Estamos
em março, mês dedicado às mulheres. É provável que no dia oito, escolhido para
homenageá-las, você, leitora, receba uns parabéns daquele seu chefe misógino e
machista. A contragosto, é possível que ele seja capaz de alguma gentileza e,
de quebra, distribua rosas para as mulheres com as quais divide, por certa
imposição, o espaço.
As
mulheres vivem dias difíceis; o salário menor, considerando-se o desrespeito
como ser humano e MULHER, é algo de pequena monta. Relatos sobre agressões
físicas e verbais pululam na imprensa. O recente episódio da paisagista
espancada por longas quatro horas na Barra, Rio de Janeiro, revela a escalada
da violência. Ainda no Rio, no Leblon, uma tentativa de estupro só não chegou a
termo porque a mulher foi socorrida por frequentadores do bar. O curioso, neste
caso, foram as intimidações[1]
que a família do agressor impuseram à vítima, mostra de que até mesmo a
violência é seletiva. Se o estuprador é alguém que não conheço, aponto o dedo,
grito, xingo, esperneio e comento; se é da minha família, procuro entender suas
razões, atenuo o fato, crio mentiras. Esse é o universo em que as mulheres,
assediadas ou não, vivem, um universo em que a culpada é sempre a vítima.
O
porquê disso é assunto para especialistas de fato; o que posso afirmar é que a
violência contra a mulher é uma senhora idosa – plagiando certa figura
política. Tome-se, por exemplo o caso de Hipátia de Alexandria. Hipátia foi a
primeira mulher da história exterminada por ter sido uma cientista. Conhecer um
pouco de sua vida (os dados não são muitos) é compreender um pouco do declínio
de Alexandria.
Hipátia
nasceu por volta do ano de 370 e era filha de Téon de Alexandria, homem
conhecido como “o mais sábio dos filósofos” e membro importante do Museu de
Alexandria. Téon escreveu tratados sobre astronomia, geometria e música;
renomado erudito, comentou as Tabelas de
Ptolomeu, divulgou os Elementos de
Euclides para seus alunos de Bizâncio - que os utilizariam por décadas –, foi
autor de textos sobre a iniciação dos órficos e de poemas como os que lhe foram
atribuídos pela Anthologia graeca,
que evocam o caos do cosmos e a obra do próprio Ptolomeu.
Hipátia
foi sua colaboradora obstinada e rapidamente ultrapassou-o em tudo, dominando completamente
a matemática de seu tempo, além de versar sobre filosofia, astronomia,
religião, oratória, retórica, poesia, artes etc. Hipátia escreveu textos densos
como os Comentários sobre a aritmética de
Diofanto e os Comentários sobre os cônicos
de Apolônio de Perga e outros.
Hipátia
foi também uma professora dedicada; dava cursos a grupos de iniciados e seu
neoplatonismo obedecia a seu amor pela doutrina geométrica. Influenciada por
Platão e Plotino, escolheu a via esotérica e teve a sorte de encontrar um
público atento e interessado. Conta-se que as pessoas disputavam a oportunidade
de assistir a seus cursos e que os altos funcionários de Alexandria iam até ela
em busca de conselhos, caso de Orestes, o prefeito da cidade, o que despertou a
inveja da homarada conservadora e religiosa de plantão.
Na
primavera de 415, uma turba de monges devotos, liderados por um certo Pedro,
discípulo do venerável Cirilo, bispo de Alexandria, sequestrou Hipátia e acusou-a
de bruxaria. No momento de sua prisão, ela estava em uma conferência,
defendeu-se, gritou, mas ninguém ousou ajudá-la. O medo abateu-se sobre o público
petrificado e os monges a levaram até a igreja do Cesareum. Lá, à vista de todos, começaram a espancá-la brutalmente,
arrancaram seus olhos e sua língua. Depois de morta, levaram seu corpo a um
lugar chamado Cinaron e o esquartejaram, extraindo os órgãos e os ossos; por
fim, queimaram o resto em uma fogueira.
Orestes,
o prefeito da cidade, ordenou uma investigação sobre a morte de Hipátia e nomeou
um certo Edésio como responsável; este, honestíssimo, não demorou a receber uns
caraminguás de Cirilo para esquecer tudo e seguir em frente. Orestes, por sua
vez, teve que deixar a cidade, de modo que o assassinato de Hipátia continuou
impune.
De
minha parte, desejo a todas as Hipátias mais amor – se é que é possível em meio
a tanta selvageria!
Imagem:
Afresco Pompeia, Donna con tavolette
cerate e stilo (consideratta ‘Saffo’)
[1] https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/26/ela-sofreu-tentativa-de-estupro-em-bar-no-rj-lutei-mas-fiquei-sem-forca.htm
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