As eleições estão quase terminadas. Lá pelo final do mês saberemos que tipo de erva daninha haverá de invadir nosso canteiro. Voltaire já dizia: "Il faut cultiver notre jardin", portanto, ainda que a tiririca insista em infestar seu jardim, saiba que você ficou livre de plantinhas tão ou bem piores, o que já é um consolo, considerando-se que o solo anda tão solapado.
Não pretendia começar pela política torva e sanhuda, porém, tal qual aquela borboleta que pousava ora numa flor ora noutra e que Machado comparou a si mesmo à cata de ideias, lembrei-me de algumas eleições e presidentes - sem nostalgia, absolutamente. Recordei-me de nomes e palavras que usávamos quando nos referíamos a este ou àquele. Logo, pensei: aquele que se aventurar pelo universo literário há de se deparar com uma multiplicidade de nomes para falar de seus diversos momentos. Tentei, não sem esforço, me lembrar das várias designações literárias (que coloco aqui só para reforçar a memória): o humanismo e sua emancipação do espírito; o barroco e seu volume; o classicismo e toda sua ordenação do universo; as Luzes e a emancipação da razão; o romantismo com sua exaltação do eu e o sentimento ligado à natureza; a modernidade e a procura pela originalidade; o realismo e a construção do verdadeiro; o simbolismo e suas correspondências; o surrealismo, seus fantasmas e suas provocações, e, finalmente, a cultura contemporânea com suas contradições, suas experiências e, muitas vezes, sua falta de rumo.
Tudo isso para chegar num assunto que me intrigou ao longo da semana quando li um texto em que Borges discutia sobre o mito da originalidade. Como é sabido, até o classicismo, adicionava-se mais um elo à corrente, ou seja, recontava-se a mesma história, utilizando-se ora ou outra de novas formas, por exemplo. Racine reescreveu a Fedra, de Eurípedes, em versos alexandrinos e ninguém o acusou de plágio!
Afinal, quando foi que o escritor sentiu o escrúpulo da originalidade? Em que momento, durante seu vôo de borboleta, sentiu-se constrangido em pousar em uma ideia-flor do jardim alheio e dali subtrair seu pólen?
É sabido que Platão e, posteriormente, Aristóteles, tomaram emprestado frases e metáforas de Homero, Hesíodo, Píndaro, Eurípedes etc. Até então, tudo bem: nada de leis regulatórias e direitos autorais, portanto, nada de plágio. Séculos mais tarde, ainda antes da era cristã, continua tudo parecido, os escritores ainda não estão conscientes da ideia de originalidade, porém, alguns poucos já começam a justificar seus empréstimos.
Um belo exemplo disto, conforme observado por Pietro Citati, escritor e crítico, aclamado como um exímio leitor e capaz de apreender e comunicar profundas interpretações dos textos clássicos, o apóstolo João, autor do Apocalipse, não foi nem um vidente ou um visionário: seu mundo era repleto de livros. Inconscientemente, João nos diz em versículos famosos, que ele também teria se apropriado do texto de outrem: ele come[1], engole livros cujo papel penetra em seu ventre: Êxodo, Isaías, Ezequiel, Daniel, Zacarias, Joel ... etc. João combina, mistura, ordena, reorganiza e refina imagens construidas por outros profetas, dos quais ele se apropriou. Como numa espécie de embriaguez alucinatória, João processa o que havia engolido. E assim, Apocalipse, o texto, que nasceu não de uma experiência visionária, tornou-se o maior texto visionário do Ocidente.
Décadas antes do Apocalipse, de João - escrito, acredita-se, por volta do ano de 96 - Sêneca justifica sua maneira de apropriar-se das frases de Epicuro. Há pouco sentido, afirma ele, redizê-las sob forma de citação, uma vez que não são propriedade intelectual de Epicuro, mas bem comum de sua escola, ou seja, já eram uma espécie de domínio público. Sêneca afirmava ainda que é um sinal de pobreza de espírito querer manter suas próprias ideias, sob a autoridade dos outros. E acrescentava: é necessário assimilar pensamentos e ideias, sem contudo, viver sob a dependência dos livros ou dos seus autores, fazer sua qualquer noção adquirida, sem se apegar a um modelo, sem, a cada volta, olhar para trás para garantir a aprovação do mestre.
