Revista Philomatica

sábado, 12 de agosto de 2017

A arte de ler

Você sabe ler? A obviedade da resposta, leitor, beira o ridículo, uma vez que você acaba de chegar ao fim do primeiro parágrafo. Porém, desconfie de si mesmo e dos outros, pois no âmbito da leitura nem tudo é o que parece. Os significantes - para uns e outros, vocábulos inócuos -, malgrado a compreensão da significação, não atestam capacidade de leitura. Deixemos os termos linguísticos de lado e vamos às historietas, pois elas sim revelam-se instrumentos de compreensão.
Há cerca de um milhão de anos, quando Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, os hominídeos começaram a controlá-lo, provocando novo estímulo aos vínculos sociais. O calor e a luz produzidos pelo fogo uniam as pessoas ao cair da noite. Especialistas afirmam (sempre os especialistas) que dessas reuniões em volta do fogo surgiu uma nova interação social: a narração de histórias.
Esqueçamos as fogueiras e avancemos no tempo: lembro-me de uma manhã em que na casa dos meus pais, após o café, continuávamos à mesa falando amenidades. Em dado momento, tornei-me objeto da conversa. Por conseguinte, meus estudos vieram à baila; falei-lhes sobre meus planos. Um tio, não entendendo minha obsessão por livros e leituras, perguntou-me sem malícia: “Mas você já não sabe ler?”
Para meu tio, havia os que sabiam e os que não sabiam ler. Não lhe ocorria a existência de diferentes níveis de compreensão. Para ele, ao sair da escola já se sabia ler. Tudo bastante simples. Ingênuo, reproduziu algo que até mesmo muitos dos que lidam com a palavra amiúdam: o vício de subestimar as dificuldades que a leitura nos impõe, qual seja, a arte de entender o que foi lido.
De certo modo, leitor, esse texto brota em resposta ao anterior, no qual tratei de uma imprensa ávida à busca de leitores, forjando notícias à revelia sem qualquer comprometimento com a verdade. Para isso, vali-me de um título também sensacionalista em que, propositadamente, matei a Rainha da Inglaterra.
Dito isto, falo da arte da leitura. É preocupante como alguns leitores interpretam os textos sem ao menos os terem lido. Para alguns só o título basta, e é aí que tudo se complica. O título pode trazer em si uma ironia, uma crítica - quando não uma oposição -, cujo entendimento só se perfaz ao longo do texto; a ânsia da expressão, da opinião como grito preso na garganta, impede a total compreensão, donde a comum ocorrência de comentários periféricos ao texto que se distanciam da lógica e/ou tópos nele tratado.
Leitura requer paciência - talvez por isso vá na contramão da velocidade das ‘curtidas’ e ‘compartilhamentos’. É certo que um dos efeitos da leitura é a surpresa: a surpresa de defrontar ideias que não as suas, a surpresa de visualizar seus próprios subterfúgios, suas próprias manias e clichês, a surpresa de provocar indagações, de notar seus próprios recursos como leitor - muitas vezes imensos e inexplorados. Gostamos de contar novidades, mas...
Contudo, também é certo que muitos leitores chegam ao texto com suas opiniões talhadas na pedra, seu lugar demarcado no mundo, quiçá, fazendo da vida algo “cruel para si mesmo” - valendo-me de um dito de Artaud em contexto díspar. Não se pede aqui que o leitor concorde totalmente com o que foi dito num texto, uma vez que textos são espaços de provocação, questionamentos e discussões. Porém, ler e passar ao largo do texto pressupõe um estagnar-se, criar clichês, decair. Muitas vezes, as consequências do que chamo ‘falsa leitura’ emergem em forma de comentários; nestes, o leitor distante da lógica do texto revela certa obtusidade, valendo-se muitas vezes de termos agressivos na defesa de seu ponto de vista.
Ainda no âmbito das interpretações, muitos leitores rebelam-se, outros ignoram as linhas, adivinham as entrelinhas, indignam-se com o que acham que o autor ‘julgou’ dizer - e não com o que ele disse et ita in. Não é condenável tecer ilações sobre o autor ou sobre as causas do que se está dizendo. Contudo, nada disso pode ser indiferente ao texto e à sua lógica.
Em suma, leitor algum é obrigado a concordar com o texto que tem diante dos olhos, mas a lógica impõe (im)possibilidades de discordância. Para discordar ou destruir argumentos são necessários argumentos outros e alguma reflexão; e é justamente aí, nessa intersecção entre leitura e escrita, que as dificuldades avolumam-se face à maioria dos leitores, uma vez que a lógica do ensaio e/ou do texto exige que só se possa discordar nos seus próprios termos, ou seja, dentro do contexto ali exposto. Daí muitos optarem pelo comentário curto e grosso à la twitter.
Ler vai além da simples decodificação dos significantes, do conhecimento de seus significados. Ler implica deter-se sobre a lógica do texto, abrir-se à novas ideias seja para rebatê-las, seja para concordar com elas. Ler pressupõe presença de espírito. Por fim, ler exige também uma nesga de bom humor.


 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/


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