Revista Philomatica

quinta-feira, 30 de março de 2017

Best Sellers na Era do Caos

La barbe! Hiperbólicas, as manchetes dos jornais e sites de notícias, às vezes, não produzem o efeito desejado e cansam o leitor. Polêmica, a personagem que protagonizou o obituário da semana polariza opiniões, embota os espíritos e me faz tomar o ensaio de Adorno por Evangelho.
“Vigiai pois” alertava o profeta; contudo, o filósofo nos recomenda vigilância aos conceitos já corrompidos pelo uso. A crítica, no caso, deve apontar o malogro daquela ideologia que precisamos para viver, visto que toda ela - ou todas elas - é inverdade, falsa consciência e mentira. Talvez esteja aí a razão de eu não mais me surpreender com a intelligentsia silenciosa aos feitos heroicos de grandes líderes, sobretudo quando estes envolvem paredões e valas comuns. Digo isso por dizer, mas, lá no fundo, o ruído desse silêncio continua a me incomodar.
Folheando livros, vejo a página mas não enxergo a escrita. Dependo da memória que, providencial, traz-me ao espírito Giambattista Vico. Profeta, Vico postulou um ciclo composto por três fases: teocrática, aristocrática e democrática; após esta última predisse o caos. Vivemos o caos, meu amigo. Contudo, manso leitor, se deitares os olhos em direção à capital, viverás a dúvida, porque verás que tua alma hesitará entre o circo e o presídio à espera de que alguém escolha a lona ou a grade.
Perdoem-me a escorregadela pela politicalha. Ocupemo-nos de livros. Há tempos participei de uma palestra com Pierre Rivas. A conversa girava em torno da decadência da cultura francesa, o que foi prontamente negado por Rivas. Não bastasse isso, o professor disparou contra o provincianismo americano e questionou a ousadia de eles levarem tal discussão às páginas da Time. Conversa vai, conversa vem, Rivas reitera o que todo mundo já sabia: para a crítica francesa, escritor que vende é maldito, é algo suspeito. A prosa continua, certo farisaísmo vem à tona, e Rivas o credita aos yankees. Tupiniquim: ouvi, refleti, ponderei.
Tudo isso porque hoje não me escapou uma arraia-miúda trazida por um site páginas e páginas em scroll-down (acho que antes dizíamos rodapé ou rez-de-chaussée): “Clássico da literatura, ‘O Pequeno Príncipe”, inspira aniversário de 1 ano”. É certo que ao dizer aquilo Rivas jamais pensara em Exupéry. Daí o risco das generalizações, haja vista o diabo morar não só nos detalhes, mas também nas exceções.
Também houve um tempo em que a obra de Exupéry era o livro de cabeceira das misses. Sim, aquelas que, entrevistadas, não só diziam almejar a paz mundial, mas declaravam ser O Pequeno Príncipe seu livro preferido. Face a essa predileção, parte da crítica e do grande público relativizou a obra de Exupéry.
Lançado em 1943, O Pequeno Príncipe é ainda o segundo livro mais traduzido no mundo - só perde para a Bíblia. Há pouco, em domínio público, tornou-se a iguaria das editoras. Traduções de traduções apareceram às tantas. Mas isso é coisa do mercado livreiro. O mercado da literatura quase sempre independe - ou ignora - a intelligentsia. Magoada, talvez, esta sempre o rotulou O Pequeno como autoajuda. Mas o fato é que a obra é plena de robustas metáforas. Tome-se o diálogo entre o menino e a serpente e eis que intertextualmente mergulhamos no Novo Testamento.
A crítica estrangeira, contudo, tratou-o respeitosamente. Em resenha para o New York Harold Tribune, em 1943, P. L. Travers, autora de Mary Poppins, talvez tenha sido uma das primeiras a reconhecer o valor literário da obra. A crítica também se ateve à qualidade e à delicadeza das aquarelas, outro talento do autor. Muitos chegaram à conclusão de que não se tratava de uma obra destinada à crianças, mas a adultos, tal a sua complexidade.
Na Europa, a obra foi vista como alegoria da guerra que a consumia. Remando contra a maré, Heidegger, ao referir-se ao livro, tratou-o como o seu “livro favorito”. Ainda, outros críticos viram nele traços existencialistas ao justapô-lo ao Estrangeiro, de Camus.
O universo de Exupéry, quando transposto a uma festa de criança, deve funcionar muito bem, senão não o fariam, mas isso só prova duas coisas: Rivas estava errado ao menosprezar os best-sellers e o dito de Harold Bloom se faz ainda mais atual: “tornou-se cada vez mais difícil ler em profundidade à medida que este século envelhece”.


