Revista Philomatica

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Memórias de um editor


Lembro-me de Umberto Eco ter dito em um de seus livros que, às vezes, não somos nós que escolhemos os livros, mas são eles que nos escolhem. Olhamos suas capas, apanhamo-los das estantes, manuseamos, cheiramos (sim, bibliófilos cheiram livros como glutões se deixam levar por aromas e memórias gastronômicas) e, por fim, levamos para casa livros cuja leitura é incerta, mas, quando acontece é descoberta, aventura, encanto e conversão.
Há cerca de um mês, em uma livraria de Sampa, à procura de uns livros que não encontrei, fiz o que fazem os viciados em livros e, como Calvino, abri caminho “através da densa barreira dos Livros Que Nunca Li, das mesas e prateleiras, olhei-os de esguelha tentando intimidá-los, mesmo sabendo que não devia deixar-me impressionar, pois estavam distribuídos por hectares e mais hectares os Livros Cuja Leitura é Dispensável, os Livros Para Outros Usos Que Não a Leitura, os Livros Já Lidos Sem Que Seja Necessário Abri-los, pertencentes que são à categoria dos Livros Já Lidos Antes Mesmo De Terem Sido Escritos”... Por fim, ao atravessar em meio às falanges e falanges de livros, um pequeno volume, frágil, pequeno, porém robusto de conteúdo, lançou-me um olhar cândido. É preciso que diga ao leitor que estava de joelhos e o olhar do livrinho, cândido, porém imponente, trouxe-me algo do frescor das ideias potentes, assegurando-me da força das palavras ali escritas. Capitulei. Trouxe comigo Memórias de um editor, de Kurt Wolff, editado pela Âyiné, de Belo Horizonte.
A obra editada pela Âyiné me foi uma dessas verdadeiras descobertas: o primor da edição faz dela uma preciosidade; a capa de Julia Geiser é daquelas que se justapõem ao relato, complementa-o, torna-o memorável. E por falar em memória, as Memórias de Kurt Wolff são circunscritas à sua empreitada como editor, ainda que temperadas aqui e lá por preciosismos e esquisitices dos autores com os quais trabalhou.
O livro de Wolff é sobre autores e livros e só por isso vale transcrever um fragmento tornado público pelo editor de sua obra em 1965:

A ideia que o leigo tem do editor e de como ele trabalha é surpreendentemente primitiva: ele lê o manuscrito ou dá para alguém de sua confiança ler (há sempre enorme quantidade de manuscritos à espera) e manda para a gráfica as obras que agradaram a ele ou a seus colegas. Para o livro ficar bonito e com aspecto agradável, ele capricha na encadernação e contrata um ilustrador para desenvolver a capa. Se o livro terá sucesso ou não, é pura obra do acaso.
A realidade, porém, é outra. É difícil explicar quão complexa é essa profissão e como há uma série de elementos que devem funcionar coordenadamente para se ter um conceito real, legítimo e positivo de editoração. Como vira e mexe, nessa profissão, o irracional se sobrepõe ao plano racionalmente desenvolvido, jogam-se todas as previsões no lixo. Vive-se em uma situação permanente de incertezas e surpresas; uma fonte interminável de alegrias e decepções.

De fato, Memórias joga com essa sua afirmação. Editor de Franz Kafka, Heinrich Mann, Max Brod, Gustav Meyrink, Karl Kraus e tantos outros, Wolff tenta elucidar a complexidade da profissão. O primeiro capítulo “Livros e aventuras” procura responder ao leitor como ele, Wolff, tornou-se editor, além de responder a questões sobre como os manuscritos chegam à editora, os critérios empregados na escolha do que se publica ou ainda, como se dá o encontro entre autor e editor. Ao elencar muitos dos autores que publicou na fase inicial de sua editora, Wolff explica “a odiosa pecha de editor do expressionismo” que lhe fora atribuída.
O segundo capítulo, intitulado “‘Afanar’ ou como autores e editores se distanciam” traz ao leitor um panorama sobre as relações entre ambos, editor e autor, e também entre editor e editor, à vista dos deslocamentos dos autores de uma editora a outra. Wolff trata do assunto com refinada diplomacia, assegurando seu “desejo de manter a inviolabilidade da liberdade de decisão do autor”, embora confesse que é sempre frustrante para um editor ter um de seus autores “afanados” por outro editor, sobretudo se o autor “afanado” é, digamos, rentável.
O terceiro capítulo é dedicado à aventura de publicar. Destaca-se nesse capítulo o périplo para publicar Avant et Après, de Gauguin, à época (1913) um pintor ainda não tão cortejado pelos museus. Wolff conta suas tratativas com os herdeiros e como, quarenta anos depois, teria notícia do manuscrito em Nova York. Vale ressaltar ainda que nesse capítulo Wolff confessa certo “arrependimento” por não ter publicado um dos livros de James Joyce, antes que o escritor escrevesse Ulisses, fato que me fez lembrar de Gide, que se negara a publicar Proust, quando editor da Nouvelle Revue Française (NRF).
Na segunda parte do livro Wolff traz um capítulo dedicado aos autores Carl Sternheim Franz Kafka e Karl Krauss. Não é preciso dizer que o ponto alto desse capítulo é o aclamado Kafka. Wolff relata como fora apresentado a ele por Max Brod, quando estes, em uma viagem de férias, passaram por Leipzig. Segundo Wolff, Kafka mostrou-se “calado, acanhado, tênue, vulnerável, intimidado como um colegial diante do examinador, convencido da impossibilidade de satisfazer as expectativas oriundas dos elogios do empresário”, no caso, papel atribuído a Max Brod, que o levara até Wolff. Este, ao despedir-se de Kafka naquela tarde de junho de 1912, diz ter ouvido algo do escritor que jamais ouvira de outro autor, nem antes, nem depois dele: “Agradeceria o senhor ainda mais pelo retorno do manuscrito do que pela publicação.”
Os anexos trazem alguns momentos particulares da vida de Kurt Wolff, as dificuldades com a editora em razão da inflação galopante, os frequentes deslocamentos pela França e Itália em razão da guerra, até sua imigração aos Estados Unidos, onde se fixaria e fundaria a editora Pantheon Books que, a exemplo da editora Kurt Wolff seria um empreendimento bem sucedido. Wolff desapareceria em 21 de outubro de 1963, a caminho de um encontro com o Grupo 47 (grupo de autores e críticos alemães empenhados em revitalizar a literatura alemã no pós-guerra), mas, como os autores que publicou, está aí, vivo e presente, nos contando histórias e histórias sobre livros, autores e editores.




Imagem: capa do livro publicado pela Editora Âyiné.
Publicado originalmente em https://z1portal.com.br/memoria-de-um-editor/

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