Revista Philomatica

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

O revisionismo e Monteiro Lobato


Dentro do movimento marxista, utiliza-se o termo "revisionismo" para se referir a ideias, princípios, teorias ou correntes que mudam de modo significativo os fundamentos do marxismo, desafiando algumas de suas teses revolucionárias e/ou desviando-se da ortodoxia marxista-leninista. Em geral, é mais usado por aqueles que veem essas revisões como um ato de abandono ou traição do pensamento marxista. Portanto, o termo "revisionismo" é frequentemente usado de maneira pejorativa.
Pejorativo é o termo. Não por outra razão, tratando-se da Shoah o revisionismo confunde-se com o negacionismo do Holocausto. Intelectuais, historiadores e políticos que pregam o negacionismo, fazem-no de modo perverso, ainda que, ao negar, reafirmem o mal cometido ao longo do segundo Grande Conflito. Tamanha foi a barbárie que Adorno, em um ensaio de 1949 (Crítica à cultura e à sociedade), sentencia: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas.”
Se a poesia tornou-se uma impossibilidade, os cacos sobre os quais devemos escrever estão por aí como testemunho dessa barbárie e não resta senão à arte, em algum momento, ler e “falar” do que restou. Por isso, a memória e o esquecimento caminham lado a lado, um depende do outro, um só existe porque o outro existe e tal qual um palimpsesto, o esquecimento figura-se como superfície para que lembranças e reminiscências se reescrevam.
Dito isso, tomemos Lobato, que frequentou as manchetes durante a semana. Não tratemos do Holocausto, mas da escravidão e seus tentáculos racistas que perduram na sociedade. Pois bem, não é de hoje que tentam execrar Lobato. Em 2011, o CNE (Conselho Nacional de Educação), em um daqueles arroubos politicamente corretos, recomendou que não se distribuísse o livro Caçadas de Pedrinho (1933) por considerar que algumas de suas passagens eram racistas. À época, a histeria foi tamanha que a personagem da Tia Anastácia estava fadada ao esquecimento, seria apagada da obra. Até mesmo o pó de pirlimpimpim seria banido, pois a tropa do politicamente correto, tão parecida com as senhoras da Tradição, Família e Propriedade, afirmava que os alunos leitores poderiam associá-lo à cocaína. No baile funk pode!
Hoje, a tropa saiu novamente ao ataque, haja vista a obra de Lobato ter caído em domínio público, o que significa, status, para muitos “especialistas”, equivalente ao conceito de coisa pública que temos no país, qual seja, é público, é de todos, todo mundo faz o que quer, como quer, quando quer, de modo que já na segunda semana de janeiro, Pedro Bandeira, “exímio conhecedor da obra lobatiana”, decidiu “adaptar” Lobato. (Meu Deus! O que pensa agora Marisa Lajolo?).
Bandeira resolveu higienizar Lobato, limpá-lo com Veja Limpeza Pesada! Eis a explicação de Bandeira (Estadão, 19/1/2019): “Minha adaptação protege o talento de Lobato. Autores geniais como Perrault, Andersen, Dumas ou Shakespeare têm sido adaptados sem parar. No caso de Lobato, quase toda sua linguagem e humor devem ser preservados e foi o que fiz. Mas tenho de mexer um pouquinho em detalhes como os xingamentos da Emília. Na época de Lobato, isso poderia parecer engraçado; hoje, porém, é um absurdo. Sua obra não perderá a qualidade se tirarmos, aqui e ali, xingamentos acachapantes como ‘sua negra beiçuda’.”
Pergunto: Lobato precisa de alguém que o proteja? A meu ver, Bandeira repete a ignorância do CNE, arvorando-se detentor da correção e da verdade, arremedo de paladino das forças de ordem. Ao fazê-lo, Bandeira atropela a liberdade do leitor, manifesta desconfiança na capacidade de educadores, professores e leitores interpretarem o texto de forma correta e se posicionarem criticamente face à obra. Isso porque o leitor pode ser tudo, menos ingênuo; em geral, ao chegar ao texto, ele já vem imbuído de compreensões várias, alguma criticidade e experiências de vida, hoje resultado das discussões amplamente divulgadas pela impressa e por ONGs ao tratar das questões raciais. E as crianças? Ora, eis aí uma tarefa para educadores!
Por fim, nesses tempos em que o revisionismo bate à porta, logo será a vez de Machado de Assis. Como a escravidão não existiu, o Bruxo de Cosme Velho jamais escreveu o entrecho de Memórias póstumas de Brás Cubas, em que o menino Brás montou e fez de cavalo Prudêncio, o menino escravo (afora inúmeros outros exemplos em suas obras). A meu ver, racismo é exercício para a memória, discute-se às claras e não dilapidando obras, jogando-as no Lete. Aliás, estas deveriam ser usadas como material para refletir a questão.

Um comentário:

  1. Belo artigo!
    Concordo que devemos respeitar a liberdade e a inteligência do leitor.
    As pessoas são informadas e capazes de distinguir um comentário ou abordagem racista de uma expressão usada em determinada época.
    Censurar ou adaptar Lobato, Machado! Logo veremos Drummond, Guimarães Rosa e muitos outros sendo adaptados!

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