Revista Philomatica

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Então foi Natal


Em abril de 1895, à época da Semana Santa, Machado de Assis voltou-se para a ficção e comentou o relato da Paixão de Cristo. Ao olhar para Jerusalém, afirmou: “Há meia dúzia de assuntos que não envelhecem nunca; mas há um só em que se pode ser banal, sem parecê-lo, é a tragédia do Gólgota. Tão divina é ela que a simples repetição é novidade. Essa cousa eterna e sublime não cansa de ser sublime e eterna. Os séculos passam sem esgotá-la, as línguas sem confundi-la, os homens sem corrompê-la.”
Viajando no tempo, voltemo-nos para nossa semana e esbarremos, talvez, em um dos outros cinco assuntos que ignoram o envelhecimento: o nascimento do próprio Cristo. Ainda que muitos tentam negá-lo, a descrença se aprofunde e religiões como o socialismo se sobressaiam, sempre há alguém a dobrar os joelhos e tomá-lo como seu Mestre. Contudo, se a tragédia do Gólgota não é corrompida, o mesmo não se dá com a Natividade, que tem-se tornado um grande evento mercadológico, em cumprimento ao evangelho da religião capitalista.
Se na Antiguidade digladiavam-se judeus e cristãos, na atualidade, a hipocrisia reescreve a narrativa da Natividade e socialistas e/ou comunistas trocam farpas com capitalistas e/ou cristãos. Antes que continue, força é que explique o porquê do socialismo, comunismo e capitalismo serem vistos como religiões modernas. Antes, porém, cabe não esquecer certo maniqueísmo que há séculos persiste na esfera religiosa, esse dualismo entre o bem e o mal que pauta os discursos e a fé. Hoje não é diferente. Socialistas e comunistas irmanam-se do lado oposto ao capitalismo. Ambos proclamam-se bem, creditando ao adversário toda a maldade.
Chamar comunismo, socialismo e capitalismo de religiões pode soar algo constrangedor e desconfortável para muitos, mas ocorre que toda religião cria um sistema de normas e valores humanos cujas bases estão na crença de uma ordem metafísica, sobre-humana. É claro, islamismo, cristianismo, judaísmo, budismo, etc constituem-se a partir de uma ordem sobre-humana, um deus onipotente e criador de todas as coisas; os budistas, diferentes das outras três, não atribuem a mesma importância a deuses, mas, ainda assim, é visto como religião.
Diferente não é o comunismo, que, assim como os budistas, acredita nas leis da natureza. Se para os budistas foi Sidarta Gautama o descobridor de tais leis, para os comunistas foi a tríade Marx, Engels e Lenin, algo como o pai, o filho e o espírito santo – a ordem, leitor, altere-a como quiser. As correspondências vão além: assim como outras religiões, o comunismo tem seu livro sagrado e profético, O Capital, que, curiosamente, assim como a Bíblia para os cristãos, é muito citado e pouco lido por seus fiéis. Não vou me estender e falar dos teólogos adeptos e dos feriados dessas novas religiões porque, afinal, pretendia falar da degenerescência da Natividade. 
Se, na França islamizada, os presépios são banidos para não ferir as susceptibilidades dos muçulmanos, na Itália já há padres afirmando que tudo isso não passa de lorota. Na China, ao contrário, os chineses resolveram tomar gosto pela coisa e comemorar o Natal. As autoridades da cidade de Langfang, província de Hebei, proibiram árvores, meias de Papai Noel, luzinhas e pisca-piscas natalinos. Mas isso faz parte dos casos isolados, resquícios de um comunismo démodé, afinal, a China comunista é pragmática e não é boba por uma simples razão: a festa é ocidental, mas dá lucro. O ‘edital” da prefeitura da cidade é claro em sua ranzinzice: “camelôs que vendam árvores ou doces de Natal devem ser removidos”. O Global Times - o Granma, o Pravda, do partido comunista chinês - diz que não é bem assim, afinal o comunismo chinês é tão flexível quanto a coluna de um político, sobretudo quando brilha o vil metal.
Ano passado, Hengyang, na província de Hunan, emitiu um notificação pedindo que membros do partido comunista chinês “resistam ao festival ocidental” e a Liga da Juventude Comunista da China, publicou nas redes sociais que o “Natal é o dia da vergonha na China” e representa uma invasão por parte do ocidente, algo como comer pelas beiradas. E eles sabem do que estão falando, pois o fazem com maestria, afinal, o país produz nada menos que 80% das luzinhas que fazem as alegrias das crianças americanas. Esses casos isolados causam frisson nos fiéis das religiões modernas, sobretudo os tupiniquins, de posturas ambíguas, que negam a fé, mas lotam os shoppings.
Aliás, é nos shoppings, com sacolas e mais sacolas que se comemora o nascimento do Cristo. Que os tempos tenham mudado, vá lá, mas não custa lembrar da historieta da manjedoura, voltar-se aos pobres, aos humildes... só lembrar, mais nada!


Imagem: Banksy

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