
Você, leitor, hoje acostumado às honestidades contadas às desbragadas, tão reais quanto à ficção proustiana, muito provavelmente já se cansou dessa e outras historietas. Mas, para quem faz dos livros o garfo que leva o alimento à boca, não só o gosto, mas o cheiro e a visão podem fazê-lo voltar no tempo em átimos. E justamente por isso a leitura torna-se algo místico. Ler, então, tem a capacidade de fazê-lo clandestino, de abolir o mundo a sua volta e de deportá-lo para o interior da ficção, do imaginário. Ler, num sentido figurado, é fechar-se em si mesmo, é estabelecer uma ligação pelo tato, o olhar e a audição, porque, sim, as palavras ressoam, ecoam nos ouvidos, às vezes, por horas a fio, às vezes, anos. Aí você lê com o corpo e a leitura é uma ocasião para amar, porém, aos poucos o desejo desaparece e ler vira prazer (Barthes que o diga).
Ler, torna-se uma aventura intensa, plena de emoção; e emoções são suscetíveis a Madeleines, chás e borboletas. Borboletas? Sim, borboletas azuis! Confesso, há muito não tenho provado Madeleines, mas as borboletas têm sido presentes. Há dias, em Tiradentes, com a câmera à mão, na tentativa de registrar a paisagem rural, uma borboleta me flanava em torno. Vi naquilo presságio de boa sorte. O lepidóptero, misterioso, não se deixou registrar. Nas raras vezes em que pousou em uma folha ou outra, fechou-se em copas e o azul das asas tornou-se invisível. Era como se estivesse destinado à beleza post-mortem, no caso de algum colecionador expô-lo à apreciação.
Dias depois, contemplando as ruínas da Ermida do Guaibê, outra borboleta furtou-se à lente, movendo-se rapidamente e impedindo o foco que pudesse eternizar o azul. Observei-as e, num estalo, descobri que eram tão sinestésicas quanto as Madeleines. Ambas as borboletas me fizeram retroceder à adolescência, quando colecionava os “Grandes Sucessos” da Abril Cultural e deparei-me com John Fowles.
John Fowles, professor inglês, surge no cenário literário em 1963 com O Colecionador. A obra é densa – e tensa. Nela, Fowles, narra a história de Frederick Clegg, mórbido funcionário do Anexo da Câmara Municipal que, ridicularizado pelos colegas de trabalho, diariamente observa a bela Miranda, moradora de frente ao Anexo.
Nas primeiras dez páginas, o leitor tem à mão a gênese de Clegg, jovem introspectivo, abandonado pela mãe, órfão de pai, criado por sua tia Annie e seu tio Dick, de quem adquire o gosto de colecionar borboletas. Contudo, Clegg vê sua vida alterar-se repentinamente quando ganha uma quantia vultosa na loteria. Demite-se do trabalho, passa algum tempo satisfazendo os interesses da tia e da prima e, logo após patrocinar a viagem delas para a Austrália, começa a arquitetar seu plano: aprisionar Miranda.
A paciência e a acuidade apreendidas com a lepidopterologia, ajudam-no ao longo do projeto. A escrita cativante de Fowles faz com que o leitor adentre vagarosamente na consciência das personagens antagônicas: de um lado Clegg, frágil, introvertido e inseguro, que julga ser incapaz de ser aceito pelos outros - e sobretudo de atrair a atenção de qualquer mulher -, do outro, Miranda, a bela e inteligente estudante de arte, capciosa e segura, cujas ideias são revigoradas pela influência de G.P., artista que admira e com quem mantém contato.
O livro divide-se em quatro partes: na primeira delas, o monólogo de Clegg, suas impressões sobre si mesmo, sobre Miranda, o desenrolar de seu plano, o sequestro e o dia-a-dia com seu amor platônico; na segunda parte, Miranda escreve seu diário, onde relata suas impressões sobre Clegg e suas sucessivas e frustradas tentativas de fuga; na terceira, o desenlace da genial história arquitetada por Fowles e, por fim, a quarta parte, em que o leitor confirma a psicopatia de Clegg.
Em suma, uma bela história, plena de entrechos que confirmam a assertiva de parte da crítica em relação a Fowles, qual seja, a influência de Camus e Sartre em sua obra, além de considerá-lo uma ponte entre a literatura moderna e a pós-moderna.
Num desses entrechos, Miranda, reflete sobre os protótipos de classe e as diferenças, contrapondo-se a Clegg, a quem chama de Calibã (daí o calibanismo):
Por que razão devemos nós tolerar tão horrível calibanismo? Para que terão de ser martirizadas todas as pessoas criadoras e
vitais, as verdadeiras boas pessoas, pelo fantoche universal?
Eu sou uma boa representante
dessa situação.
Mártir. Estou fechada; não me
posso desenvolver, crescer. Estou à mercê desse ressentimento, desta odiosa
inveja dos Calibãs do mundo. Porque todos eles nos odeiam, odeiam-nos por
sermos diferentes, por não sermos eles, por eles próprios não serem como nós.
Perseguem-nos, abafam-nos, afastam-se de nós, troçam de nós, tentam não nos ver
nem nos ouvir. Fazem todo o possível para evitar respeitar-nos e mesmo
reconhecer a nossa existência. Admiram e até adoram os nossos maiores, depois
de eles morrerem. Pagam milhares e milhares pelos Van Goghs e pelos Modiglianis
que teriam desdenhado, quando eles ainda viviam. Nesses tempos, troçavam deles,
chegavam a difamá-los.
Odeio-os.[1]
No meu caso, leitor, sequer precisei das Madeleines; bastaram-me as borboletas em voo e uma antiga capa de livro.
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