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terça-feira, 28 de março de 2017

O Little Boy carioca: tragicomédia e catarse

Há um pequeno grande livro que constitui a base dos estudos de teoria literária: a Poética, de Aristóteles. E está lá na Poética: “A comédia é uma imitação de caracteres inferiores, não contudo em toda a sua vileza, mas apenas na parte do vício que é ridícula. O ridículo é um defeito e uma deformação nem dolorosa nem destruidora [...]”.
Por que exumar um filósofo do século IV a.C. nesse espaço dedicado ao frívolo? Ora, simplesmente porque se recebe a influência do tempo e não se lhe impõe. E a pantomima do Little Boy carioca, desde que veio à tona, ora teve ares de dramalhão mexicano, ora de comédia barata - como dizemos aqui nos rincões - sem, evidentemente, qualquer menção ao orçamento, mas à qualidade do mythos (enredo) - demasiadamente simples - e à performance do protagonista.
E já que navegamos por mares helênicos, por que não falar da catarse, acompanhada de um sorriso desbragado, que inundou a alma dos brasileiros ao longo da semana? Ainda não ligou os pontos, caro leitor? Pois vá lá uma ajudazinha: quem dentre vós, ó mortais, não vistes nos telejornais Little Boy aos gritos esperneando dentro de uma ambulância, acompanhado pelas carpideiras da família? Aquilo confundiu os gêneros (falo dos literários: comédia, tragicomédia, dramalhão made in Mexico...) e os sentidos. Foi tudo tão sinestésico!
Tudo isso porque nosso herói confundiu as bandeiras públicas e particulares. Little Boy recebeu a polícia logo no café da manhã por haver praticado o escambo. Coisas de garotinho, brincadeira inocente de criança que, não se sabe bem o porquê, lhe rendia uns trocados e algum poder.
Rosinha, Ms. Little Boy - creio eu - contabilizava o vil metal, mas jura retidão, afirma que seu deus não faz obras pela metade e credita tudo o que possui às bênçãos do altíssimo. E mais: em consonância à regra geral das raposas pegas em assalto aos galinheiros, alegou não saber de nada. Nunca soube, nem ela nem Little Boy; mas o fato é que ele, espertinho, comprou votos fazendo uso dos tais chequinhos e deu no que deu.
À mesa, saudável, Little Boy sorvia o café e apreciava as ondas que se desdobravam na orla carioca. Chegados os pretorianos, o pequeno cai doente.
Enquanto a pègre aguarda dias para adentrar nos hospitais públicos, Little Boy furou fila e teve direito a um quarto só para ele, privilégio que raros convênios médicos oferecem. Não houve regalias, afirma o hospital. O populacho depositado nos corredores hospitalares, parece-me, tem opinião diversa.
O juiz, ao saber do ocorrido, manda lá um democrático “publique-se e cumpra-se”. Os pretorianos, mais uma vez, são encarregados da transferência de Little Boy do hospital para o presídio. Little Boy, já em estado terminal, desperta repentinamente: grita, esperneia, solta uma ou outra obscenidade e dá muito trabalho ao pessoal da farda.
A vileza de Little Boy não foi a doença fingida, mas sua má interpretação (ainda que a vileza aqui difira daquelas tratadas da Retórica II). Tornou-se ridículo; inferior já o era, sabíamos todos, mas sem espetáculo. Uma vez levado do quarto à ambulância Little Boy aprofundou-se na exibição de seu caráter inferior conferindo clímax à comédia.
Como coadjuvantes, meia dúzia de asseclas e as carpideiras da família. Estas não pranteavam mortos, mas um ente querido à beira da sepultura que, inacreditavelmente, opôs-se a cinco policiais, tamanha era a força das braçadas e esperneios. A carpideira-mor, aos gritos de “meu marido não é bandido”, clamava por justiça e pedia para ser levada junto.
Para encerrar a prosa, penso que o pastelão do Little Boy, de vileza tal, só fez ridicularizar sua já conhecida deformação de caráter. Nós, o povo, diante de uma ação de natureza nada elevada, tivemos nosso momento de catarse às avessas e rimos muito! E não condenem nosso riso, escolásticos, pois muitos choraram nos hospitais em razão de uns e outros chequinhos desviados do erário por desprezíveis little boys. 

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sexta-feira, 24 de março de 2017

