Revista Philomatica

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A "simplificação" d'O Alienista e a "mão forte" do David de Michelangelo

Algumas polêmicas como La querelle des anciens et des modernes e controvérsias como La querelle sur la poésie La querelle sur Racine foram objeto de inúmeros debates e injetaram ânimo às discussões. Há casos - como o problème Molyneux -, em que uma simples indagação respondeu por centenas de páginas escritas, respingando, mais de um século depois - via Diderot -, no Brasil oitocentista, quando Machado de Assis colocou lenha na fogueira que Paula Brito armara nas páginas d'A Marmota (1858), naquilo que se tornaria conhecido como Polêmica dos cegos.
Hoje, vivemos tempos em que tudo deve ser mais palatável, as palavras devem ser ruminadas por aquele que escreve e depois regurgitadas de forma bem simplesinha para que o leitor possa "captar a mensagem". Mas, pergunto, devemos nos pautar por essa regra, sempre? Não há aí um certo nivelamento por baixo? Alguns acreditam que assim é que deve ser, afinal vivemos em "um país em que metade da população não leu uma só página de livro nos últimos três meses e a média de tempo dedicado à leitura por dia é seis minutos", retomando Danilo Venticinque, articulista da Revista Época, em artigo que menciona uma crítica brasileira reclamona que intermitentemente ressurge das catacumbas com seus purismos[1], mas não trata da diferença entre adaptação e simplificação.
Bem, mas por que tudo isto? Porque neste final de semana[2] estive presente em um debate sobre a simplificação dos clássicos, onde se tentou, mais uma vez, emergir a polêmica de sob a poeira. Ali, numa conversa interessantíssima com as professoras Guaraciaba Micheletti e Helena Gomes, os presentes souberam que a adaptação contempla - e funciona - , sobretudo, através da transposição entre gêneros  - e como forma de suporte -, casos em que uma releitura para o cinema e a televisão leva a repensar o clássico e, quiçá, desperta a curiosidade, captando, assim, novos leitores, ao passo que a "simplificação" se insere no que chamamos mutilação [3]
Dada a quantidade de pessoas - e opiniões -, notou-se claramente que nem de longe o assunto está fadado a submergir sob a poeira, ao contrário do que postulam os partidários da Escola do Ressentimento[4]
Afora o tema tratado, chamou-me a atenção o fato de que o público presente hora ou outra trazia à tona a escola. Por um instante, a educação foi relacionada à leitura ou à falta dela, tornando-se ela mesma objeto de uma polêmica cuja agitação afasta todo o pó, tornando-se perene em razão das dificuldades vividas por professores e alunos frente à indiferença do poder público. 
Por fim, também veio à luz o abaixo-assinado em que leitores e críticos pediam a não dilapidação do conto machadiano, quando se ressaltou que um outro articulista o vira como um ato conservador, portanto, veículo contrário à liberdade de expressão. 
Embora a ocasião não permitisse alongar a prosa para o campo das questões ditas libertárias, ficou claro que parte da intelligensia, distante da interpretação estética, preocupação mais individual que de sociedade, prefere interpretar a mutilação da escrita machadiana sob o cunho da crítica social. 
Escritores influenciam outros escritores e, sobretudo, leitores. E, retomando Bloom, se o "eu indivídual é o único método e todo o padrão para a apreensão do valor estético" (2010: 37), ainda que esse "eu individual" só se defina contra a sociedade, como o leitor apreciará a fina ironia machadiana em O Alienista se, num processo de ablação, os funcionários de Patrícia Secco, encarregaram-se, principalmente, da mutilação da escrita. Considerando-se que  "não existem sinônimos perfeitos"- como afirmou a Profa. Micheletti - , o problema se complica.  
Por fim, como rubriquei o tal abaixo-assinado, voltei para casa questionando meu lado conservador, contrário à liberdade de expressão, essa prostituta que, a exemplo da democracia, cada um usa como e quando quer... De estalo, depois de um solavanco no metrô, lembrei-me do David de Michelangelo.
Ora, tome-se obra-prima da escultura renascentista: a cabeça do David é muito maior do que deveria ser, a mão direita também é muito maior que a esquerda, os pés, ao contrário, são muito pequenos em relação ao resto do corpo e os olhos, afirmam alguns especialistas, são olhos de míope! Mas tudo isso se encaixa muito bem na questão da proporcionalidade, algo que contribuiu para a genialidade estética de Michelangelo e ninguém, ao menos que eu saiba, tentou "consertar" o David para facilitar a compreensão dos leigos em arte. 
Agora, deixem-se levar por uma mera suposição: considerem um escultor que se achando genial decida arrumar a cabeça, a mão e os pés de Michelangelo. Poderia? Concordariam todos; protestariam alguns? Os opositores, estes, estariam obstruindo a liberdade de expressão? 
No final das contas, parece-me que a estupidez da Sra. Secco, com a benção da Lei Rouanet e do MinC, contribuiu para o engrandecimento de Machado, isto porque, malgrado as intervenções, o Alienista (o de Machado!) que lemos hoje está muito mais rico depois das diversas leituras e interpretaçoes que agora se incrustam ao conto. 
Como se pode observar, uma boa polêmica dificilmente se mantém sob a poeira. E, uma vez que se mutilou Machado com a ajuda do contribuinte (sim! dinheiro público!), por que este não pode esbravejar? Pedir silêncio, ah, isso já é demais!!!

[1] http://opiniocia.blogspot.com.br/2014/05/machado-de-assis-e-choradeira-dos.html.
[2] O debate fez parte do evento "Livros em pauta" e teve como mediador Bruno Anselmi Matangrano.
[3] CARRIÈRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record,  2010, 51. 
[4] Veja Harold Bloom em O Canône ocidental (Rio de Janeiro: Objetiva, 2010).

Imagens: 1. O Alienista - adaptação em quadrinhos de Fábio Moon e Gabriel Bá, Editora Agir; 2. Mão de David - ambas extraídas do Google Images. 


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