Revista Philomatica

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Amores difíceis


A prosa de hoje é mais um desabafo, o que não impede o leitor experimentado de associar o título à obra de Italo Calvino – Os Amores difíceis (Gli amori difficili). Mestre da narrativa curta, o conto, do calibre de Tchekhov, Maupassant, Borges, Cortázar e outros, Calvino é daqueles autores cuja estranheza nos assimila de tal modo que, original, deixa de nos ser estranha. Sua escrita, por mais que esperneiem as patrulhas empenhadas em fazer trigo do joio, é canônica, e Os Amores difíceis são uma mostra de narrativas do desencontro, em que “o não encontrar-se não é um simples motivo de desespero, mas elemento essencial da própria relação amorosa”.
Mas a vida real é diferente. Não à toa Balzac, ao escrever seu Père Goriot, pedia ao leitor que creditasse qualquer exagero ou poesia aos infortúnios de Goriot, pois o drama não é nem uma ficção, nem um romance: All is true, disse Balzac. A vida é real, tão real que até mesmo elementos fisgados da ficção, em lances de imaginação tão grotescos quanto as mais extravagantes narrativas, não se equiparam a ela. Tudo é verdade, por isso, a vida real é completo desespero.
Em tempos em que discursos radicais têm-se imposto e o povo (agora cito Chomsky) “não sabe o que está acontecendo, nem mesmo sabe que não sabe”, muitos, que escondem sua hipocrisia e seus preconceitos sob o escudo da religião, por interesse, sim, porque é o interesse que move o mundo, revelam seu jeito próprio de ser, qual seja, a fruta dentro da casca, e, nesses casos, o sabor é amargo e repugnante.
Tome-se, a título de exemplo, essa narrativa que pincei da vida real, ocorrida com um casal de amigos, companheiros de uma jornada de quinze anos. Sim, dois amigos gays. É deles que vou falar e, se você leitor, estiver investido de sua pureza moral e for um desses guardiões da família tradicional, hipócrita (salvo raras exceções) e preconceituosa, interrompa a sua leitura agora e procure a estante de livros mais próxima, ali, apanhe um volume dos Evangélicos e verá que o Mestre, cujas palavras hoje são tão vilipendiadas, defendeu prostitutas, andou ao lado de pobres e leprosos e disse que deveríamos amar-nos uns aos outros. Ah vá lá! Mas isso é o óbvio, pode você contra-argumentar. Não, não é, replico! Caso fosse, não estaríamos vivendo dias tão assustadores quanto os de hoje.
Pois bem, retorno à minha narrativa: L. conheceu D. há quinze anos, respeitaram-se, amaram-se e resolveram que viveriam juntos, compartilhando o respeito, as alegrias e as tristezas. Ocorre que semana passada, D. partiu, expirou durante uma noite de sono tranquilo. A tranquilidade dos justos, de alguém que não roubava, não caluniava, não cometia falsos testemunhos, mas só queria viver, viver a arte, viver a vida.
L., desesperado, sim, para L. não encontrar-se mais com D. tornou-se seu grande desespero logo no café da manhã, quando descobriu que seu companheiro não mais existia. Repito, tomado pelo desespero, L. procurou ajuda. A família de D., ausente por longos quinze anos, apareceu. Apareceu como um raio, algo divino, mas atravessado, movida pelo interesse. L. viu-se obrigado ao desprezo e ao constrangimento, imposto pela família de seu companheiro, ausente até o dia anterior. E não bastasse isso, sofreu também com o descaso, os risinhos e os cochichos dos colegas de trabalho de D., machões, hipócritas e falsos moralistas, daqueles que defendem a família, mas passam suas horas de happy hour relaxando em prostíbulos.
Por que contar a síntese da síntese desse relato? Ora, por duas únicas razões: a primeira é que sob a égide do bom mocismo e da religião, famílias, por interesse, e amigos, por sarcasmo, sabem ser cruéis, perversos, hediondos e impiedosos; a outra, é que aqueles que se respeitam, devem fazer valer seus direitos e não mais se submeterem a esse tipo de violência. O que mais posso dizer quando noto que a humanidade é pura retórica?



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