11a praga: a carne podre

11ª praga: “Porque a carne é fraca, haverás de comê-la pobre por todos os dias de sua existência.”
Os egípcios não levaram a sério a monomania de Moisés, enfrentaram o Altíssimo, e deu no que deu: padeceram dores e flagelos com as dez pragas. Ah, as pragas! Outrora sofrimento, hoje são a alegria de diretores de folhetins que, na falta de roteiros bem elaborados, douram a pílula e fazem delas estripulias dignas de Hollywood. 
Gago, talvez Moisés tenha encontrado alguma dificuldade em se expressar; pode ser também que do alto do trono Faraó não tenha feito lá muito esforço para entendê-lo. Lenda ou verdade, o fato é que os egípcios pagaram caro por terem ignorado Moisés. Má vontade dá nisso!
No fundo, lá na filigrana, os acontecimentos da semana não diferem em nada da lenda bíblica. Ainda que a tabuleta tenha sido trocada (lembram-se da Tabuleta Nova em Esaú e Jacó?), Faraó fez questão de manter no nome as cinco letrinhas e nas ações a mesma arrogância. Representante-mor da canaille, finge desconhecer a ética. Moisés, por outro lado, sofreu certo esfacelamento e hoje virou instituição.
Moisés, não se sabe bem o porquê, veio a público dizer que acabara de descobrir que o povo hebreu padece da 11a praga: come carne pobre, seja de bois de sequestro, seja porque resolveram misturá-la a resíduos de papelão antes de chegar à mesa - ou à laje -, e não se dá conta.
Assim como na historieta bíblica, vale o aforismo espírita da lei do retorno. Faraó, seus asseclas e cúmplices estavam fadados a serem descobertos - sempre souberam disso -, mas detêm o poder e isso relativiza tudo; já o povo hebreu, por mais que se tenha mostrado incrédulo com a preparação da iguaria, não é assim tão ingênuo.
A prova disso é que há muito se publica na internet como nuggets e salsinhas são produzidos. Também há muito ativistas procuram conscientizar o povo da crueldade e do sofrimento imposto aos animais. E não é só isso: há muito este obstinado povo hebreu tem conhecimento de toda sorte de substâncias venenosas e/ou cancerígenas que são misturadas à carne, assim como suas implicações à saúde, não obstante as menininhas exibirem orgulhosas, já aos oito anos de idade, belos pares de peitinhos.
Mas o povo hebreu é faminto: o maná já não lhe satisfaz. Obtuso, além do churrasco na laje, parece viver a copular e a vibrar com a vitória de seu time favorito, esquecendo-se da profusa podridão que orbita seu espírito e que, hora ou outra fede, impregna as urnas, e o faz predestinado a uma vida de gado.
Por essas e outras que a surpresa descabida não se justifica! Qualquer hebreu atento teria notado que a escolta da polícia aos caminhões da Friboi, na greve dos caminhoneiros de 2015, era indício de que o estado da carne não estava lá essas coisas. O porquê de só agora Moisés decidir dar com a língua nos dentes é ainda um mistério. É sabido que à época de Hatshepsut, e até mesmo do Faraó anterior, as megacorporações de carnes foram beneficiadas com empréstimos polpudos do BNDES e que o TCU já via ali indícios de favorecimento.
A venda de carne apodrecida, com validade vencida, misturada a resíduos papelão e aditivos cancerígenos, entre outras fraudes, faz com que a maledetta propina paga aos cúmplices e ao partido do Faraó pareça café pequeno. Assim, mais uma vez o povo hebreu é ludibriado!
E digo mais: Moisés não só revelou o óbvio, como também contribuiu para inverter a importância das coisas. Enquanto os hebreus se preocupam com a salsicha de todo dia, os fariseus metem a mão em sua aposentadoria e acabam com as leis trabalhistas. Amanhã, passado o susto, a salsicha continuará na prateleira à espera do povo, só que em menor quantidade, já que terá sua renda ainda mais sucateada; o papelão, caso não tenha seu preço majorado no mercado, continuará a fazer parte do cardápio. As substâncias cancerígenas? Bem, o povo hebreu terá os planos de saúde populares.
Os animais? O pacífico povo hebreu não se importa com isso. Ademais, os frigoríficos não têm paredes de vidro, portanto, ignoram a crueldade, o ranger de dentes, o sangue que jorra...
Caro leitor, prometo que na próxima semana volto aos livros. A realidade não tem se mostrado nada atraente, levando-me a Schopenhauer. A solução, parece-me, vem da ficção.


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quinta-feira, 23 de março de 2017

O agente laranja, Balzac e o jornalismo

