Segunda-feira de manhã, em Sampa.
7h00: abro a janela e, mais uma vez, imprimindo à espiadela
matinal um caráter rotineiro, desvio o olhar à procura de um fragmento da Serra
da Cantareira, essa estreita faixa verde no horizonte que ainda me é permitida
contemplar por entre a grande muralha de concreto. Obra de uma multidão de
arquitetos egocêntricos e benevolentes que, numa versão medieval estilizada, elevam-na
cada vez mais ao céu; às vezes, suas altas torres me impedem de apreciar até
mesmo as nuvens carregadas pelo vento, cujas formas díspares se transformam ao
sabor da imaginação (hábito que não perdi) e, num átimo, levam-me de volta à
infância.
Num movimento vertical, meu olhar se escorrega para o chão,
hoje um asfalto duro e resistente à vida. Lá, na direção de minha janela, por
onde dou asas aos pássaros brancos das nuvens, jaz um corpo estendido no chão. Não,
ao pular do viaduto, não morrera na contramão como diz o poeta. Mas, ainda
assim, atrapalha o trânsito. Impacientes, os motoristas descansam a mão em suas
buzinas, porém, ao se aproximarem, silenciam-se, talvez num ato de contrição
diante da finitude, penso. O sangue destaca-se no preto do asfalto e
ironicamente traz certa umidade à seca da cidade, escorrendo para o lado e
desenhando um mapa hidrográfico onde se vê um traço profuso e caudaloso
partindo da cabeça, fazendo deste um grande rio que se desdobra em múltiplos
afluentes, tal qual o Meschacebé de Chateaubriand.
Momentos depois colocam sobre o corpo um papel laminado e de
cor prata, trazendo forçoso brilho à tragédia e destacando de modo involuntário
o pequeno relevo em meio à avenida, agora atrativo aos transeuntes que,
diferentes dos interioranos, não mais reservam pequenos sinais sagrados para
essas ocasiões, mas, munidos de nova tecnologia fotografam, escolhem melhores
ângulos e filtros e, muito provavelmente, publicam. O anônimo tem lá seus
quinze minutos de fama. O que quer que a vida tenha lhe negado, persiste. Destituído
de qualquer individualidade, torna-se simples pano de fundo para o ‘selfie’ de
um passante mais despreocupado.
O corpo jaz estendido no chão até pouco antes das onze da
manhã, quando uma van com três discretas letras em cor verde grafadas em
minúsculo – iml – encerra o espetáculo, deixando sobre o asfalto apenas um
rastro em vermelho que agora sim pode ser identificado por Michelin, Pirelli,
Firestone, Goodyear... Retirados os cones e liberada a avenida, os veículos
avançam multiplicando os rastros e proliferando as marcas. A cidade, qual uma
esfinge, sequer move seus olhos diante da vida que se esvai. E a morte
continua...
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