Algumas polêmicas
como La querelle des anciens et des modernes e controvérsias
como La querelle sur la poésie e La querelle sur
Racine foram objeto de inúmeros debates e injetaram ânimo às
discussões. Há casos - como o problème Molyneux -, em que uma
simples indagação respondeu por centenas de páginas escritas, respingando, mais
de um século depois - via Diderot -, no Brasil oitocentista, quando Machado de
Assis colocou lenha na fogueira que Paula Brito armara nas páginas d'A
Marmota (1858), naquilo que se tornaria conhecido como Polêmica
dos cegos.
Hoje, vivemos
tempos em que tudo deve ser mais palatável, as palavras devem ser ruminadas por
aquele que escreve e depois regurgitadas de forma bem simplesinha para que o
leitor possa "captar a mensagem". Mas, pergunto, devemos nos pautar
por essa regra, sempre? Não há aí um certo nivelamento por baixo? Alguns
acreditam que assim é que deve ser, afinal vivemos em "um país em que
metade da população não leu uma só página de livro nos últimos três meses e a
média de tempo dedicado à leitura por dia é seis minutos", retomando
Danilo Venticinque, articulista da Revista Época, em artigo que
menciona uma crítica brasileira reclamona que intermitentemente ressurge das
catacumbas com seus purismos[1], mas não trata da diferença entre adaptação e simplificação.
Dada a quantidade
de pessoas - e opiniões -, notou-se claramente que nem de longe o assunto está
fadado a submergir sob a poeira, ao contrário do que postulam os partidários da
Escola do Ressentimento[4].
Afora o tema
tratado, chamou-me a atenção o fato de que o público presente hora ou outra
trazia à tona a escola. Por um instante, a educação foi relacionada à leitura
ou à falta dela, tornando-se ela mesma objeto de uma polêmica cuja agitação
afasta todo o pó, tornando-se perene em razão das dificuldades vividas por
professores e alunos frente à indiferença do poder público.
Por fim, também
veio à luz o abaixo-assinado em que leitores e críticos pediam a não
dilapidação do conto machadiano, quando se ressaltou que um outro articulista o
vira como um ato conservador, portanto, veículo contrário à liberdade de
expressão.
Embora a ocasião não permitisse
alongar a prosa para o campo das questões ditas libertárias, ficou claro que
parte da intelligensia, distante da interpretação estética,
preocupação mais individual que de sociedade, prefere interpretar a mutilação
da escrita machadiana sob o cunho da crítica social.
Escritores
influenciam outros escritores e, sobretudo, leitores. E, retomando Bloom, se o
"eu indivídual é o único método e todo o padrão para a apreensão do valor
estético" (2010: 37), ainda que esse "eu individual" só se
defina contra a sociedade, como o leitor apreciará a fina ironia machadiana em O Alienista se, num processo de ablação, os
funcionários de Patrícia Secco, encarregaram-se, principalmente, da mutilação
da escrita. Considerando-se que "não existem sinônimos
perfeitos"- como afirmou a Profa. Micheletti - , o problema se complica.
Por fim, como
rubriquei o tal abaixo-assinado, voltei para casa questionando meu lado
conservador, contrário à liberdade de expressão, essa prostituta que, a exemplo
da democracia, cada um usa como e quando quer... De estalo, depois de um
solavanco no metrô, lembrei-me do David de Michelangelo.
Ora, tome-se
obra-prima da escultura renascentista: a cabeça do David é muito maior do que
deveria ser, a mão direita também é muito maior que a esquerda, os pés, ao
contrário, são muito pequenos em relação ao resto do corpo e os olhos, afirmam
alguns especialistas, são olhos de míope! Mas tudo isso se encaixa muito bem na
questão da proporcionalidade, algo que contribuiu para a genialidade estética
de Michelangelo e ninguém, ao menos que eu saiba, tentou "consertar"
o David para facilitar a compreensão dos leigos em arte.
Agora, deixem-se
levar por uma mera suposição: considerem um escultor que se achando genial
decida arrumar a cabeça, a mão e os pés de Michelangelo. Poderia? Concordariam
todos; protestariam alguns? Os opositores, estes, estariam obstruindo a
liberdade de expressão?
No final das
contas, parece-me que a estupidez da Sra. Secco, com a benção da Lei Rouanet e
do MinC, contribuiu para o engrandecimento de Machado, isto porque, malgrado as
intervenções, o Alienista (o
de Machado!) que lemos hoje está muito mais rico depois das diversas leituras
e interpretaçoes que agora se incrustam ao conto.
Como se pode
observar, uma boa polêmica dificilmente se mantém sob a poeira. E, uma vez que
se mutilou Machado com a ajuda do contribuinte (sim! dinheiro público!), por
que este não pode esbravejar? Pedir silêncio, ah, isso já é demais!!!
[1] http://opiniocia.blogspot.com.br/2014/05/machado-de-assis-e-choradeira-dos.html.
[2] O debate fez parte do
evento "Livros em pauta" e teve como mediador Bruno Anselmi
Matangrano.
[3] CARRIÈRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record, 2010, 51.
[3] CARRIÈRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record, 2010, 51.
[4] Veja Harold Bloom em O Canône ocidental (Rio de Janeiro: Objetiva, 2010).
Imagens:
1. O Alienista - adaptação em quadrinhos de Fábio Moon e Gabriel Bá, Editora
Agir; 2. Mão de David - ambas extraídas do Google Images.
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