A imprensa ainda continua a ser o grande veículo do espírito moderno. O dito tornou-se um dos aforismos machadianos; citá-lo não tem outro objetivo que o de evitar interpretação errônea para o que trago nas entrelinhas.
Ainda que a semana tenha sido turbulenta, o agente laranja presente no título não surge como sinonímia do arremedo de maná lançado pelos americanos no reino de Saigon, mas sim da Sarah Palin de calças. O resultado talvez seja o mesmo; caberá ao futuro a cura das chagas. Por sua vez, Balzac e jornalismo, para quem já leu ao menos Ilusões perdidas, têm parentesco. Quanto a uma crônica que se dispõe leve, confesso, venho com assuntos árduos, mas vá lá, não resisto a uns pitacos.
Eis os fatos: até a meia-noite da última terça-feira, as previsões apontavam vitória da candidata liberal, porém, somados os votos, quem levou a melhor foi o representante dos conservadores, ainda que muitos dentre eles o tenham abjurado. Terminado o grande show, vieram os porquês.
Criaram-se variadas teorias: da insatisfação com a globalização, ao desaparecimento da classe média, o voto dos envergonhados... A imprensa, porém, tal como o candidato eleito, recusou-se a desviar os olhos do próprio umbigo.
Nesse ponto, volto a Machado que um dia também disse ser os jornalistas os maiores mágicos, uma vez que iludem o público de maneira singular. Cadquê? Ora, há muito, não só nos Estados Unidos, mas sobretudo em terras tupiniquins, trava-se verdadeira luta entre a informação e a opinião.
Não há como negar que a história da imprensa está ligada à própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista. Não por outra razão, Balzac, usa o termo máquina ao referir-se à imprensa (“Vous avez vu les rouages de la machine” - Vocês viram a engrenagem desta máquina)1. Ao desmontar as peças que a compõem, nota-se, de pronto, uma instância onde reina clara divisão de trabalho; a hierarquia sobrepondo-se ao pessoal, estrutura que reproduz o habitat urbano da época.
A imprensa é o reino da impostura e seu poder é deletério. Polêmico e contundente, não? Pois é dessa forma que, em Monographie de la presse parisienne (1843), o romancista se refere à imprensa. Escarafunchando ainda mais os pinos e parafusos desse mecanismo, não há como não lhe dar razão. Tome a Monographie, deslize os olhos linhas abaixo e veja Balzac traçar um julgamento severo sobre uma máquina que, longe de pretender informar e educar – como ela o aspira -, atua para ganhar dinheiro e poder.
Isso explica muito das previsões eleitorais (brasileiras e americanas) do último mês. Até mesmo porque, afirma Balzac, “para o jornalista, tudo o que é provável, é verdadeiro”. Desse modo, videntes-visionários vislumbram em que mãos estará o poder, mas não desconfiam é que talvez não passem de meros reprodutores de desejos e interesses, em consonância à hierarquia.
Nessa lógica, vale contrapor a figura mítica do jornalista (com uma significação antiga, é claro) ao moderno homem de imprensa. Antes, orbitando uma imprensa ainda artesanal, de tecnologia e distribuição rudimentares, vivia da opinião - sua e de seus leitores -, a quem buscava servir.
Hoje, com o arrefecimento do intermediário especializado (escritório ou agências de notícias, de proporções gigantescas) que produz, organiza e distribui a notícia, o jornalista viu-se relativizado, papagueando interesses de grandes grupos corporativos (na maioria, pertencentes a famílias proprietárias de jornal, revista, rádio, TV, portais, sites, etc.).
Nem só de críticas à imprensa vivia Balzac, mas de certa ambivalência e simpatia, como se pode depreender nas lições de Blondet, em Ilusões perdidas: « [...] cada ideia tem seu verso e reverso [...] Tudo é bilateral no domínio do pensamento. »
Hoje, enquanto jornalistas de bancadas mostram-se boquiabertos e esboçam teorias conspiratórias diante da vitória de Trump, talvez devessem se perguntar o porquê de a imprensa não mais se ater a noticiar fatos e interpretá-los, mas sim dedicar-se à venda de ideias e produtos - como afirma um amigo. Balzac, lá nos idos do XIX já mostrava o dinheiro por trás da ideologia lisonjeira de fachada. George Soros está aí e não me deixa mentir.
Nessa lógica, levando-se em conta a análise que o grande romancista deita sobre a imprensa, confirma-se o universo mental do jornal como o reino da verdade relativa, do falso jornalístico e da mentira industrial e política. Mas trabalhemos com as exceções, até mesmo porque elas só são odiosas aos outros.
Por fim, as previsões eleitorais não confirmadas pouco importam, afinal, muita gente sã creu em Mãe Dinah e deu no que deu.


