Há dias me veio às mãos o delicioso livro Letras Francesas, de Brito Broca, versão em volume dos comentários do crítico publicados nas páginas do suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo, de 13.10.1956 e 30.9.1961, uma iniciativa do governo do Estado de São Paulo, algo - parece-me, inconcebível em dias atuais de intelligentzias furta-cor, ora azul-amarela ora vermelha.
Lá pelas tantas, Broca, ao comentar o Prêmio Goncourt de 1958, atenta para o fato de o prêmio ter sido concedido a Francis Walter, escritor belga que até então não publicara nada mais que dois ensaios filosóficos. Broca fala também da tradição dos Goncourt em revelar autores novos e desconhecidos, embora Walter já tivesse ultrapassado a casa dos cinquenta. Porém, o que mais desperta a atenção do crítico é a mania dos Goncourt de escolher os romans-fleuves, aqueles calhamaços meio Bíblia que não raro ultrapassam as quinhentas páginas.
Ocorre que Saint-Germain ou la Négotiation é pequeno, o que poderia levar o leitor a crer que o romance refletia as novas tendências da época, ou seja, fosse um romance de técnica revolucionária, com mudanças de estrutura semelhantes ao que pregavam Robbe-Grillet e Michel Butor.
Engano: Broca avisa que o romance tem construção clássica, é escrito em primeira pessoa, em forma de memórias e em tudo lembra o romance balzaquiano.
Quando lemos um romance normalmente nos colocamos na pele do narrador - seja ele onisciente ou subjetivo -, nos esquecemos da nossa condição de leitor e mesmo do lugar da leitura, vamos em busca de nosso objetivo: a sedução pela leitura, a evasão para mundos distantes e diferentes. Ainda que o livro trate de literatura, é quase impossível não se deixar seduzir por um mise en abyme, que nos coloque em contato direto com as interações entre o autor, sua obra e seu leitor.
Esse mergulho nos livros através do livro tem sido comum em literatura. Talvez a mais intrigante e feliz experiência nesse sentido tenha sido Dom Quixote. Inesperadamente, ao descobrirmos que a jornada de Quixote teve sua origem nos livros, ficamos fascinados como Cervantes conduz suas personagens num jogo que mescla as fronteiras da ficção à realidade confundida alegremente por Dom Quixote em sua eterna batalha contra os moinhos de vento.
Voltando às considerações de Brito Broca, constatamos que o romance moderno ganhou nova estrutura na esteira do que preconizavam Robbe-Grillet e Butor e há casos em que isso foi levado ao extremo.
Em 1975 foi lançado na Argentina Museu do romance da Eterna, de Macedonio Fernández. Este livro que só ganhou sua primeira edição 15 anos após a morte do autor, em 1967, é um pequeno enigma escrito ao longo de quarenta e oito anos, uma colcha de retalhos da teoria literária, filosófica e metafísica do autor a ponto de Fernández ser considerado um dos mentores de Jorge Luis Borges.
A principal característica do livro é sua primeira metade, constituída exclusivamente por prefácios, ao todo sessenta! Ali o autor explica sua abordagem e suas teorias - sobre a arte, a paixão, a beleza, a morte, sua noção sobre a realidade, que ele diz tratar-se de uma imagem de consciência individual e que, portanto, pode ser confundida com sonho -, além de apresentar suas personagens, o conteúdo de sua história e revelar os principais entrechos.
Fernández sustenta que um bom romance não deve ser baseado em uma história, mas em estética pura, portanto, afirma ter escrito o “primeiro romance verdadeiramente artístico”. Entre suas influências literárias, nota-se, está Dom Quixote. A opção por mitigar o excesso de realismo não tem função outra que dar rédea livre à imaginação, sem criar expectativas no leitor, não raro, ancorado no real.
Um dos aspectos de Museu do romance da Eterna é que gira em torno da literatura. Muitas de suas reflexões são sobre a realidade filosófica e metafísica, o tempo, a memória, a identidade, a ciência, a solidão, a cidade, etc.
Embora curto como a obra de Walter, a diferença é que o Museu do romance da Eterna é um meta-romance e, sem dúvida, uma das mais bem sucedidas reflexões sobre a natureza do romance.
Ocorre que Saint-Germain ou la Négotiation é pequeno, o que poderia levar o leitor a crer que o romance refletia as novas tendências da época, ou seja, fosse um romance de técnica revolucionária, com mudanças de estrutura semelhantes ao que pregavam Robbe-Grillet e Michel Butor.
Engano: Broca avisa que o romance tem construção clássica, é escrito em primeira pessoa, em forma de memórias e em tudo lembra o romance balzaquiano.
Quando lemos um romance normalmente nos colocamos na pele do narrador - seja ele onisciente ou subjetivo -, nos esquecemos da nossa condição de leitor e mesmo do lugar da leitura, vamos em busca de nosso objetivo: a sedução pela leitura, a evasão para mundos distantes e diferentes. Ainda que o livro trate de literatura, é quase impossível não se deixar seduzir por um mise en abyme, que nos coloque em contato direto com as interações entre o autor, sua obra e seu leitor.
Esse mergulho nos livros através do livro tem sido comum em literatura. Talvez a mais intrigante e feliz experiência nesse sentido tenha sido Dom Quixote. Inesperadamente, ao descobrirmos que a jornada de Quixote teve sua origem nos livros, ficamos fascinados como Cervantes conduz suas personagens num jogo que mescla as fronteiras da ficção à realidade confundida alegremente por Dom Quixote em sua eterna batalha contra os moinhos de vento.
Voltando às considerações de Brito Broca, constatamos que o romance moderno ganhou nova estrutura na esteira do que preconizavam Robbe-Grillet e Butor e há casos em que isso foi levado ao extremo.
Em 1975 foi lançado na Argentina Museu do romance da Eterna, de Macedonio Fernández. Este livro que só ganhou sua primeira edição 15 anos após a morte do autor, em 1967, é um pequeno enigma escrito ao longo de quarenta e oito anos, uma colcha de retalhos da teoria literária, filosófica e metafísica do autor a ponto de Fernández ser considerado um dos mentores de Jorge Luis Borges.
A principal característica do livro é sua primeira metade, constituída exclusivamente por prefácios, ao todo sessenta! Ali o autor explica sua abordagem e suas teorias - sobre a arte, a paixão, a beleza, a morte, sua noção sobre a realidade, que ele diz tratar-se de uma imagem de consciência individual e que, portanto, pode ser confundida com sonho -, além de apresentar suas personagens, o conteúdo de sua história e revelar os principais entrechos.
Fernández sustenta que um bom romance não deve ser baseado em uma história, mas em estética pura, portanto, afirma ter escrito o “primeiro romance verdadeiramente artístico”. Entre suas influências literárias, nota-se, está Dom Quixote. A opção por mitigar o excesso de realismo não tem função outra que dar rédea livre à imaginação, sem criar expectativas no leitor, não raro, ancorado no real.
Um dos aspectos de Museu do romance da Eterna é que gira em torno da literatura. Muitas de suas reflexões são sobre a realidade filosófica e metafísica, o tempo, a memória, a identidade, a ciência, a solidão, a cidade, etc.
Embora curto como a obra de Walter, a diferença é que o Museu do romance da Eterna é um meta-romance e, sem dúvida, uma das mais bem sucedidas reflexões sobre a natureza do romance.
Para saber mais: Museu do romance da Eterna, Cosac Naify, 2010. Tradução de Gênese Andrade.
Imagens: 1. Capa do livro editado pela Cosac Naify; 2. Macedonio Fernández. Todas disponíveis no Google Images.
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