Revista Philomatica

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

A privatização da água


É provável que a geração funk ou “nem-nem”, como querem alguns, jamais tenha imaginado que seus pais, em um dia quente como os que tivemos recentemente, paravam em um bar qualquer e pediam um copo d’água. O balconista pegava então um copo americano, daqueles produzidos pela Nadir Figueiredo, colocava-o debaixo da torneira e oferecia ao sedento. Não se cobrava nada! Matada a sede, dizia-se obrigado.
Hoje, a água tem grife e vem em garrafas plásticas que, usadas, são descartadas e emporcalham todo o planeta. Se você leitor for um bom observador, há de notar que a água oriunda de fontes paulistas, mineiras etc, traz hoje nomes como Coca-Cola, Nestlé e de outras multinacionais. A Coca-Cola, que envenena seu organismo com aquele líquido maravilhoso para desentupir canos de pia e desenferrujar chaves de fenda, está de olho no Aquífero Guarani.
Não vou entrar no mérito da selvageria capitalista, mas que ela existe, ah, existe. E isso não ocorre só com a água. O chocolate que você come para mandar sua ansiedade às favas é produzido por um punhado de empresas que não só destroem o meio ambiente, mas escravizam crianças em países como a Costa do Marfim e Gana.
A Nestlé, que produz papinhas de neném e aquelas propagandas de leite em pó com famílias felizes como as de margarina (outra droga que lhe enfiam goela abaixo), no mercado da água, estima-se que sozinha lucra 26 bilhões com a venda de água mineral.
Ai vem a pergunta: a água é um direito humano ou deve ser propriedade de um grande negócio, diga-se, especializado em rapinagem?
A Nestlé tem a resposta na ponta da língua. O manda chuva da empresa, Peter Brabeck, gravou um vídeo há tempos em que era bastante duro com os movimentos e pessoas que defendem o consumo de alimentos orgânicos, o equilíbrio do homem e da natureza e o direito de uma pessoa ter acesso à água.  Com a palavra Brabeck: “A água é, naturalmente, o recurso básico mais importante do mundo hoje. A questão é se devemos privatizar o suprimento normal de água para a população. Existem duas opiniões diferentes sobre isso. A primeira opinião, que eu acho extrema, é representada por ONGs, que dizem que a água é um direito público. Isso significa que, como ser humano, você deve ter acesso à água. É uma solução extrema. E a outra opinião diz que a água é um alimento como outro qualquer. E como qualquer produto alimentício, ele deve estar no mercado. Pessoalmente, acho melhor dar a qualquer alimento um valor de mercado...”
Nessa lógica rapace, talvez o ar deva ser propriedade de grandes empresas. Há pouco rimos às desbragadas com o episódio do “estocamento de vento”, mas nos esquecemos de considerar a voracidade dos grandes conglomerados.
Em sua investida contra o movimento orgânico, o capataz da Nestlé afirmou que depois de 15 anos comendo alimentos geneticamente modificados, até agora não foi relatado sequer um caso de doença entre os americanos por comê-los. Não mesmo?! Na sanha pelo vil metal, Brabeck continua: “Hoje as pessoas acreditam que tudo o que vem da natureza é bom. Isso representa uma enorme mudança porque até recentemente nós sempre aprendemos que a natureza pode ser implacável. O homem está agora em condições de fornecer um equilíbrio à natureza. Mas, apesar disso, julgamos que tudo o que vem da natureza é bom.”
A declaração é perturbadora, mas a ganância explica. Tome-se a Vale como exemplo, as tragédias de Mariana e Brumadinho: a vida e os rios foram mortos, mas garantiu-se o lucro.
Finalizar como? A meu ver, de duas maneiras: de um lado, concluindo que o Sr. Peter Brabeck é um ser radioativo, perigoso; de outro, boicotando as marcas que ele representa. Acho que já é um bom começo. E, para resistir, lembremo-nos da fala do cacique de Seattle, que mencionei semana passada:
Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa ideia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los? Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra da floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência do meu povo.”
Temos muito o que aprender: a começar pela perda de nossa arrogância.

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