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1. La Grande Ville. Nouveau Tableau de Paris, comique, critique et philosophique, par H. de Balzac, Alex. Dumas, Frédéric Soulié, Eugène Briffault, Eugène de Mirecourt, Édouard Ourliac, Marc Fournier, L. Couillhac, Albert Cler, Charles Ballard, le comte Charles de Villedot. Paris : au Bureau des publications nouvelles, 1843.


terça-feira, 21 de março de 2017

Mariana e as narrativas perdidas

Era uma vez, um país muito distante, habitado por um povo singelo e crédulo, excessivamente crédulo. Conta-se que ali, só de conventos e mosteiros, havia para cima de quatrocentos, prova física de que acreditavam piamente em Nosso Senhor.
No reino de sua majestade, o Rei José I, todos, nobreza e súditos viviam no melhor dos mundos possíveis. A vida passava lentamente. O Rei e o Marquês de Pigeon, grandes reformadores, sequer desconfiavam que hora ou outra o povo chafurdava na lama. Na estação das grandes chuvas, tornava-se difícil distinguir porcos de servos. Mas isso era culpa da natureza. Nem mesmo o Rei e o Marquês sabiam da lama sazonal, visto que o sol encarregava-se de providências eficazes. M. Pigeon, afeito às ideias esclarecidas, preocupava-se com as reformas no reino, porém, estas, jamais beneficiavam o populacho, cujos dentes ausentes denunciavam o determinismo da vida.
Na manhã de primeiro de novembro, quarta-feira, do Anno Domini Nostri Iesu Christi de 1775, em orações matinais, não só monges e freiras celebravam o dia de Todos os Santos, mas todo o povo crente também lotava as igrejas. Porém, às 9h40 daquele dia, um tremor surdo e destrutivo anunciou o fim de quase tudo. Segundos após o estrondo, tudo se transformou.
O trovão subterrâneo pôs abaixo as igrejas; ímpios e hereges, avessos à religião, puseram-se a correr em todas as direções. Possuídos pelo horror e o assombro, batiam nos próprios rostos e corpos, gritando por misericórdia. Em delírio correram para as igrejas em busca da proteção do crucifixo, pois pensavam tratar-se do fim do mundo. Lá chegando, elas não mais existiam; o que viram foi um amontoado de pedras, corpos, sangue, sacerdotes, gemidos e imagens em ruínas.
Felizmente, o Rei e seu ministro, o Marquês de Pigeon, sobreviveram em seus castelos de pedras grandes e espessas. Rei e ministro prometeram reconstruir tudo, afinal, a colônia distante sobejava em riquezas.
O povo desesperou-se. Assustados, muitos decidiram partir de vez para a longínqua colônia. Atravessaram o oceano e ficaram pé na terra que um dia fora chamada de Paraíso.
Passou-se um tempo e um desses fiéis fixou-se em um pequeno vilarejo, por nome Bento Rodrigues. Ali, assim como os compatriotas que haviam construído a igreja de São Bento, tentou reproduzir as origens. Da terra extraíam diamantes e ouro, que eram enviados para a capital do reino.
Bento, que deixava o trabalho às 17h30, ao ver que o relógio marcava 15h30, pensou: “Mas ainda é cedo!” Não entendia o porquê do tumulto em volta de uma das camionetes da Grande Companhia, coligada sub-repticiamente a políticos do governo central e nova exploradora daquelas terras nas Minas Gerais. 
Aproximou-se e logo pode ouvir a voz trêmula que vinha do rádio da camionete: a grande barragem se rompera, a lama descia pelo vale. Perplexos, olharam um para os outros. Por um momento ficaram paralisados. Bento, num átimo, despertou-se e lembrou-se do baú. “Não sei vocês, mas vou para o vilarejo”, disse isso e montou em sua moto. Podia ver o baú silencioso no canto do quarto de paredes caiadas e já desbotadas pelo tempo, apesar das muitas vozes ali contidas. 
Enquanto dirigia desenfreadamente, podia ouvir os gritos daqueles que corriam pedindo que voltasse, pois não teria tempo de chegar ao vilarejo. Lembrou-se dos relatos de seus antepassados preservados nos cadernos já seculares. Pensara em transformar tudo aquilo em livro, tornar público a saga da família que sobrevivera ao Grande Terremoto, contar sua miséria nos arrabaldes de Santa Rita Durão. Não teve tempo. O excesso de trabalho e o pouco estudo limitaram seus planos. A esperança era o filho. Este sim, com ares de poeta e historiador, haveria de transcrever aquelas garatujas e contar o périplo dos primeiros deles a pisar no Novo Mundo.
Fez ouvidos moucos aos alertas e prosseguiu. Ao chegar perto de uma das pontes, notou a enxurrada próxima dali. Deu meia volta para tentar acesso pela outra. No caminho, enterrou a mão na buzina e aos gritos avisava a todos que a barragem havia rompido: foge! foge!, mas ele mesmo tomava sentido contrário. Era preciso salvar o baú.
Encontrou alguns moradores que, paralisados, olhavam para as montanhas e vislumbravam a onda de poeira e lama que se deslocava apressada em direção à vila. O barulho era de uma catarata. Bento pensou nas águas límpidas do Rio Doce, onde ele e o filho passavam horas a contemplar o redemoinho claro das águas translúcidas.
Ao chegar a outra ponte, viu-a tomada pela lama. Pouco antes cruzara com um grupo de pessoas que buscava abrigo em um morro alto. Pensou que se tivesse alguma chance, talvez devesse agarrar-se a ela. Enveredou-se então para o cume do morro. De lá ouvia o barulho forte e destruidor da enxurrada. Lembrou-se das narrativas, do trovão subterrâneo, das pessoas em desespero, do baú e do cachorro que o esperava; as lágrimas vieram-lhe aos olhos.
Passado um ano, Bento ainda escava o local onde um dia morou à procura das vozes, relatos, angústias, medos, aventuras e alegrias aprisionados nos cadernos. Às vezes ouve vozes de vizinhos que se foram misturadas às vozes do baú e aos latidos do amigo desaparecido. Culpa a si mesmo mais que a enxurrada. Deveria ter libertado as narrativas, mas não, fora egoísta! A idade e a memória já não lhe permitem mais reproduzi-las.
O vilarejo já não existe. A lama engolfou casas e vidas. O sol, providente, só fez solidificar a lama que a chuva aos poucos dissolve em tortura contínua.
Bento lembra-se de fragmentos das narrativas. Em uma delas, contava-se que o Rei José I, assustado, passara o resto da vida em um complexo luxuoso de tendas. Sofrera fobia das pedras. Aqui, nas Minas Gerais, os palácios são distantes do vilarejo, inalcançáveis à lama, reflete. Triste, recorda-se do voo panorâmico que a Rainha Maldi, adepta da filosofia otimista, fez pela região, das promessas da Grande Companhia, do silêncio dos políticos ambientalistas e do baú de vozes e narrativas, arremedo de tesouro, soterrado pela lama.

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P.S. Dia 5/11/2016 completou-se um ano da Grande Tragédia de Mariana, em Minas Gerais. Até hoje nenhum dos responsáveis foi punido pela ‘justiça’ brasileira. Tome esse texto, leitor, como um humilde protesto contra o estado de coisas em quem vivemos.



sexta-feira, 17 de março de 2017

Amizades literárias: Montaigne e La Boétie

A semana encerrou um período em que se catapultou o eufemismo. Refiro-me à campanha política. Quotidianamente, eleitores tiveram seus ouvidos e inteligência postos à prova, de modo a fazer crer no aforismo de que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Nela, produziu-se de tudo, exceto alguma cortesia ao sinônimo, uma vez que teriam que adentrar o léxico da malandragem.
Mas isso é assunto próprio das “semanas ricas”, quando as notícias chegam de carruagem. A arraia-miúda, esta, tem lá seus encantos; obriga-nos a apertar os olhos, tal o míope, à procura da ranhura imperceptível ofuscada pelo brilho fácil das almas exteriores.
E foi assim que caí no rodapé da página: o assunto não era outro que a amizade. Incensada como uma das grandes virtudes humanas, liame que une sonhos, ideias, juízos e vidas, hoje, ganhou ares e tons sofísticos. Não por outra razão ser e ter amigos já entrou para o domínio das ciências exatas. Disputam-se quantidade de likes e seguidores em páginas discutíveis, quiçá, ofensivas, tal a qualidade do conteúdo e das amizades.
Chamou-me a atenção a história de Mahlon, garotinho americano de 9 anos, cuja festa de aniversário foi ignorada pelos amigos. Popular na escola, disse à mãe que aquele seria o dia mais feliz de sua vida. No entanto, amargou a indiferença absoluta. A experiência de Mahlon viralizou por meio de um relato da mãe. Tocados, milhares de internautas amigos enviaram-lhe cartões, na tentativa de minimizar a decepção do pobre garoto, alimentando assim as estatísticas. Isso me fez pensar na qualidade dos amigos. Concluí que bem aventurados são aqueles em que o número total deles não excede os dos quirodáctilos.
Como, felizmente, nem só de facebook vive o homem, mas de toda a sabedoria que provém dos livros, de pronto, o assunto levou-me à célebre amizade de Montaigne e La Boétie. Você, leitor, pode questionar o salto tão abrupto que me levou de Mahlon a Montaigne. Não creio que tenha razão, afinal, são as sinapses, e contra elas não há argumentos. Em minha defesa tenho as memórias literárias e os efeitos de leitura, que likes ignoram.
A literatura é farta em amizade icônicas. Quem não se lembra da singular página de Exupéry, que celebra o encontro marcado entre a raposa e o Pequeno Príncipe? Dr. Watson e Sherlock Holmes? Dom Quixote e Sancho Pança? Sexta-feira e Robinson Crusoé? Amizades literárias, ficção, mas possíveis de lançar certo enleio e encanto à alma humana. Mas, voltemos a Montaigne:
Um dos grandes acontecimentos da vida de Montaigne foi, sem dúvida, seu encontro com La Boétie: tem-se então o início de uma amizade que só terminaria com a morte de La Boétie. De fato, uma perda da qual Montaigne jamais se recuperou. A agonia do amigo é relatada pelo filósofo em uma longa e emocionada carta a seu pai e, mais tarde, o primeiro livro dos Essais seria concebido como um tributo ao amigo morto.
Montaigne, na tradição de Aristóteles, Cícero e Plutarco, traça verdadeiro elogio à amizade:
“Aquilo a que normalmente chamamos amigos e amizades não passam de conhecimentos e relações familiares em que se verifica uma ligação por um tipo qualquer de conveniência, que permite que as nossas almas se suportem uma à outra. Na amizade de que estou a falar as almas estão misturadas e confundidas numa ligação tão universal que apagam a união que as junta, não sendo possível encontrá-la. Quando insistem comigo para saber porque é que eu o amava, sinto que não o consigo exprimir senão dizendo: Porque era ele; porque era eu. (MONTAIGNE, Essais, Livro I, Cap. XVIII)”
Por fim, para encerrar a prosa, trago um dito de La Rochefoucauld, compatriota do filósofo: “A amizade, depois da sabedoria, é a mais bela dádiva feita aos homens”.


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quinta-feira, 16 de março de 2017

