A
prosa de hoje é mais um desabafo, o que não impede o leitor experimentado de
associar o título à obra de Italo Calvino – Os
Amores difíceis (Gli amori difficili).
Mestre da narrativa curta, o conto, do calibre de Tchekhov, Maupassant, Borges,
Cortázar e outros, Calvino é daqueles autores cuja estranheza nos assimila de
tal modo que, original, deixa de nos ser estranha. Sua escrita, por mais que esperneiem
as patrulhas empenhadas em fazer trigo do joio, é canônica, e Os Amores difíceis são uma mostra de
narrativas do desencontro, em que “o não encontrar-se não é um simples motivo
de desespero, mas elemento essencial da própria relação amorosa”.
Mas
a vida real é diferente. Não à toa Balzac, ao escrever seu Père Goriot, pedia ao leitor que creditasse qualquer exagero ou
poesia aos infortúnios de Goriot, pois o drama não é nem uma ficção, nem um
romance: All is true, disse Balzac. A
vida é real, tão real que até mesmo elementos fisgados da ficção, em lances de
imaginação tão grotescos quanto as mais extravagantes narrativas, não se
equiparam a ela. Tudo é verdade, por
isso, a vida real é completo desespero.
Em
tempos em que discursos radicais têm-se imposto e o povo (agora cito Chomsky) “não
sabe o que está acontecendo, nem mesmo sabe que não sabe”, muitos, que escondem
sua hipocrisia e seus preconceitos sob o escudo da religião, por interesse,
sim, porque é o interesse que move o mundo, revelam seu jeito próprio de ser,
qual seja, a fruta dentro da casca, e, nesses casos, o sabor é amargo e
repugnante.
Tome-se,
a título de exemplo, essa narrativa que pincei da vida real, ocorrida com um
casal de amigos, companheiros de uma jornada de quinze anos. Sim, dois amigos
gays. É deles que vou falar e, se você leitor, estiver investido de sua pureza
moral e for um desses guardiões da família tradicional, hipócrita (salvo raras
exceções) e preconceituosa, interrompa a sua leitura agora e procure a estante
de livros mais próxima, ali, apanhe um volume dos Evangélicos e verá que o
Mestre, cujas palavras hoje são tão vilipendiadas, defendeu prostitutas, andou
ao lado de pobres e leprosos e disse que deveríamos amar-nos uns aos outros. Ah
vá lá! Mas isso é o óbvio, pode você contra-argumentar. Não, não é, replico!
Caso fosse, não estaríamos vivendo dias tão assustadores quanto os de hoje.
Pois
bem, retorno à minha narrativa: L. conheceu D. há quinze anos, respeitaram-se,
amaram-se e resolveram que viveriam juntos, compartilhando o respeito, as
alegrias e as tristezas. Ocorre que semana passada, D. partiu, expirou durante
uma noite de sono tranquilo. A tranquilidade dos justos, de alguém que não
roubava, não caluniava, não cometia falsos testemunhos, mas só queria viver,
viver a arte, viver a vida.
L.,
desesperado, sim, para L. não encontrar-se mais com D. tornou-se seu grande
desespero logo no café da manhã, quando descobriu que seu companheiro não mais
existia. Repito, tomado pelo desespero, L. procurou ajuda. A família de D.,
ausente por longos quinze anos, apareceu. Apareceu como um raio, algo divino,
mas atravessado, movida pelo interesse. L. viu-se obrigado ao desprezo e ao
constrangimento, imposto pela família de seu companheiro, ausente até o dia
anterior. E não bastasse isso, sofreu também com o descaso, os risinhos e os
cochichos dos colegas de trabalho de D., machões, hipócritas e falsos
moralistas, daqueles que defendem a família, mas passam suas horas de happy hour relaxando em prostíbulos.
Por
que contar a síntese da síntese desse relato? Ora, por duas únicas razões: a
primeira é que sob a égide do bom mocismo e da religião, famílias, por
interesse, e amigos, por sarcasmo, sabem ser cruéis, perversos, hediondos e
impiedosos; a outra, é que aqueles que se respeitam, devem fazer valer seus
direitos e não mais se submeterem a esse tipo de violência. O que mais posso
dizer quando noto que a humanidade é pura retórica?
Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/amores-dificeis/
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