Caro
leitor, leãozinho... estou certo de
que assim como dois e dois são cinco, um dia ou outro nessa sua vida poética,
você talvez tenha tido alguns quereres
e sentiu lá no fundo da alma uma força
estranha, uns desejos de ir para tão longe, que o fizeram vislumbrar
Londres. Mas esse seu coração vagabundo
com mania de antecipar as coisas já começara a bater em inglês sem que você
mesmo se desse conta, e a old smoke surgiu
assim, repetida: London London.
Não
bastasse esses devaneios, ao ver a luz do
sol você descobriu seu dom de iludir,
sussurrou a si mesmo um estou triste,
aprofundou a queixa, pois já não
sabia mais se a ilusão era sua ou dos outros. Em meio a tanto bafafá, sozinho, saiu caetaneando o que há de bom. Pois é isso, leitor, são tantas
as canções que, malgrado a hashtag
nos trending topics, você não quis se
dar ao trabalho de criar mais uma, afinal depois do mexeu com uma, mexeu com todas o melhor mesmo é sair cantarolando odara, feliz e despreocupado.
Abro
um parêntese e volto no tempo em busca de alguma prudência: lá pelos idos de 1862,
Machado de Assis, perspicaz, buscou conselho junto a sua pena que o aconselhou:
“Não te envolvas em polêmicas de nenhum gênero, nem políticas, nem literárias,
nem quaisquer outras, de outro modo verás que passas de honrada a desonesta, de
modesta a pretensiosa, e em um abrir e fechar de olhos perdes o que tinhas e o
que eu te fiz ganhar.”
Fecho
o parênteses, reflito, e chego à conclusão de que os tempos são outros.
Polêmicas hoje duram vinte e quatro horas, quando muito uma semana, sempre em
consonância aos interesses da imprensa. Nós, indiferentes à mnemônica,
apoiamo-nos na mídia, e, ocupados com a vida quotidiana, ignoramos os
interesses e deixamo-nos levar. Manipulados como bonecos, esquecemos tudo no
dia seguinte.
Portanto,
contribuo com o bafafá não só porque sou anterior às hashtags, mas também porque tenho a malfadada mania de me lembrar
de coisas, correspondências, similitudes...
E não é que vi Roman Polanski dando uma piscadela irônica a Caetano
Veloso, num assim dizer “conheço bem essa história, meu caro”!? A despeito da
genialidade artística, num cassino qualquer, ambos foram para a roleta e apostaram
na mesma casa, o 13!
Roman
Polanski, cineasta francês (memorável O
Baile dos Vampiros, com a
deslumbrante e trágica Sharon Tate!), em 1977 foi acusado de manter relações
sexuais com uma garota de 13 anos. Polanski cumpriu quarenta e cinco dias de
prisão e depois de saber que o juiz encarregado do caso pretendia condená-lo a
uma pena de cinquenta anos, fugiu dos Estados Unidos e se instalou na França.
Em 2009, é novamente preso nas Suíça, os Estados Unidos solicitam a extradição;
dois meses depois é colocado em prisão domiciliar em Gstaad. Em 2010, a Suíça
decide pela não extradição; em 2015, a Polônia, país no qual também tem
cidadania, recusa a extradição; a vítima o perdoa publicamente e pede que
interrompam o processo contra ele. Mas ele é o que chamam pedófilo, portanto os
americanos estão como cão a ranger os dentes, prontos a atacá-lo. E olha que já
se foram 38 anos!
No
Brasil, como há gente que tem o hábito de folhear revistas velhas, acharam uma Playboy, de 1998, em que Paula Lavigne,
mulher de Caetano revela que foi deflorada pelo tropicalista, aos 13 anos! Em
outra, a Maire Claire, esta de 2016,
a Senhora Veloso afirma que à época, quando foi desvirginada, era apenas uma
menina. Um movimento inominável da direita resolveu exumar a notícia e meter lá
uma cerquilha antes do nome do cantor, seguido da palavra pedófilo. Estava
montada o que alguns chamam de guerra cultural.
O
que vejo ao comparar os dois episódios, semelhantes na raiz, é um dos traços
constitutivos da nossa cultura: o hábito que temos de amenizar, relativizar,
não dar importância a crimes de qualquer natureza se o protagonista é alguém de
nossa empatia. Quando isso ocorre, inventamos histórias, higienizamos a
biografia, criamos mil explicações, torcemos a lei, fingimos cegueira, fazemos
ouvidos mouco, não sabemos de nada, não estamos nem aí!
A
Folha de São Paulo, por exemplo,
chegou a legislar a questão absolvendo o cantor, mostrando-se totalmente
incoerente se comparado o fato ao episódio José Mayer, cujas reportagens
sucessivas diziam mais do mesmo.
Tony
Goes, colunista especializado em celebridades, no site UOL, do mesmo grupo, ao demonstrar habilidades de pesquisa,
informa seu leitor de que a lei vigente de 1982 (Código Penal ainda de 1940)
absolve o cantor, e ao enumerar os lances posteriores de seu romance, conclui o
parágrafo sentencioso: “Chamar pedofilia o que aconteceu há 35 anos é ignorar
todo esse contexto.”
Ora,
eu, de minha parte, não estou a pedir a condenação de Caetano. Se a vítima de
Polanski o perdoou, Caetano, por sua vez, fez da ninfeta sua mulher e a mãe de
seus filhos. Por que eu o julgaria? O que questiono são as tentativas de
apagamento do passado empreendidas pela imprensa e o uso de pesos e medidas
díspares no trato de casos similares.
Goes,
esquecendo ser colunista, aventou-se juiz e fundamentou a sentença: “Além do
mais, o estupro só foi redefinido por lei em 2009, e a lei não retroage. Dado o
histórico do casal, é duvidoso que algum juiz considere Caetano Veloso culpado
(inclusive porque o suposto crime já prescreveu).”
Dada
a sentença, Goes questiona o fato de celebridades e artistas serem atacados nas
redes sociais por militarem na extrema esquerda ou por enriquecerem via lei
Rouanet. O colunista não aprofunda a questão, o que poderia lhe render um bom
contra-argumento, mas perde-se e, redundante, explica a lei de incentivo à
cultura. Ao fazê-lo, exemplifica trazendo Danilo Gentili, crítico da lei e que
dela recebeu benefícios
Por
fim, antes de vislumbrar uma teoria da conspiração nesses tempos, confesso,
sombrios em que vivemos, cai numa esparrela argumentativa: afirma que desconfia
serem os artistas tão execrados pura e simplesmente por “inveja”, pois alguns
deles “são ricos e desfrutam de uma série de vantagens”.
Concordo
com Goes quando afirma haver um esforço para criminalizar a expressão artística
e promover a censura, mas veja, leitor, ao querer fazer-se ator, celebridade, e
interpretar o juiz, esqueceu-se de que era colunista, de modo que ficou o dito
pelo não dito. Na tentativa de apagar o óbvio, não disse coisa alguma. A mim,
não me restou nada além daquela pequena prosa com meus botões. Também a opinião
deles é divergente, mas lá há um que considero o mais sensato e que sempre me
adverte. Desta vez, não foi diferente: olhou-me em direção ao queixo que trazia
reclinado e disse-me: “estão confusos, uma coisa é uma coisa, outra coisa é
outra coisa”.
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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