Há dias, quando comentei as estripulias sexuais do Imperador D. Pedro I e, obviamente, os embaraços causados pela alta taxa de fecundidade em cama alheia, mencionei en passant um caso curioso nas crônicas da extensa relação Brasil-França - o do índio carijó Essomericq. Hoje, bati os olhos em um livrinho na estante, que adquiri ano passado, e me lembrei de uma outra história não menos singular: trata-se de Uma Festa Brasileira celebrada em Rouen em 1550, de Ferdinand Denis - Une fête brésilienne célébrée à Rouen en 1550; publicado originalmente em Paris no ano de 1850 e relançado em 2007, em edição bilíngue, pela Editora Usina de Ideias.
Não só porque são histórias que se sucedem, mas também porque são deliciosas, eis mais alguns detalhes: engana-se quem pensa que uma vez fincados os pés cá os portugueses não tiveram mais dor de cabeça. Pelo contrário, o imenso território recém descoberto despertava muita curiosidade e cobiça. E o povo daqui era uma atração a parte: os indígenas brasileiros provocaram forte impacto nos viajantes europeus ao se mostrarem desnudos, pintados, dançando ou, eventualmente, como bem retratou Hans Staden, devorando uns aos outros em pantagruélicos banquetes antropofágicos. Aliás, Staden, uma das personagens mais cativantes do Brasil colonial só não foi parte do cardápio porque além de se fazer passar por francês - povo que à época era aliado dos Tupinambás, chorava e gemia toda vez que ia ser devorado, o que fazia com que os nativos o considerassem impróprio para o abate. Cá entre nós, acredito que já desconfiavam que a adrenalina compromete a qualidade da carne.
Mas, voltemos a Essomericq. A presença dos franceses foi quase que simultânea a dos portugueses na costa brasileira. Em 1504, o navio L'Espoir, procedente da Normandia e capitaneado por Binot Paulmier de Gonneville, aportou em Santa Catarina. Ali, os marujos permaneceram por seis meses e estabeleceram relações - nesse caso, com os pacíficos índios carijós. O que se sabe dos primórdios desses contatos entre brasileiros e franceses deve-se, em boa parte, a uma espécie de boletim de ocorrência, dessa embarcação, que naufragou na volta à França, devido ao ataque de piratas no canal da Mancha. O documento trazia dados sobre um índio de 15 anos que fora levado por Gonneville, com a promessa de que seria devolvido a seu pai, o cacique da tribo carijó, ao fim de vinte luas, fato que jamais ocorreu.
Ao que tudo indica, o capitão tencionava trazê-lo de volta, porém, a empreitada mostrou-se uma peripécia desencorajadora e Essomericq, que havia escapado a nado, foi rebatizado Binot e como recompensa, casou-se com uma das nobres parentas do capitão, Marie Moulin Paulmier. O casal teve 14 filhos e o índio viveu na França por 95 anos. A história só veio à tona porque em 1658, Luís XIV instituiu o imposto de ádvena, uma taxa a ser paga por estrangeiros. Sem entender, os descendentes acabaram por reconhecer que tiveram um ancestral princípe das terras austrais, depois que o abade Jean Paulmier de Courtonne recorreu ao Almirantado de Rouen para obter uma cópia da declaração de viagem do capitão Binot de Gonneville. O bisneto de Essomericq interessou-se pela aventura do capitão e, não obstante a interpretação errônea de sua origem, haja vista que as duas expedições organizadas no século XVIII para atingir as terras austrais fracassaram, só muito mais tarde é que se veio saber que o avô de Paulmier de Courtonne era um habitante da terra dos papagaios.
Voltemos a Rouen: há quase cinco décadas, em 1550, a cidade em que Jeanne D'Arc foi queimada e que nos presenteou com Flaubert, foi palco de um evento inusitado, patrocinado por armadores e comerciantes da cidade, interessados em convencer o rei Henri II e a rainha Catherine de Médicis a investir mais nas expedições ilegais ao Brasil. Em 1 de outubro de 1550, quando da visita real à cidade, Henri II, Catherine de Médicis, Marguerite, a filha do rei, Mary Stuart, da Escócia, duques, condes, barões e embaixadores da Espanha, Inglaterra, Alemanha e Portugal, viram um espetáculo grandioso. Quem também esteve presente aos festejos foi Nicolas de Villegaignon, que aqui fundaria a efêmera France Antarctique. Em Rouen, entre carrosséis, desfiles, danças e outras diversões, viu-se a teatralização da vida selvagem brasileira. Às margens do Sena, o cenário era impressionante: havia árvores enfeitadas com flores e frutos do Brasil e a maquete de uma aldeia ali instalada estava repleta de saguis, papagaios e micos. Os índios, por entre as malocas, circulavam desnudos e bronzeados. Eram cerca de trezentos homens e mulheres. De fato, pelos menos cinquenta deles eram Tupinambás originários do Maranhão e da Bahia, que para ali foram levados especialmente para a comemoração. O restante da troupe era composta de marinheiros normandos que tinham bom conhecimento do Brasil - muitos, fluentes em tupi e habituados ao trato com os nativos. O elenco feminino ficou por conta das prostitutas locais.
Mais que uma exibição, o que se viu ali foi verdadeira mostra de como se passava a vida aquém do oceano. Índios e figurantes pescavam, caçavam, namoravam nas redes, colhiam frutas e transportavam pau-brasil. Houve inclusive uma simulação de ataque à aldeia tupinambá, que foi assaltada por um bando de índios Tabajaras, os quais, no Brasil, eram aliados dos portugueses. No combate simulado, árvores vieram ao chão, canoas foram viradas e ocas foram incendiadas. Ao fim do ataque, óbvio, os Tupinambás, aliados dos franceses, derrotaram os Tabajaras.
Durante muito tempo ainda os indígenas brasileiros continuariam despertando a curiosidade dos europeus, causando sensação e inspirando teorias. Três Tupinambás do Maranhão, em 1613, foram batizados e enviados à Corte francesa, onde exibiram seus dotes musicais, tocando maracas. A partir de então os contatos são sucessivos. Há Montaigne que, em Des Cannibalis, ao comparar os Tupinambás aos europeus, tenta mostrar a barbárie da ação destrutiva destes últimos. Depois vem Rousseau com o mito do bon sauvage, depois, bem depois, veio a literatura dos franceses. Em troca despejamos muito de nossa riqueza natural na Europa e também depois, bem depois, face à escassez de índios, e, quando passamos a crer piamente que quem não gosta de samba bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou doente do pé, mandamos o samba. E você, leitor, acha pouco?
Imagens: Figure des Brifilians, Fête brésilienne donnée à Rouen en l'honneur du roi Henri II, 1550; L’Entrée Royale d’Henri II et Catherine de Médicis à Rouen en 1550 e reprodução do livro de Hans Staden, canibais em ritual antropofágico.
Eu acho é muito!
ResponderExcluirEu acho é muito!
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