Revista Philomatica

terça-feira, 20 de julho de 2010

Maupassant, Le Horla e a sífilis

Em 1494, ano que o exército de Carlos VIII, rei da França, invadiu a Itália para conquistar a cidade de Nápoles, também ficou registrado como o ano da primeira infecção em massa causada pela sífilis, doença traiçoeira devido à combinação de duas características assustadoras: a ágil capacidade de transmissão e o silêncio, já que os sintomas sequer são notados pelo portador. A invasão de 1494 ganhou, então, um atributivo: “guerra da fornicação”. Isso porque se estima que a metade dos 12000 soldados franceses que dela fizeram parte, foi acometida pela sífilis que, à época, passou a ser chamada de “mal francês”.
Ao descrever a doença, o poeta italiano Girolano Francastoro, referiu-se ao mito grego do pastor Syphilus, que amaldiçoou Apolo e foi punido com o que seria essa doença venérea, daí o nome atual – sífilis.
A doença, sexualmente transmissível, causada pela bactéria Treponema pallidum, tem três fases distintas: primária, secundária e terciária. Cada um dos estágios apresenta sintomas muito diferentes (quase, ou mesmo imperceptíveis, não mais que algum desconforto que o paciente jamais liga à doença), porém, algumas pessoas experimentam uma fase latente – sem sintomas, entre a fase secundária e terciária. Essa latência pode durar anos ou até mesmo décadas, o que faz com que muitos pensem que não estão mais doentes, quando, já em etapa avançada a sífilis causa os maiores estragos e a bactéria começa a matar os neurônios. Em fase inicial, o processo infeccioso é estancado pelo uso de antibióticos, procedimento que, no final, nem sempre é eficaz.
A origem geográfica da sífilis é muito discutida. Enquanto alguns cientistas acreditam que o mal tenha se originado no Velho Mundo, outros responsabilizam Cristóvão Colombo por tê-la levado para a Europa a partir do Novo Mundo. Independentemente da sua origem, a sífilis difundiu-se gradualmente em toda a Europa, ganhando muitas alcunhas à medida que se alastrava. Hoje, a sífilis é mais comum em países do terceiro mundo, embora casos continuem a surgir nos Estados Unidos, especialmente no sul do país.
Muitas personalidades históricas sofreram ou tiveram causa mortis atribuída à infecção por sífilis: Guy de Maupassant, Flaubert, Scott Joplin, Hugo Wolf, Al Capone, Joyce, Schubert, Beethoven, Oscar Wilde, entre outros. Em muitos destes casos, a morte foi precedida de psicose, provavelmente como resultado de neurossífilis. Leo Tolstoy teve sífilis quando adolescente, mas foi tratado com sucesso fazendo uso de arsênico. Outros, que acreditam ter sofrido de sífilis incluem Henrique VIII, Vincent van Gogh, Adolf Hitler e Friedrich Nietzsche. Na maioria dos casos, a infecção não foi documentada, mas os doentes apresentaram sintomas que sugerem fortemente a sífilis.
Maupassant contraiu a doença ainda muito jovem, por volta dos 20 anos. Os primeiros problemas apareceram a partir de 1875 ou 1876. A doença evoluiu e causou crescente desordem mental. Primeiro, sofreu de palpitações, irritações da pele e insuficiência respiratória agravada pelo fato de fumar, depois, os sintomas aumentaram. Em 1880, começou a ter problemas de visão e perdeu progressivamente a visão do olho direito. Terríveis dores de cabeça o levaram a fazer uso do éter, substância que acreditava aliviar suas constantes enxaquecas e despertar sua criatividade literária. A doença não deu trégua: Maupassant é vítima de alucinações e vê frequentemente seu double – seu outro eu. Sobre isso, escreveu a Paul Bourget: “Une fois sur deux, en rentrant chez mois, je vois mon double”. Aos 43 anos, em 6.7.1883, internado em uma clínica em Passy, se suicidou cortando a garganta.
Os críticos têm traçado o desenvolvimento de sua doença através de suas histórias semi-autobiográficas de psicologia anormal. Porém, o tema de transtorno mental está presente em La Maison Tellier (1881), publicado no auge da sua saúde. Uma das histórias mais perturbadoras de Maupassant é o conto Le Horla (1887), curiosamente, um caso de loucura progressiva rumo ao suicídio. O protagonista sem nome talvez seja um sifilítico.
Impossível não ser tocado pelo Le Horla, de Maupassant. O conto é uma história perturbadora inteiramente deslocada do tempo e do universo das fábulas, algo geralmente fornecido pelo autor. A narrativa – talvez pelo fato de soar semi-autobiográfica é uma exploração íntima, uma violação da alma humana, tal a precisão da escrita, a clareza, a delicadeza de detalhes e a escolha de cada frase, de maneira a imprimir uma tensão crescente, que se transforma em pânico e desemboca numa loucura que, pouco a pouco, em tom crescente, consome a personagem.
A exemplo de muitas histórias, outras tantas de Maupassant podem ser lidas e, depois, esquecidas. O conto Le Horla, entretanto, tem um jeito de segredo contado às escondidas, em momento imprevisível, uma confidência cercada de uma série de detalhes que impedem seu esquecimento e faz com que nos lembremos da confissão sempre que nos deparamos com um objeto, uma cor, uma luz, um som, enfim, algo similar ao que se experimentou no instante da revelação. Impossível não levar o segredo consigo por todo e qualquer lugar.
Quelle journée admirable! É 8 de maio e o herói desta história, às margens do Sena, vê passar um navio brasileiro de três mastros, todo branco, admiravelmente limpo e reluzente. Sente tanto prazer que acena alegremente para o navio. Logo, em 12 de maio, começa a sentir uma agitação que se tornará cada vez mais intensa. Nas suas alucinações, imagina um ser em forma humana, que talvez tivesse saltado do barco para assombrá-lo. Descreve-o em seu diário e afirma que ele é capaz de feitos cada vez mais improváveis: à noite, esse fantasma, vampiro - seja lá o que for, debruça-se sobre ele para beber-lhe a vida e a razão. A partir de então passa a conviver com essa criatura, numa coabitação insuportável, a ponto de providenciar que sua casa seja queimada, na esperança de se livrar desse seu double, porém, esquecendo seus empregados no interior da casa. Só então percebe que talvez a criatura esteja em si mesmo: “Non… non… sans aucun doute, sans aucun doute… il n’est pas mort… Alors… alors… il va donc falloir que je me tue, moi!”
Esse duplo – diabólico? de nome Horla soa como uma imposição, um exorcismo sem efeito. Além disso, o conto - em formato de diário, leva, evidentemente, o leitor a hesitar entre o fantástico e a loucura do narrador – no caso, do autor. Donde a pergunta: Onde acaba a realidade; onde começa a arte? De qualquer forma Le Horla soa autobiográfico, uma confissão de um autor paranóico a bordo de uma esquizofrenia galopante.
Maupassant morre três anos mais tarde, consumido pela loucura, depois de duas tentativas de suicídio. Uma história curta e eficiente, uma narrativa de equilíbrio perfeito entre a razão e a intuição. É Maupassant a buscar em seu próprio terreno Edgar Allan Poe.
Para encerrar a prosa: por que me lembrei da sífilis e de Maupassant? Inacreditavelmente, semana passada, li um artigo descrevendo o aumento da sífilis no país. Hoje, oficialmente, há um milhão de infectados, mas, acredita-se, na verdade, esse número é muito maior.
E eu que pensei que a sífilis fosse um mal do século XIX...


