Revista Philomatica

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Sísifo: revolte-se e mereça a vida!


 “É porque há revolta que a vida de Sísifo merece ser vivida,
a razão por si só não lhe permite dar sentido ao absurdo do mundo.”
Albert Camus


Em busca do carro das ideias, leio as notícias da semana e agradeço ao universo por ainda termos a literatura. A literatura, diferente dos Evangelhos, não nos pede nada – sequer que amemos uns aos outros -, não nos promete coisa alguma, contenta-se tão somente em alimentar-nos o espírito. Tudo depende de nós. Muitos, porém, nutrem por ela certo asco, sobretudo ignorantes e os poderosos, cuja função não é outra que cercear as liberdades em proveito de interesses.
Troca-se a canalha política no poder e tudo continua igual, até mesmo a ideia de que o livro é arma perigosa. E talvez seja mesmo, afinal, ali a verdade das ideologias é esmiuçada a ponto de o leitor perspicaz subtrair dos discursos a máxima de que todos eles são alienantes. Por essa razão, creio, a presença de Miriam Leitão e Sérgio Abranches foi vetada pela comissão organizadora da 13a Feira do Livro de Jaraguá do Sul, em Santa Catarina.
Por isso, leitor, se as coisas não estão indo bem hoje, diga a si mesmo que você poderia ter sido Sísifo. Ou pode vir a ser, quem sabe? Do jeito que a banda tem tocado, manadas de gados felizes encurralando junto ao abatedouro os revoltosos... e estes, só assim chamados porque discordam dessa ou daquela cartilha. Ainda assim, afirmo, somos agradecidos e felizes, pois temos a literatura e nos revoltamos.
A revolta, diferente do que muitos afirmam, é maná distribuído feito pão a nós homens perdidos no deserto da ignorância. Portanto, revoltemo-nos. Isso me leva a Sísifo, um Sísifo feliz, tal como disse pela primeira vez o pensador japonês Kuki Shuzo, antes mesmo de o ser por Albert Camus. Mas Sísifo não se deixa imaginar facilmente na alegria. Sísifo, nos poemas de Homero, é o mais inteligente dos homens, é um navegador, um grande comerciante, um homem muito seguro de si mesmo, pois não hesitou em desafiar Zeus, revelando ao deus-rio Azopos, onde se encontrava sua filha Aegina, que Zeus havia raptado porque a desejava.
Por vingança, Zeus pediu a Thanatos que matasse Sísifo, mas Sísifo conseguiu acorrentá-lo, impedindo-o de levá-lo ao inferno. Tudo isso provocou a ira de Zeus, que condenou Sísifo a rolar com suas mãos uma rocha até o topo de uma montanha, de modo que toda vez que estivesse quase alcançando o topo, a pedra rolaria montanha abaixo até o ponto de partida em razão de uma força irresistível, invalidando todo o esforço empreendido
As interpretações variam: para alguns, Sísifo encarna os movimentos perpétuos da natureza, o sol, as marés; para outros, Sísifo personifica a infelicidade do homem, o absurdo da vida. Esta é, em particular, particular a concepção de Albert Camus em seu mito de Sísifo. Mas para Camus, Sísifo também é um lutador, ele não cede ao desespero porque continua a rolar sua pedra, ele escolhe a vida contra e apesar de tudo. Ele se revolta, não se desespera.
É por isso que Sísifo encarna, segundo Camus, a única questão filosófica realmente séria, a do suicídio. Viver, claro, nunca é fácil, escreve Camus, continuamos a fazer os gestos que a existência comanda por muitas razões, a primeira das quais é o hábito. Não há punição mais terrível do que a de um trabalho inútil e absurdo como o de Sísifo, um trabalho absolutamente sem sentido, um trabalho sem fim. O que dá sentido à existência dessa personagem é, em última análise, o modo como ela desafia os deuses, se liga à vida, enfim, o modo como se revolta.
O significado de sua existência é a luta. Esse mito é trágico porque essa personagem está ciente disso, ela sabe muito bem que seu destino enfrenta uma punição irracional (assim como hoje temos enfrentado decisões irracionais!). Por fim, como disse Camus: “Sísifo, proletário dos deuses, impotente e rebelde, conhece toda a extensão de sua miserável condição. É nela que ele pensa durante a descida, e a lucidez que deveria constituir sua tortura, pela mesma ação consome sua vitória. É porque há revolta que a vida de Sísifo merece ser vivida, a razão por si só não lhe permite dar sentido ao absurdo do mundo.”
Por isso, leitor, alegre-se, se você já não é um Sísifo.

Imagem: Sisyphus, por Antonio Zanchi, c. 1660=1665.



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