Um século depois de Sêneca e, pelo menos meio século após o Apocalipse, de João, veio Lucius Apuleius (Apuleio), cavalheiro rico da África, considerado o maior escritor em prosa latina de todos os tempos. Escreveu Metamorphoseon Libri XI (Onze livros de metamorfose), mais conhecida como O asno de ouro . Para os especialistas, O Asno de Ouro é um plágio, ou antes a combinação de numerosos plágios de diversos escritores, de modo que, para Apuleio, a escrita não é, estritamente falando, uma criação, mas a metamorfose de uma frase, de uma metáfora, de um padrão já utilizado por outros.
Apuleio, diz Pietro Citati, era um plagiador, um artista marqueteiro, mas Metamorphoseon Libri XI é provavelmente o romance mais original que já foi escrito, sem o qual, jamais poderíamos imaginar nem Decamerão, nem a pintura do Renascimento italiano, ou a mística ocidental de todas as idades, nem Dom Quixote, ou A Flauta Mágica, ou Nerval ou mesmo Wilhelm Meisters Lehrjahre (Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister), de Goethe.
Para encurtar a prosa e também porque hoje o tempo é curto, continua valendo a velha máxima: quem conta um conto aumenta um ponto. E acrescento: até que se coloque o ponto ou posponto, em geral, há muita vírgula, muita pausa e muita história, donde a intertextualidade, mecanismo carregado de diferentes sentidos e utilizado à exaustão até tornar-se uma ideia ambígua do discurso literário. Isso porque o processo intertextual apresenta a vantagem de reagrupar diferentes manifestações de textos e verificar suas ligações e dependências recíprocas, de maneira a utilizar um texto em um outro texto[2]. A isso, leitor, chame como quiser: diálogo, trama, tecido, biblioteca etc, etc... Falo da intertextualidade na literatura, porém, entre as artes a intertextualidade está presente e é intensa. A arte pop, por exemplo, já mostrou a Mona Lisa, de maneiras que Da Vinci sequer imaginou. E até mesmo Marilyn Monroe caiu no jogo intertextual.
[1] Apocalipse, Capítulo 10, versículos 8, 9, 10 e 11. Diz João: "8. E a voz que eu do céu tinha ouvido tornou a falr comigo, e disse: Vai e toma o livrinho aberto da mão do anjo que está em pé sobre o mar e sobre a terra. 9. E fui ao anjo, dizendo-lhe: Dá-me o livrinho. E ele disse-me: Toma-o, e come-o, e ele fará amargo o teu ventre, mas na tua boca será doce como mel. 10. E tomei o livrinho da mão do anjo, e comi-o; e na minha boca era doce como mel; e, havendo-o comido, o meu ventre ficou amargo. 11. E ele disse-me: Importa que profetizes outra vez a muitos povos, e nações, e línguas e reis.
[2] SAMOYAULT, Tiphaine. L’intertextualité – Mémoires de la littérature. Paris: Armand Colin, 2005 (Littérature 128), p. 5-8.
Imagens (todas disponíveis no Google Images): St. John at Patmos (1518), de Hans Burgkmair the Elder (1473-1531); Mona Lisa (1988), de Paul Giovanopoulos; Marilyn Monroe e sua referência intertextual.
Adorei o post e as analogias feitas. Quanto à antropofagia literária, lembrei-me de uma passagem que li recentemente em Murilo Mendes. Diz ele: "No tempo em que eu não era antropófago, isto é, no tempo em que não devorava livros - e os livros não são homens, não contem a substância, o próprio sangue do homem?..." É a mais pura verdade... (Regina)
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