Le Horla - Manuscrit - Última página

La maison, maintenant, n'était plus qu'un bûcher horrible et magnifique, un bûcher monstrueux, éclairant toute la terre, un bûcher où brûlaient des hommes, et où il brûlait aussi, Lui, Lui, mon prisonnier, l'Être nouveau, le nouveau maître, le Horla ! Soudain le toit tout entier s'engloutit entre les murs et un volcan de flammes jaillit jusqu'au ciel. Par toutes les fenêtres ouvertes sur la fournaise, je voyais la cuve de feu, et je pensais qu'il était là, dans ce four, mort... Mort ? Peut-être ?... Son corps ? son corps que le jour traversait n'était-il pas indestructible par les moyens qui tuent les nôtres ? S'il n'était pas mort ? Seul peut-être le temps a prise sur l'Être Invisible et Redoutable. Pourquoi ce corps transparent, ce corps inconnaissable, ce corps d'Esprit, s'il devait craindre, lui aussi, les maux, les blessures, les infirmités, la destruction prématurée? La destruction prématurée ? toute l'épouvante humaine vient d'elle ! Après l'homme, le Horla - après celui qui peut mourir tous les jours, à toutes les heures, à toutes les minutes, par tous les accidents, est venu celui qui ne doit mourir qu'à son jour, à son heure, à sa minute, parce qu'il a touché la limite de son existence ! Non... non... sans aucun doute, sans aucun doute... il n'est pas mort... Alors... alors... il va donc falloir que je me tue, moi !...



Imagens: Ilustrações para o conto Le Horla; Guy de Maupassant e Manuscrito do conto Le Horla; todas disponíveis no Google Images.

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