos amigos, Patrocínio continua: "Tenho estudado a questão com empenho e posso exclamar: Eureka! Trabalho lentamente, porque aqui no Rio de Janeiro não há um fundidor que execute um molde perfeito. Dá-se-lhe um desenho e o bruto faz coisa inteiramente diversa. E a gente que se lembre de protestar. Vocês sorriem? Pois sim... Eu hei de rir lá de cima, quando, depois de meu banho frio e de um cálice de conhaque, sair daqui no meu balão, às seis da manhã, para almoçar às onze em Lisboa".
Você, leitor, pode estar se perguntando: mas José do Patrocínio, o admirável e eloquente tribuno negro, às voltas com um balão? Pois é. Aí vai a história que colhi com Brito Broca. Patrocínio foi um dos mais atuantes abolicionistas. Vivia sob o ardor do romantismo, portanto, suas ações eram muito mais ditadas pelo coração que pela razão; sendo assim, era temperamental, instintivo, sentimental e de índole boêmia e desregrada. Em 13 de maio de 1888, o povo delirava em torno dele, em efusão. Dizem, nunca alguém havia sido tão aclamado no Rio de Janeiro. Broca relembra que na noite de 13 de maio, enquanto os fogos espocavam, alguém lhe disse: "Que belo dia para morreres, Patrocínio!"
Acontece que, finda a luta, Patrocínio tornou-se um herói em disponibilidade. Precisava de algo ao qual pudesse dirigir sua luta; aderiu à República alegando que, de fato, nunca fora monarquista. Porém, dois anos depois, Floriano Peixoto o deporta, junto com outros insubordinados, para os confins da Amazônia. Regressa ao Rio doente; tenta se adaptar à situação vigente e então defende Prudente de Morais, a quem passa chamar de "o santo varão", por considerá-lo o restaurador da ordem civil. À época o romantismo estava em franco declínio, assim como a boemia; o jornalismo já demandava outras estratégias e se transformava, atendendo às solicitações do público. Patrocínio não encontra mais emprego e se deixa flanar pela boemia, ora nas mesas de café, ora atrás de um bom cálice de vermute ou ainda nas rodinhas de amigos. As dívidas, que nas épocas áureas eram pagas pelos amigos, agora, ido o herói, ficavam entregues ao próprio. O jornal que fundara, Cidade do Rio, e que tivera grande importância durante a campanha abolicionista, já não mais interessava ao público. Em 1900, o jornal estava instalado na Rua Sacramento, 8, centro do Rio. Logo depois, por falta de pagamento, começou a ser impresso em lugares diferentes, alternadamente, donde logo surgiu a piada: já não mais se tratava da Cidade do Rio, mas sim, da Cidade Errante. O jornal morre, finalmente, na Rua do Rosário. Mas o fato é que, ainda durante a campanha abolicionista, Patrocínio já dizia aos amigos que tinha a ideia de construir um dirigível, como ainda não se conhecia, e que seria a maior conquista do século XX. Voltava agora, na decadência, ao sonho de outrora, acreditando que o invento pudesse trazer de arrasto a aclamação popular e a alcunha de herói. Na solidão de Inhaúma, numa espécie de hangar, dedica-se inteiramente à construção da aeronave, que seria chamada de Santa Cruz. Ainda segundo Brito Broca, muitos foram os amigos que se interessaram pelo invento: Nilo Peçanha, Germano Hasslocher, Barbosa Lima e até o presidente Campos Sales foi ver de perto o esqueleto do aparelho. Como o tempo passou e Santa Cruz, o balão, não subiu, começaram as piadas pelas mesas de café. Patrocínio foi acusado de usar o pretexto da invenção para obter dinheiro, uma espécie de apoio, o que hoje curiosamente também chamamos de patrocínio. Anos de boemia e de uma vida desregrada trouxeram consigo a doença e, logo, dias de penúria. Enfermo e esquecido pelos amigos, só lhe restou como renda a colaboração semanal para A Notícia. Quando o estado de saúde é grave, é o filho, Patrocínio Filho, o Zeca, quem escreve e leva para o jornal dizendo que foi o pai quem ditara por estar impossibilitado de escrever. Não se sabe se o diretor d'A Notícia acreditava, o fato é que Zeca era uma exímio pasticheur e sabia muito bem imitar o estilo do pai. No dia em que partiu, entretanto, Patrocínio insistira em escrever o folhetim, porém, o papel escapou-lhe das mãos e foi obrigado a interromper - para morrer. Morto o herói, a carcaça do Santa Cruz foi vendida em leilão para o ferro-velho, depois que um engenheiro, encarregado pelo governo, atestou que o invento estava inacabado e não tinha qualquer valor. Bela história. Daria um belo filme.