Revista Philomatica

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

"A fronteira porosa entre ficção e realidade"

A filosofia, sobretudo, há tempos tem-se debruçado sobre uma questão que intriga o pensamento humano: como delimitar a fronteira entre ficção e realidade? Lembro-me, por exemplo, de um relato em que Umberto Eco comentava sobre uma pesquisa realizada em Londres, na qual um quarto das pessoas entrevistadas acreditava que Churchill e Charles Dickens eram personagens imaginárias, ao passo que Robin Hood e Sherlock Holmes haviam de fato existido. Isto sem falar, é claro, na habilidade de todo grande artista em disfarçar a realidade; disfarce, aliás, que talvez dê início - e sentido -, à discussão. A arte da pintura, a fotografia e o cinema trazem hora ou outra a ilusão de realidade e a sensação de "realismo" apodera-se do apreciador e ou espectador, embora este saiba estar frente à ilusão. Como então "transmitir" o real se mesmo na realidade das imagens, às vezes, há muito de ficção? Tome-se um documentário: não raro nos deparamos com relatos "fabricados" em que a "história real" é subjugada à leituras várias, por exemplo, fazendo com que, por meio deste desvio, a realidade ganhe viés ficcional. 
Pensando nisso, resolvi reproduzir a criativa e deliciosa crônica de José Ribamar Bessa Freire, publicada em 24/8/2014, no Diário do Amazonas. "A fronteira porosa entre ficção e realidade", descaradamente roubei de Bessa Freire, que é real e existe - ao menos há um Lattes disponível na rede contando sua pregressa vida intelectual. Boa leitura!

Thiago de Mello existe?[1]

