Vá
lá, caro leitor, o título é para dar uma aclimatada, torná-lo mais tupiniquim.
Ler notícias sobre Brasília e não fazer remissão a um prostíbulo qualquer,
convenhamos, beira à ingenuidade. E não falo de cabaré com letreiro em francês,
refiro-me àquele puteiro de beira de estrada em que as meretrizes jamais provaram
de um champanhe francês pago com o erário. Acredite, até mesmo nesse buraco ética
e respeito imperam! E não aponte o dedo ao enunciador, tratando-o conservador e
fascista! Ele, ainda que retoricamente, prega a liberdade do corpo, a delícia e
a luxúria da orgia e os encantos do serralho! Só não vai da ideia ao fato por
pura falta de contexto!
Mas
deixemos de lado a casa da mãe Joana - que você financia - e adentremos as
antinomias; sim, porque as ‘meninas’ na literatura e na poesia tornam-se
santas, sacrossantas! Falemos de Baudelaire e de sua obra Le Spleen de Paris, que veio à luz em 1869.
Até
certo ponto, pode-se afirmar que Le
Spleen de Paris é um ‘tratado’ sobre a prostituição, o que inscreve Baudelaire
em uma tradição literária, cujo mais insigne representante é Rétif de la
Bretonne, com suas Nuits de Paris. As
páginas de Spleen estão repletas de
figuras femininas, solícitas como Mademoiselle Lancet, “levemente maquiada, com
os cabelos flutuando ao vento”, e que convidam o narrador a segui-la até seus
aposentos para, depois, envolvê-lo em seus braços; ou ainda como a ‘pequena
amante’ com toda a sua licenciosidade, e que faz parte das personagens
femininas de ‘Portraits de maîtresses”, que compõem uma coletânea de poemas em prosa,
cujas alusões ao corpo, à nudez, à sensualidade, às roupas apertadas e aos
pedidos de dinheiro - que evidenciam que a mulher exerce a profissão de
prostituta -, parecem traçar um panorama do exercício da profissão.
Contudo,
se a palavra “prostituta” não é explícita, sobram sinônimos como “lorette” (a
meninas que, em Paris, ‘batiam calçada’ ao lado da igreja Notre-Dame-de-Lorette),
“criatura” e outros; todos sem qualquer conotação violenta, pois, se a mulher
não é poupada por Baudelaire, a mulher de vida fácil nunca é menos irritante
que a esposa legítima.
Em
Spleen de Paris, a prostituta faz
parte de um sistema composto de clientes “veteranos da alegria” - aqueles que
conheceram (no sentido bíblico, assim como Abraão conheceu Sara) dezenas de filles de joie - e os cafetões ou
mantenedores. A provocação vem nas entrelinhas: o marido que exibe a mulher arredia
e misantropa em uma feira é algo diferente de um cafetão?
Sem
afirmar que a prostituta é a norma do padrão feminino, nota-se em Spleen que muitas são as mulheres que exercem a prostituição ou situam-se
numa fronteira, cuja representação exclui o julgamento, a obscenidade e a
miséria. Esta prostituição não é condenável.
O
universo de Spleen de Paris é a
prostituição. Mesmo o “filantropo” com seu élan
em direção ao outro é suspeito. Aspirando ser um homem da multidão, ironicamente
torna-se um pretendente do gênero humano, tal o Don Juan, de Molière. O peso
das relações humanas é insustentável e inevitavelmente leva a compromissos,
compelindo-nos à prostituição social. Nessa toada, o vermos o mundo, perdemo-nos
a nós mesmos e a nossa dignidade e corremos o risco de nos tornamos o “último
dos homens”, pois nos diluímos nos “vapores corruptíveis do mundo”.
Desse
modo, a prostituição engendra um risco ontológico grave em que vislumbramos -
sempre - a promessa de uma punição. Se a prostituição ameaça sempre, é ainda
mais presente quando existe entre os homens relações falsas, dissimuladas e distorcidas.
Tome-se, por exemplo, o poema “La femme sauvage et la petite maîtresse”, que
mostra o inferno que pode tornar-se a união de um homem com uma mulher
exasperante e irritante. Em poemas como este, a convivência é regada a certa
dose de sadismo.
Por
fim, para Baudelaire, o homem sempre pode cair na prostituição, uma vez que
está habituado ao desejo de agradar; temeroso de ser tratado com indiferença,
ignorado, prende-se a relações espúrias e falsas, ou ainda, a amizades animadas
por mera compaixão. O perigo ronda todos os homens e ameaça sobretudo o
artista.
Mas
falamos de poesia; no puteiro da canaille,
ética e suscetibilidades não existem, pois, destituídos de qualquer código
criminal, em que bandidos respeitam bandidos, em Brasília, só há comparsas
indignos até mesmo dos puteiros de beira de estrada.
Foto: Filme “Apollonide, souvenirs de la maison close”;
dirigido por Bertrand Bonello (França, 2011).
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