No
ano de 1860, pelas mãos de Quintino Bocaiúva, Machado de Assis entrava para a
imprensa. No liberal Diário do Rio de
Janeiro, tecia seus “Comentários da Semana”, crônicas que ditavam a
tendência do jornal, uma vez que ocasionalmente substituíam o editorial. Ali,
tornou-se um crítico severo do governo. Não à toa, Lúcia Miguel-Pereira, autora
da primeira biografia crítica do Bruxo de Cosme Velho, ao comentar tal período,
chama-o de frondeur.
Em
1862, com a chegada dos liberais ao poder, Machado é “convidado” a deixar o
jornal, afinal, a pedra virara vidraça, e, à época, não era hábito atirar nos
próprios pés, como insistem em fazê-lo as facções políticas de nossos dias.
Em
1864, Machado volta assinando uma coluna chamada “Ao Acaso”, em que falava de
tudo um pouco: teatro, literatura, quotidiano. Ainda que a política não fosse mais a pauta das crônicas, ao comentar um fato qualquer, conversa vai conversa vem, resvalava na dita cuja. Ao fazê-lo, de
pronto, corrigia-se - uma espécie de autocensura -, e logo esclarecia seu leitor de que havia adentrado
o terreno da política torva e sanhuda.
Mas
o que Machado tem a ver com as espigas do título, senão o fato de que o tal “empréstimo”
pode ser tão terrível quanto a petulância do mais cínico político que, diante do
óbvio, nega-o enfaticamente? Explico-me: vivemos dias difíceis com a
polarização das ideias, panelas fazendo-se zabumbas e a manteiga, cara,
cedendo lugar à mortadela. Pois bem, as críticas são ácidas e cheias de
autoritarismo, sobretudo quando vindas daqueles que bradam por tolerância... mas
não entremos pela política torva e sanhuda.
Falemos
das espigas.
Há
cerca de quinze dias, um internauta, em uma página do ‘facebook” chamada “Aow
mundão véio sem porteira”, publicou o seguinte comentário: “Pegando umas
espigas emprestadas”, título para uma foto em que aparecia à beira da estrada
colhendo milhos em uma plantação. Comentários e “likes” confirmavam o engraçado
da situação, colocando-a na condição de molecagem, brincadeira de criança que
sequer suspeita da existência de um troço chamado moral.
Um
outro internauta, solitário, sedento de “likes”, não se fez de rogado: trabalhou
a própria foto. Nela aparece com os braços cheios de espigas de milho, sobre as quais colocou os seguintes dizeres: “Admita: você já roubou milho verde na beira
da estrada! (207 curtidas, 12 compartilhamentos, 74 comentários, 99,9% de apoio e kkkkks)
Ao
ver os dois comentários, lembrei-me de um vídeo em que Mario Sérgio Cortella
comenta ética e moral. Vamos lá: princípio ético, no caso, não pegar o que não
me pertence; moral, a prática de uma ética, portanto, roubar ou não as maledettas espigas.
Ocorre
que muitos desses mesmos internautas, em ocasiões específicas, criticaram - e
criticam – a falta de princípios e de moral da nossa cínica classe política. Nota-se
que o dedo usado para apontar a nobreza “propineira” é o mesmo que surrupia as
espigas. Estas, argumenta um internauta, têm custo irrelevante. Mas e o
princípio? E a prática?
Por
fim, em meio à política sanhuda e as espigas roubadas, achei mesmo que Diderot
é quem tinha razão. O filósofo, ao especular sobre conceitos como o bem e o
mal, demonstra que as ideias concernentes à moral eram relativas em
conformidade à condição física e à percepção pelos sentidos. Trocando em
miúdos: de fato, para alguns, roubo pode ser ou não ser roubo, só depende do valor das espigas – ou do
acarajé -, afinal, hoje ele está nas manchetes do dia.
Veja:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=582015081962670&set=gm.1154855847865660&type=3&theater
DIDEROT. Lettre sur aveugles à
l’usage de ceux qui voient ; Lettre
sur les sourds et muets à l’usage de ceux qui entendent et qui parlent. Paris :
GF Flammarion, 2000.
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