O que é fato e o que é invenção? Há três anos, o escritor Milton Hatoum deu conferência magistral sobre a fronteira porosa entre ficção e realidade na abertura do V Encontro de Letras em Campos dos Goytacazes (RJ), cujo tema era territórios da memória. Tive a sorte de ouvi-lo, porque os organizadores também me convidaram para falar sobre a história da língua e sua relação com a identidade. Fomos juntos. No caminho, na estrada, relembramos fatos vividos desde 1981, quando nós dois, amazonenses, nos conhecemos - incrível! - em Paris, num jantar na casa do escritor peruano Julio Ramón Ribeyro.
Mas a história inacreditável que Milnton Hatoum narrou para um auditório lotado que se deslumbrou, essa eu não conhecia. Foi assim. Quando ele era professor na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em 1984, foi procurado pelo conhecido jornalista inglês, Bob Misleading, da BBC, que preparava reportagem sobre o cientista britânico Joseph Oversea, assassinado por um índio, em meados do século XIX, nos arredores de Manaus.
Milton conhecia muito bem relatos de vários naturalistas que viajaram pela Amazônia, mas nunca ouvira falar naquele nome:
___ Joseph Oversea? I don't know.
Bob explicou que o cientista era desconhecido porque era gay e viveu em plena era vitoriana. Por isso, foi censurado pelo puritanismo dominante e condenado ao anonimato. A rainha Vitória, nos 64 anos de seu reinado, manteve-o no ostracismo, apagou-o dos arquivos e até proibiu a publicação do seu livro, onde havia um desenho a bico de pena que retratava uma cachoeira em Manaus.
___ Quero localizar esta cachoeira, que é o túmulo do Oversea, morto em 1850, com uma flecha que lhe perfurou o coração, atirada por um indio Passé - disse Bob, exibindo para Milton a gravura dentro do livro. Acrescentou que a reportagem que preparava para a BBC era a forma de tornar conhecido o injustiçado cientista.
Não foi tarefa fácil. Hatoum conhece bem Manaus, mas a cidade mudou muito depois de século e meio de história. De lá pra cá, igarapés foram aterrados, rios morreram e viraram esgoto, ruas ocuparam o lugar da floresta, carros substituíram canoas. O escritor convidou o jornalista a percorrer os bairros em busca de cachoeiras. Passaram pela Cachoeirinha na terceira ponte, visitaram o Tarumã, o Mindu, as Pedreiras, observando tudo, até que na subida do bairro de São Jorge, se detiveram na Cachoeira Grande, que serviu ao primeiro sistema de captação de água de Manaus.
___ Foi aqui - gritou Hatoum, animado.
O jornalista Bob Misleading confirmou, depois de comparar a paisagem que via com a gravura antiga. Fez, então, ali mesmo, várias tomadas para a BBC: shotstakes and the devil at four. À noite, jantaram uma costela de tambaqui no Canto da Peixada. O gringo, que era chegado numa cachaça, emborcou dez caipirinhas. Chegou no hotel catando cavaco. No dia seguinte, voltou para Londres, Milton foi dar aulas na Universidade e os dois não se falaram mais.
Cinco anos depois, Milton Hatoum decidiu fazer uma biografia do naturalista assassinado. Entrou em contato com uma amiga que morava em Washington, pedindo que buscasse dados sobre Joseph Oversea na Biblioteca do Congresso, que tem TUDO o que foi publicado no planeta terra. No entanto, no acervo com 160 milhões de títulos, entre os quais 40 milhões de livros catalogados e 70 milhões de manuscritos em mais de 500 idiomas, nada havia sobre o mencionado cientista. Nem uma vírgula. A férrea censura vitoriana tinha sido eficaz. 
Intrigado, Hatoum viajou a Londres e procurou o jornalista no endereço da BBC, em Portland Place, mas Bob havia sido demitido. Uma secretária chamada Scarlett forneceu o telefone da Bloomberg TV, onde ele agora fazia uns bicos. Marcaram um encontro num pub em Portobello Road, no bairro Nothing Hill. Lá, numa taverna hash house, que é o nosso popular dirty foot, Milton falou de seu projeto literário e perguntou onde podia consultar documentos relativos a Oversea. A resposta foi uma gargalhada de Bob, que continuava cachaceiro e já estava na décima dose de dry gim:
___ Milton, eu não te falei? Joseph Oversea foi uma invenção minha, eu criei o personagem e a história.
___ Mas eu vi a cachoeira. E a imagem da cachoeira?
___ Ah, essa foi uma gravura que retirei do livro A narrative of travels of the Amazon and Tio Negro, do botânico Alfred Russel Wallace.
O auditório, hipnotizado, escutava Milton Hatoum, que discorreu sobre a ambiguidade entre o real e o ficcional sempre presente na literatura. Comentou que um texto ficcional não é um relato factual do que aconteceu, mas aquilo que poderia ter acontecido, que explode na consciência e na memória do escritor e toma forma de discurso. Concluiu sua conferência com frase de impacto:
___ Oversea não existia, mas passou a existir depois que Bob o inventou e existe agora para vocês, neste momento em que acabo de contar sua história.
O público aplaudiu efusivamente o conferencista, grato pelo sopro que deu vida a Oversea. Fiquei tão maravilhado, achei tão engenhosa a forma de expor a questão que saí repetindo a história em minhas aulas, nas rodas de conversa e nos mares da vida. Um mês depois, viajo a Brasília e encontro lá Thiago de Mello, para quem faço um resumo da conferência, ainda embriagado de entusiasmo. O poeta me ouve com um sorriso moleque e quando termino diz:
___ O Milton já tinha me contado. Mas ele não te falou que esse jornalista da BBC também não existe? Nunca existiu, nem o cientista, nem o jornalista. Ambos são personagens do Milton Hatoum, essa história nunca aconteceu, é tudo invenção do escritor.
Fiquei maravilhado ainda com esse final e o incorporei à narrativa que costumo fazer em sala de aula. Numa das vezes, uma aluna me perguntou:
___ Professor, e o Thiago de Mello? Ele existe mesmo?
Com o espírito do Milton Hatoum, respondi que se o Thiago de carne e osso existe, eu não sei e também não importa. Sei que ele é um personagem, uma invenção dos cabocos amazonenses e dos leitores espalhados pelo mundo, incluindo a própria aluna perguntadora, que conhecia de cor e salteado "Os Estatutos do Homem" traduzido para mais de 30 idiomas. Thiago de Mello existe porque é lido com prazer e, agora, aos 88 anos, surge como candidato a uma vaga na Academia Brasileira de Letras que nunca abrigou um amazonense e, portanto, não será inteiramente brasileira, enquanto uma de suas cadeiras não for ocupada por um caboco suburucu popa de lancha, bandeira azul.
P.S. - Como o tema se prestava para tal, preenchi com a imaginação as lacunas da memória sobre a conferência, que foi efetivamente dada em outubro de 2011, em Campos. Invoco o testemunho do próprio Milton e da professora de literatura brasileira da Universidade Federal Fluminense, Stefania Chiarelli, presente no carro na viagem para Campos e que também deu sua conferência sobre o seu livro Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum, publicado em 2007. O referido é verdade e dou fé.

[1] Esta crônica também está publicada no site oficial de Bessa: http://www.taquiprati.com.br
http://www.taquiprati.com.br
Imagens: Extraídas de: http://www.taquiprati.com.br

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