Revista Philomatica

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Ainda sobre o romance

Há dias, questionava aqui sobre o que nos move à leitura; conclui pela pluralidade do romance, sua polifonia, e trouxe de arrasto a ideia veiculada por Ronald Shusterman, especialista em estética, de que "Ficção não é o conhecimento". Comentei que a questão provoca certa cisão entre especialistas dos mais diversos campos do conhecimento - literários, sociólogos, historiadores, cientistas cognitivos - entre outros, que comumente indagam sobre que tipo de conhecimento específico traz o romance. Finalizei admitindo que o romance é um veículo de autoconhecimento, não sem antes sinalizar que alguns romances podem reconstituir um universo histórico ou social, decodificar relações sociais e nos informar de maneira vibrante sobre a psicologia humana. Basta ler Zola, a Comédie Humaine de Balzac e tantos outros.
Mas, reduzir o romance a isto é muito pouco. Como já disse, ele é plural, porém, afirmar essa pluralidade implica admitir que o romance também é condutor de ideias científicas e filosóficas, ainda que dissimuladas ao longo de uma trama, despidas do rigor científico e inseridas em um discurso suscetível de incertezas, em razão da subjetividade do contexto. Mas é inegável que dali podem surgir personagens modelos que, coladas à teoria, funcionam como vulgarizadores de ideias filosóficas e científicas, às vezes, à primeira vista, enigmáticas, incompreensíveis, por que não, inalcançáveis.
Dentro desse contexto, por exemplo, L'Étranger, de Camus (1942) é de certa forma uma síntese dos principais temas da filosofia existencial: a solidão, a morte, a alteridade, o absurdo. Mas, como bem observou Roland Barthes[1], o que faz de L'Étranger um obra literária e não uma tese, é que o homem aí presente não se reduz ao seu caráter moral, mas traz consigo certo humeur, ou seja, no sentido literal da palavra, um estado de espírito ou de ânimo, uma disposição, enfim, algo emotivo que condiciona seu próprio caráter e a qualidade de suas relações ao meio em que vive.
Guardadas as devidas proporções, você, leitor, poderia dizer exatamente a mesma coisa sobre a literatura de Clarice Lispector, que de certa maneira nos informa uma psicologia existencial porque ousou desvelar em seus escritos as profundezas da alma ou, como querem outros, porque soube exatamente como proteger-se em zonas de sombra, fazendo-se mistério, precisamente o que nos faz vislumbrar em sua obra uma virtude essencial, dada a atmosfera única em que emerge. Ambiente e atmosfera de um mundo imerso em papel; drama existencial ou humor de personagens inventadas do nada, ou melhor, da própria essência e da lucidez ou caos da alma. Quando a lemos, intuitivamente sentimos que as palavras da autora quer dizer algo do nosso tempo a nós mesmos. Algo que sabemos, já sentimos, experimentamos. Criamos uma cumplicidade. Afinal, é alguém que nos entende e aí, como disse há dias, nos conhecemos. É o autoconhecimento via romance. Isto ocorre precisamente porque a textura das palavras é feita de sonhos, não de fatos e ideias, muito embora o romance também enriqueça nossa competência linguística e contribua para nossa melhor apreensão da realidade. O romance, ainda que visto com desdém, de soslaio, por parte (hoje - poucos, acredito) da intelligentsia, é a prova da capacidade da ficção em mostrar aquilo que a filosofia não consegue demonstrar.
A arte do romancista consiste em ver o mundo, ao passo que a arte do leitor vale-se dos olhos de um outro, o narrador. Dessa forma, o romance nos permite viver uma multiplicidade de vidas, seja na pele de um marginal, um detetive, um amante, um ditador ou um louco. Logo, a ficção nos dá vidas por procuração, ou seja, ela age, ao longo de nossa existência, como um multiplicador de experiência. Isso nos coloca em contato com a complexidade de nossas próprias vidas, ainda que a partir de vidas semelhantes - ou por que não, estranhas às nossas.
Assim, dentro desse contexto, o leitor experimenta situações que não pode viver na realidade, pode escolher algumas situações, negar outras, e obter os benefícios dessas experiências sem incorrer no perigo real (é a velha tranquilidade da catarse). Nesse sentido, um dos aspectos mais marcantes da leitura de um romance consiste em sua função telepática. Ao ler um romance, o leitor pode perfeitamente proferir ideias que não são suas, isto é, que normalmente não sustenta ou apóia.
Com isso, ao avançar pela leitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis (1899), inclino-me a apoiar o eu que se expressa. Vejo-me levado pelo que se passa na cabeça de Bentinho em suas crises de ciúme, ainda que nada haja ali que prove a infidelidade de Capitu. Essa interiorização do outro explica uma intimidade excepcional que sentimos com relação a certos personagens. Sentimo-os viver, falar e agir em nós. Essa experiência especial, às vezes, perturbadora, por vezes é hilariante e nem mesmo o cinema consegue reproduzir. Por isso, é compreensível que a adaptação de romances para a tela seja muitas vezes tão decepcionante.
Processo cognitivo, a leitura revela-se, portanto, também um processo afetivo extremamente poderoso e emocionante. Umberto Eco já comparou a leitura de um romance a um jogo de xadrez. Ora, o jogo de xadrez combina duas funções bem distintas: o jogo e a diversão. O jogo está ligado à reflexão, está enraizado na razão, faz apelo à inteligência, à capacidade de estratégia; a diversão está fincada no imaginário, no lúdico. No universo da leitura, a diversão provoca um jogo de papéis com base na identificação com uma figura imaginária - a personagem. Concluindo: se o leitor decidir partir em viagem com a personagem, fugir com ela, viajar no tempo e participar de intrigas e aventuras mirabolantes, nada o impedirá de fazer suposições sobre o resto da história e manter um espírito crítico. Este modelo tem o mérito de restabelecer a viagem imaginária, proposta por qualquer narrativa de ficção, sem esquecer a dimensão reflexiva da leitura.
Para encerrar a prosa, esse contexto fez com que alguns teóricos da literatura questionassem sobre as noções de prazer, de emoção e de fuga provocadas pela leitura, porque, afinal, a maioria dos leitores afirma que ao ler romances pensa muito mais em escapar da realidade e em buscar algo divertido, que pensar, aprender e adquirir conhecimento; evidência que ultimamente tem recebido o olhar de novos e importantes estudiosos e que foi, acreditem, por muito tempo desprezada pela teoria literária.

[1] BARTHES, Roland. "L’Étranger, roman solaire", In Œuvres complètes, t. I, 1942-1961, 1993, rééd. Seuil, 2002. Diz Barthes: "ce qui fait de L’Étranger une œuvre, et non une thèse, c’est que l’homme s’y trouve pourvu non seulement d’une morale, mais aussi d’une humeur".
Imagens: Mulher lendo, de Fernando Botero, livros antigos e ilustração de Albert Camus, por Emmanuel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário