Sobre quais alicerces se funda a leitura? De pronto, me vem à memória uma resposta: o desejo. É claro, esta é só uma das opções. Mas ela é tanto o resultado de uma observação quanto de uma intuição – ou emoção – vivida, e de intuições e emoções constrói-se a memória. Proust, il y avait déjà bien des années, ao mergulhar no chá as petites Madeleines foi tomado por um prazer delicioso a ponto de afirmar que havia cessado de se “sentir medíocre, contingente, mortal”. Da efusão do espírito às efusões de chá ou de tilleul, oferecidas pela Tia Léonie, foi só um lapso.
Você, leitor, hoje acostumado às honestidades contadas às desbragadas, tão reais quanto à ficção proustiana, muito provavelmente já se cansou dessa e outras historietas. Mas, para quem faz dos livros o garfo que leva o alimento à boca, não só o gosto, mas o cheiro e a visão podem fazê-lo voltar no tempo em átimos. E justamente por isso a leitura torna-se algo místico. Ler, então, tem a capacidade de fazê-lo clandestino, de abolir o mundo a sua volta e de deportá-lo para o interior da ficção, do imaginário. Ler, num sentido figurado, é fechar-se em si mesmo, é estabelecer uma ligação pelo tato, o olhar e a audição, porque, sim, as palavras ressoam, ecoam nos ouvidos, às vezes, por horas a fio, às vezes, anos. Aí você lê com o corpo e a leitura é uma ocasião para amar, porém, aos poucos o desejo desaparece e ler vira prazer (Barthes que o diga).
Ler, torna-se uma aventura intensa, plena de emoção; e emoções são suscetíveis a Madeleines, chás e borboletas. Borboletas? Sim, borboletas azuis! Confesso, há muito não tenho provado Madeleines, mas as borboletas têm sido presentes. Há dias, em Tiradentes, com a câmera à mão, na tentativa de registrar a paisagem rural, uma borboleta me flanava em torno. Vi naquilo presságio de boa sorte. O lepidóptero, misterioso, não se deixou registrar. Nas raras vezes em que pousou em uma folha ou outra, fechou-se em copas e o azul das asas tornou-se invisível. Era como se estivesse destinado à beleza post-mortem, no caso de algum colecionador expô-lo à apreciação.
Dias depois, contemplando as ruínas da Ermida do Guaibê, outra borboleta furtou-se à lente, movendo-se rapidamente e impedindo o foco que pudesse eternizar o azul. Observei-as e, num estalo, descobri que eram tão sinestésicas quanto as Madeleines. Ambas as borboletas me fizeram retroceder à adolescência, quando colecionava os “Grandes Sucessos” da Abril Cultural e deparei-me com John Fowles.
John Fowles, professor inglês, surge no cenário literário em 1963 com O Colecionador. A obra é densa – e tensa. Nela, Fowles, narra a história de Frederick Clegg, mórbido funcionário do Anexo da Câmara Municipal que, ridicularizado pelos colegas de trabalho, diariamente observa a bela Miranda, moradora de frente ao Anexo.
Nas primeiras dez páginas, o leitor tem à mão a gênese de Clegg, jovem introspectivo, abandonado pela mãe, órfão de pai, criado por sua tia Annie e seu tio Dick, de quem adquire o gosto de colecionar borboletas. Contudo, Clegg vê sua vida alterar-se repentinamente quando ganha uma quantia vultosa na loteria. Demite-se do trabalho, passa algum tempo satisfazendo os interesses da tia e da prima e, logo após patrocinar a viagem delas para a Austrália, começa a arquitetar seu plano: aprisionar Miranda.
A paciência e a acuidade apreendidas com a lepidopterologia, ajudam-no ao longo do projeto. A escrita cativante de Fowles faz com que o leitor adentre vagarosamente na consciência das personagens antagônicas: de um lado Clegg, frágil, introvertido e inseguro, que julga ser incapaz de ser aceito pelos outros - e sobretudo de atrair a atenção de qualquer mulher -, do outro, Miranda, a bela e inteligente estudante de arte, capciosa e segura, cujas ideias são revigoradas pela influência de G.P., artista que admira e com quem mantém contato.
O livro divide-se em quatro partes: na primeira delas, o monólogo de Clegg, suas impressões sobre si mesmo, sobre Miranda, o desenrolar de seu plano, o sequestro e o dia-a-dia com seu amor platônico; na segunda parte, Miranda escreve seu diário, onde relata suas impressões sobre Clegg e suas sucessivas e frustradas tentativas de fuga; na terceira, o desenlace da genial história arquitetada por Fowles e, por fim, a quarta parte, em que o leitor confirma a psicopatia de Clegg.
Em suma, uma bela história, plena de entrechos que confirmam a assertiva de parte da crítica em relação a Fowles, qual seja, a influência de Camus e Sartre em sua obra, além de considerá-lo uma ponte entre a literatura moderna e a pós-moderna.
Num desses entrechos, Miranda, reflete sobre os protótipos de classe e as diferenças, contrapondo-se a Clegg, a quem chama de Calibã (daí o calibanismo):
Por que razão devemos nós tolerar tão horrível calibanismo? Para que terão de ser martirizadas todas as pessoas criadoras e
vitais, as verdadeiras boas pessoas, pelo fantoche universal?
Eu sou uma boa representante
dessa situação.
Mártir. Estou fechada; não me
posso desenvolver, crescer. Estou à mercê desse ressentimento, desta odiosa
inveja dos Calibãs do mundo. Porque todos eles nos odeiam, odeiam-nos por
sermos diferentes, por não sermos eles, por eles próprios não serem como nós.
Perseguem-nos, abafam-nos, afastam-se de nós, troçam de nós, tentam não nos ver
nem nos ouvir. Fazem todo o possível para evitar respeitar-nos e mesmo
reconhecer a nossa existência. Admiram e até adoram os nossos maiores, depois
de eles morrerem. Pagam milhares e milhares pelos Van Goghs e pelos Modiglianis
que teriam desdenhado, quando eles ainda viviam. Nesses tempos, troçavam deles,
chegavam a difamá-los.
Odeio-os.[1]
No meu caso, leitor, sequer precisei das Madeleines; bastaram-me as borboletas em voo e uma antiga capa de livro.
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