Leitores e leituras: rito e reflexão

Em muitas civilizações o aprendizado da leitura constituía-se algo iniciático. Hoje, reformadores morais citam o exemplo de crianças que imitam a cicatriz de Harry Potter ou usam chapéu de bruxo para reproduzir o ritual de iniciação descrito no livro.
É certo que nos idos em que a introdução à leitura figurava-se ritualística, também isso não era lá uma prática unânime. Demônios e ocultismo sempre vieram à cena para dissimular algo que parte da sociedade, pretendendo-se eleita, sempre tentou restringir: a difusão da cultura e do conhecimento, magia que sempre se mostrou bem mais temerária e eficaz que as ditas poções.
Ao longo dos séculos, livros e autores foram queimados à revelia. Ainda podemos sentir o calor das chamas da grande fogueira da Praça Bebel, ouvir o crepitar das páginas e, em espírito, contemplar o tremeluzir das chamas. Nos dias atuais, mais urbanos, guilhotinam-se verbas destinadas à educação, às universidades, aos museus e afins. Hipócritas, hoje somos afeitos a bordões: ora é pátria educadora, ora é ordem e progresso...
Mas voltemos aos ritos iniciáticos. Conta-se, por exemplo, que na Idade Média, sempre que uma criança ia ser iniciada na leitura, submetiam-na a dois processos: obrigavam-na a lamber uma ardósia besuntada de mel, ou a comer ovos e bolos, sobre os quais versos haviam sido previamente escritos. Ao comê-los, acreditava-se que a criança incorporaria a escrita neles reproduzida.
Tornar-se um leitor é passar por um ritual de iniciação, é atravessar um limiar entre a infância e a idade adulta, entre a ignorância e a sabedoria – e por que não, a loucura? -, entre si e o outro que nos tornamos quando lemos. Sim, porque o livro não só é um objeto peculiar que pode ser incorporado, devorado, mas também um espaço que pode ser sobrevoado e no qual pode-se mesmo mergulhar. E sempre que nele mergulhamos, instauramos uma temporalidade singular. Explico-me:  separamo-nos do curso ordinário do tempo, do cronológico; o leitor passa a viver um tempo separado, dilatado. Não bastasse o ficcional da narrativa, ele é deslocado para uma duração relativa – e diversa – das coisas, onde a ideia de passado, presente e futuro é totalmente perturbada.
Não falo obviamente da leitura orientada para uma prática (receita de cozinha, por exemplo) ou informação (saber as últimas da politicalha), mas daquela leitura cuja essência é a mesma da conversão, ou seja, trata-se de uma experiência intensa, rica, durante a qual o leitor se vê modificado e não somente informado. Não por outra razão muitos falam em arte de ler.
Há uma infinidade de estudiosos que se debruçaram sobre essa arte no intuito de entendê-la mais a fundo. A maioria coloca você, leitor, como protagonista.
Dentre eles, destaco Antoine Compagnon com seu O Demônio da teoria. Em um capítulo dedicado ao leitor, Compagnon ressalta as posições antitéticas dedicadas ao leitor pelos estudos literários. Em certo trecho, aborda a ideia de a leitura se constituir por via dupla: trata-se de um ir e vir em que ora prevalece o repertório do leitor (Iser), ora seus valores e experiências são modificados e alterados exatamente em razão da leitura. Além, é claro, do fato de que, ao realizá-la, o leitor faz com que o texto literário perca sua incompletude (Ingarden).
Numa compreensão livre do texto do Compagnon, sem pretensão a qualquer aprofundamento crítico, chamo a atenção para o fato de essas ideias estarem ligadas à memória literária, à circulação das ideias enquanto mecanismos intertextuais.
Por mais que os estruturalistas tenham insistido no funcionamento neutro do texto e os formalistas clamado por sua imanência, ambos, afastando o intruso leitor empírico, não ressaltam o fato de que esse texto deixa lacunas, falhas e espaços que, sob a rigidez criteriosa de um leitor experimentado, são preenchidas. Ao preenchê-las, é sabido que a leitura caminha para frente, porém, carregada de indícios deixados ao longo do caminho por diferentes leitores, os quais, na condição de scriptors, fazem jus à capacidade de combinarem textos pré-existentes.
Não por outra razão Roland Barthes (1970: 15) afirma: “O ‘eu’ que se aproxima do texto já é em si uma pluralidade de outros textos, de códigos intermináveis, ou mais exatamente: perdidos (cuja origem se perdeu).”[1] 
Mas deixemos Barthes de lado e o clichê da morte do autor que se pode entrever a partir de suas palavras. A discussão proposta por Compagnon restringe-se ao leitor, contudo, este - como vimos - inelutavelmente chega ao texto contaminado.
E, só para ver o quanto você leitor é importante, caso você venha a se deparar com um Borges pela frente, verá que terá que enfrentar uma peleja que não só dá conta da referencialidade (as ligações da literatura com o real: a filosofia, a história, etc.), mas, sobretudo, da referência (o modo como a literatura retoma a si mesma e se reconta através das obras).
Diante disso, ignorá-lo, leitor, relativizá-lo face à imanência textual, parece-me, seria ignorar a memória literária. Mas isso é prosa para outra hora!



 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/





[1] BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Éditions du Seuil, 1970.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Bob Dylan e o rock literário

Há tempos, mesmo nas horas mortas quando cismo com as ideias, convivo com o Bruxo de Cosme Velho. Talvez por essa razão tenha certo apreço pela arraia-miúda, a notícia de rodapé negligenciada pela maioria. Nesse instante em que a folha em branco se me impõe como horizonte diante dos olhos e as sinapses escorregam pela memória, lembro-me sempre dos grandes ídolos. Até hoje, confesso, ainda não havia vislumbrado Bob Dylan.
Mas, assim como são os livros que nos escolhem e não nós a eles, o mesmo ocorre com as notícias. Por isso, leitor, vou deixar os comentários que faria a seu respeito para a próxima semana e tratar daquelas notícias ditas superiores.
As últimas novas tratam da nobilitação de Bob Dylan. Sim, Bob Dylan foi agraciado com o Nobel de Literatura. Por aqui, fomos condescendentes, ouvi uns e outros delírios elevando ao reino da hipótese os nomes de Caetano Veloso e Chico Buarque. É possível que se mostrassem fortes concorrentes, mas nosso marketing ainda é restrito à nossa condição periférica.
Na França não se deu a mesma coisa. Pierre Assouline - biógrafo e romancista, recebedor do Goncourt e editor da Revista Lire – esbravejou e disse que a literatura pode ser tudo, menos Bob Dylan. “Dylan, um poeta?”, pergunta-se Assouline. Na melhor das hipóteses, afirma o acadêmico, um letrista, para, logo em seguida, exasperar-se face à comparação sistemática do músico a Rimbaud.
Mas o fato é que Dylan foi nobilizado. E, para a turma do contra, a Secretária Geral da Academia, Sara Danius, explicou a unanimidade que justificou a escolha dos acadêmicos suecos: “Dylan criou novas expressões poéticas na grande tradição da canção”, “Bob Dylan criou uma poesia para os ouvidos, que deve ser declamada” e argumentou: “se pensarmos nos gregos antigos, em Safo, Homero, eles também escreviam poesia para ser declamada, de preferência acompanhada com instrumentos”.  E assim atribuiu-se à guitarra de Dylan uma gênese helênica que remonta seguramente a Lesbos antiga.
Polêmicas à parte, especialistas afirmam que há tempos os americanos ressentiam a falta de um Nobel, afinal, o último veio com Toni Morrison, em 1993. É provável que tivessem em mente Philip Roth, Don DeLillo, Joyce Carol Oates, mas caiu-lhes no ego o Dylan...
Mas e Mr. Dylan? Afora as canções poéticas, escreveu algum livro? Sim, Bob escreveu Tarântula (1966), publicado por aqui em 1986, pela Brasiliense. E, mais recentemente, veio à luz Crônicas, Vol. I, sua autobiografia.
Talvez, assim como eu, você não tenha lido nem um dos dois livros, mas, em algum momento de sua breve existência tenha se deixado levar por Blowin’in the Wind ou The Times They are a-changin’, verdadeiros hinos antiguerra, em particular a do Vietnã, e dos movimentos civis da época, que muita gente por aqui dançou como boa música romântica, sobretudo Blowin’.
Mas não foi esse lado, digamos, pop, que comoveu os acadêmicos suecos: Sara Danius, ao anunciar o prêmio afirmou que Bob se inscreve numa tradição que remonta a William Blake, célebre poeta inglês, morto em 1827, e citou as canções Visions of Johanna e Chimes of Freedom.  
Mas e Mr. Dylan, o que acha disso tudo? Até agora, mistério. Apesar das várias investidas, Mr. Dylan manteve-se mudo, não retornou os contatos de Sara Danius, que, por sua vez, deu-se muito bem, pois emergiu do anonimato à condição de celebridade mundial.

