Manhã
fria, céu cinza, embora já estivéssemos no começo de junho, com o verão à porta.
Saímos logo depois do café. A chuvinha era leve e triste; o destino, Montmartre.
Ela, como sempre, remoía clichês e disse estar exultante por conhecer os
lilases eternizados por Aznavour. Eu, esforçando-me para parecer simpático, disse
que a mim me encantavam os gerânios que pendiam das janelas e se ofereciam aos
passantes.
Descemos
na gare Anvers só porque ela achava a Rochechouart muito cheia de gente. É
próxima uma da outra, disse-me, mas tem menos gente. É bizarro (o adjetivo
saia-lhe dos lábios sequenciado, ritmando-se à medida em que via algo que merecesse
sua crítica de cientista social – assim fizera ante igrejas, castelos e museus,
por terem sido construídos com mão de obra escrava, afirmava), tem-se a
impressão de que se está no Oriente ou na África! Não pude deixar de notar o
laivo de sinceridade, mas não disse palavra! Prova leitor, de que há muito
discurso que só considera o fenômeno. Arremedos de metafísica!
A
razão para me acompanhar, dissera, fora o fato de que eu já fizera vários passeios
pelo bairro, alguns deles, na companhia de uma francesa, que me mostrara becos
e ruelas estranhos à horda de turistas que diariamente afluem para o local.
Entabulamos
uma boa conversa, mesmo depois de a minha retina ter espelhado a ambiguidade de
seu discurso. Num azo compensatório, destampou a falar de José do Patrocínio, a
viagem que ele teria feito a França em 1892, de onde trouxera o primeiro
automóvel a vapor que circulara pelo Brasil e cujo barulho espantava os
transeuntes.
A
historieta do automóvel e outra do dirigível Santa Cruz, uma geringonça de 45
metros e 1200 quilos que jamais levantou voo, ficaram por minha conta. De fato,
ela estava por lá para descobrir o que Patrocínio fizera em sua viagem a Paris,
curiosidade que, confesso, justifica um bom ano de flânerie – e que se dane a Capes e a pilha de formulários a ser
preenchida! Tudo vale a pena se se está em Paris, ainda que seu orientador
esteja locado em outro continente. Sobre isso ela preferiu não comentar! Mas, deixemo-la
de lado, andemos por Montmartre!
Ainda
nos arredores da Basilique du Sacré Coeur, torcemos à direita rumo a
Saint-Pierre de Montmartre, onde mostrei-lhe as duas colunas que supostamente
teriam pertencido a um templo dedicado ao deus Marte. Disse-me que só entrara
ali por minha causa; detestava igrejas, achava-as bizarro!
Dali
partimos para a Place du Tertre, encantamo-nos com os pintores de rua, flanamos
por becos, lojinhas, o Museu do Chat Noir; arrisquei algumas anedotas quando
chegamos ao Lapin Agile, descrevendo peripécias envolvendo boêmios e os salões
de arte moderna, o burro de Frédéric, a tela que um pintor italiano jamais
pintara... e, de repente, descobri a razão pela qual ela quisera tanto flanar
por Montmartre: o café da Amélie Poulain, dissera, onde é o café da Amélie
Poulain?
Num
rasgo romântico, dissera-me que se encantara com o filme e pôs-se a contar-me
sobre o dia em que o assistira, o dvd que comprara, as inúmeras vezes em que o
revira, os sentimentos que lhe vinham à tona, certa nostalgia inexplicável...
Face a tal disposição emocional, partimos rumo a Rue Lepic.
Juntos,
éramos dois seres distantes: eu observava os prédios, as janelas, os gerânios,
a rua, as marcas do tempo, as frutas, os peixes expostos nos pequenos
comércios, as cerejas que teimavam em sufocar pêssegos e maçãs tal a quantidade
com que eram oferecidas.
Descemos
a desigual Rue Lepic até chegarmos à esquina do Café des 2 Moulins, com seu
toldo vermelho a atrair turistas ansiosos em reviver seu filme preferido. Na
calçada, abarrotada de mesas, transeuntes equilibravam-se na pequena faixa por
onde ainda se podia andar, todos voltados para o interior do café.
Perguntei
a ela se queria tomar um café no interior, afinal, por um lapso de tempo
estaríamos e seríamos parte do cenário do filme. Não, respondeu-me! Quero
entrar sim, mas só para tirar umas fotos e depois postar; minha amiga vai
morrer de inveja!
Entramos
e logo um garçom nos abordou. Ela respondeu ao garçom ensaiando um pedido de
licença para fotografar o interior do café. De minha parte, olhava o balcão e
tentava rememorar cenas e sons que fizeram a graça do célebre acetato. Embora
disperso, acompanhei o rápido diálogo:
O
garçom: Bonjour Madame, je peux vous aider?
Ela : Oui, faire des fotos seulement!
O garçom: Quel est le mot magique ?
Ela:
(perdida, olha para mim).
Eu
(absorto): Amélie Poulain.
Diante
da bizarrice, o garçom sai gesticulando, sem deixar de mostrar toda a sua
impaciência por ter cruzado com dois não clientes paspalhões.
Na
rua, ria às desbragadas, por ter confundido a célebre palavra mágica “s’il vous
plaît” com “Amélie Poulain”. Ela, que mal tirou uma ou duas fotos do café, saiu
achando tudo bizarro.
Crédito:
Aquarela d'Alex Krajewski
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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