Revista Philomatica

quarta-feira, 6 de março de 2019

Março Mulher


Estamos em março, mês dedicado às mulheres. É provável que no dia oito, escolhido para homenageá-las, você, leitora, receba uns parabéns daquele seu chefe misógino e machista. A contragosto, é possível que ele seja capaz de alguma gentileza e, de quebra, distribua rosas para as mulheres com as quais divide, por certa imposição, o espaço.
As mulheres vivem dias difíceis; o salário menor, considerando-se o desrespeito como ser humano e MULHER, é algo de pequena monta. Relatos sobre agressões físicas e verbais pululam na imprensa. O recente episódio da paisagista espancada por longas quatro horas na Barra, Rio de Janeiro, revela a escalada da violência. Ainda no Rio, no Leblon, uma tentativa de estupro só não chegou a termo porque a mulher foi socorrida por frequentadores do bar. O curioso, neste caso, foram as intimidações[1] que a família do agressor impuseram à vítima, mostra de que até mesmo a violência é seletiva. Se o estuprador é alguém que não conheço, aponto o dedo, grito, xingo, esperneio e comento; se é da minha família, procuro entender suas razões, atenuo o fato, crio mentiras. Esse é o universo em que as mulheres, assediadas ou não, vivem, um universo em que a culpada é sempre a vítima.
O porquê disso é assunto para especialistas de fato; o que posso afirmar é que a violência contra a mulher é uma senhora idosa – plagiando certa figura política. Tome-se, por exemplo o caso de Hipátia de Alexandria. Hipátia foi a primeira mulher da história exterminada por ter sido uma cientista. Conhecer um pouco de sua vida (os dados não são muitos) é compreender um pouco do declínio de Alexandria.
Hipátia nasceu por volta do ano de 370 e era filha de Téon de Alexandria, homem conhecido como “o mais sábio dos filósofos” e membro importante do Museu de Alexandria. Téon escreveu tratados sobre astronomia, geometria e música; renomado erudito, comentou as Tabelas de Ptolomeu, divulgou os Elementos de Euclides para seus alunos de Bizâncio - que os utilizariam por décadas –, foi autor de textos sobre a iniciação dos órficos e de poemas como os que lhe foram atribuídos pela Anthologia graeca, que evocam o caos do cosmos e a obra do próprio Ptolomeu.
Hipátia foi sua colaboradora obstinada e rapidamente ultrapassou-o em tudo, dominando completamente a matemática de seu tempo, além de versar sobre filosofia, astronomia, religião, oratória, retórica, poesia, artes etc. Hipátia escreveu textos densos como os Comentários sobre a aritmética de Diofanto e os Comentários sobre os cônicos de Apolônio de Perga e outros.
Hipátia foi também uma professora dedicada; dava cursos a grupos de iniciados e seu neoplatonismo obedecia a seu amor pela doutrina geométrica. Influenciada por Platão e Plotino, escolheu a via esotérica e teve a sorte de encontrar um público atento e interessado. Conta-se que as pessoas disputavam a oportunidade de assistir a seus cursos e que os altos funcionários de Alexandria iam até ela em busca de conselhos, caso de Orestes, o prefeito da cidade, o que despertou a inveja da homarada conservadora e religiosa de plantão.
Na primavera de 415, uma turba de monges devotos, liderados por um certo Pedro, discípulo do venerável Cirilo, bispo de Alexandria, sequestrou Hipátia e acusou-a de bruxaria. No momento de sua prisão, ela estava em uma conferência, defendeu-se, gritou, mas ninguém ousou ajudá-la. O medo abateu-se sobre o público petrificado e os monges a levaram até a igreja do Cesareum. Lá, à vista de todos, começaram a espancá-la brutalmente, arrancaram seus olhos e sua língua. Depois de morta, levaram seu corpo a um lugar chamado Cinaron e o esquartejaram, extraindo os órgãos e os ossos; por fim, queimaram o resto em uma fogueira.
Orestes, o prefeito da cidade, ordenou uma investigação sobre a morte de Hipátia e nomeou um certo Edésio como responsável; este, honestíssimo, não demorou a receber uns caraminguás de Cirilo para esquecer tudo e seguir em frente. Orestes, por sua vez, teve que deixar a cidade, de modo que o assassinato de Hipátia continuou impune.
De minha parte, desejo a todas as Hipátias mais amor – se é que é possível em meio a tanta selvageria!


Imagem: Afresco Pompeia, Donna con tavolette cerate e stilo (consideratta ‘Saffo’)


[1] https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/26/ela-sofreu-tentativa-de-estupro-em-bar-no-rj-lutei-mas-fiquei-sem-forca.htm

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