Belas e poéticas canções, mas eu, caro leitor, quando me coloco a pensar, olho para a montanha, lembro-me do profeta, pergunto-me de onde virá o socorro e, logo depois, questiono não só a própria razão de existir da montanha, mas por quanto tempo ainda ela existirá? The answer, my friend, is blowin’ in the wind.  


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

domingo, 12 de março de 2017

Sobre livros: dois dedos de prosa



Caríssimo leitor,

Você merece toda a deferência. Por isso, antes mesmo que me apresente, desculpo-me por tê-lo feito perder o foco. Digo isso de modo tão rebuscado, pincelado de um respeitoso arcaísmo, porque estou certo de que muito provavelmente estivera clicando aqui e ali, não à procura de garatujas literárias, mas sim à procura de índices econômicos, as últimas notícias do esporte – incensado que foi até há pouco pela mídia possuída de um nacionalismo quadrienal em busca de heróis e medalhas que justifiquem os milhões gastos - ou as novas de nossa política “torva e sanhuda”.
Perdoe-me. Leitor machadiano contumaz, há muito fui picado pela tal da ironia; falando de livros ou de jardins, sempre me ocorre querer ilustrar páginas e canteiros e quando dou por mim já fiz uso da arma dos “céticos e desabusados”, adentrei o barro humano e mudei o rumo da prosa.
Mas voltemos à vaca fria! Não sabe o porquê da expressão? Pois vá lá: para os franceses é revenons à nos moutons (voltemos aos nossos carneiros), cuja origem está na obra medieval, A Farsa do mestre Pathelin. O dito é usado sempre que se quer retornar ao assunto principal da conversa, interrompida por ruídos periféricos. Como a vaca entrou nessa, não me pergunte, só estou certo de que a curiosidade pode render uma boa conversa.
Voilà! Esclareço as pistas deixadas: pesquisador, estudo a presença francesa no Brasil, em especial na obra machadiana. Portanto, nas vezes em que encontrar um ou outro galicismo perdido por entre as frases, veja-o como simples força do hábito ou fruto de leituras quotidianas, jamais uma demonstração presunçosa de erudição que ofenda a “última Flor do Lácio”.
Pois bem, caro leitor, afora o que disse acima, sou afeito a contar histórias. Assim, pretendo que falemos de livros, personagens, narrativas, escritas, autores, leituras, etc. ... e leitores.
Não por outra razão, em nossa próxima conversa penso em tratar um pouco de você leitor. Afinal, o que fez de você um leitor? Aqui, em um exercício de autoplágio (um dia já disse isso em outro texto), pergunto: em que medida você foi movido pelo mais simples dos impulsos humanos, aquela curiosidade, aquela tendência obscura pela bisbilhotice? De fato, isso é o que menos importa. O certo é que nos apaixonamos por histórias inventadas, envolvemo-nos e, ainda que como espectadores, participamos, vibramos e choramos o destino de personagens que nunca existiram. E digo mais, chegamos mesmo a reescrever a vida dessas figuras nos instantes em que preenchemos os espaços e os silêncios que jazem nas entrelinhas à espera do leitor.
Ler é desejo e é prazer. Dito isto, sequer pretendo retomar Barthes com seu célebre O Prazer do texto, mas vale resgatar Bellenger quando afirma que o leitor mantém uma relação fetichista com o livro. Palavras, variações, organização, sentido, música, a beleza da frase e do pensamento são constitutivos desse fetiche. Tudo isso junto e misturado nos leva à leitura de um mundo que reúne Montaigne e Proust, Racine e Hugo, Lima Barreto e Stendhal, Machado e Voltaire. E por aí vai...
Por fim, despeço-me com um comentário de Jean-Paul Sartre:

"Comecei minha vida como hei de acabá-la,
sem dúvida: no meio dos livros."


Texto publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/