
Aos
avessos ao cânone, Morrison, queiram ou não, há de se tornar canônica; seu percurso
deixou traços na pátina das ideias literárias, o que é indício de repouso no
Panteão dos imortais. Agraciada com o Pulitzer de 1988, foi a primeira mulher
afro-americana a receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1993, por Beloved, um mergulho no universo negro
dos Estados Unidos no século XIX.
Toni
Morrison morreu na noite de segunda-feira sem que víssemos seu sentimento de
revolta se esvanecer por um só momento. Nem o sucesso internacional nem o
Prêmio Nobel de Literatura em 1993, nem os vários doutorados honoris causa e outras distinções alteraram
suas paixões e sua altivez, ainda que, depois de ver um afro-americano na
presidência dos Estados Unidos, testemunhasse o retorno do racismo desinibido
com a eleição de Donald Trump.
Neta
de ex-escravos, ela sabia de onde veio e nunca teve medo de chocar. Em outubro
de 1998, por exemplo, chamou Bill Clinton de “o primeiro presidente negro dos
Estados Unidos”. “Ele tem todas as características dos cidadãos negros: veio de
um lar monoparental, origem modesta, infância na classe trabalhadora, um grande
conhecimento do saxofone e um amor pela junk-food
digno de um rapaz do Arkansas”, disse ela. Recentemente, em 2015, quando
promovia em Londres seu livro God Help
the Child, ao comentar os vários abusos policiais que haviam acabado de
acontecer nos Estados Unidos, disse ao The
Telegraph: “Eu quero ver um policial atirar em um adolescente branco e indefeso.
Eu quero ver um homem branco encarcerado por estuprar uma mulher negra. Só
então, se você me perguntar: “Acabamos com as distinções raciais?”, eu
responderei a você sim.”
Chloe
Ardelia Wofford nasceu em 1931; ao converter-se ao catolicismo adotou o nome de
Anthony, que seus amigos abreviaram paraToni. Seu avô era um fervoroso leitor
da Bíblia e com ele logo aprendeu a ler e a escrever. Bolsista, Chloe Anthony
Wofford (Morrison vem de seu casamento com Harold Morrison, em 1958) foi uma
estudante brilhante, defendeu uma dissertação sobre o suicídio em Faulkner e
Virginia Woolf e iniciou uma carreira docente. Em 1973, publicou pela Random
House uma antologia de escritores negros, The
Black Book.
Entre
os anos 1989 a 2006, lecionou literatura na Universidade de Princeton (New
Jersey), havia muito proibida para negros. Em 1989, ela já era uma escritora
reconhecida, porém, tudo começou no ano de 1970, quando publicou o primeiro de
seus onze romances, The Bluest Eye,
que não teve sucesso e é apreciado com reservas pela comunidade negra. Na obra,
uma menina de 11 anos, Pecola Breedlove, sonha em ter olhos azuis e acaba cega,
louca e persuadida a ter um aspecto de cor cobalto, graças à operação de um
charlatão negro.
Além
de seus romances, vale ressaltar ensaios como Playing in the dark, extraído de suas conferências na Harvard, no
qual pode-se observar a natureza radical de suas análises e suas observações: “Eu
falo da construção da brancura em literatura. Como a literatura se torna ‘nacional’,
como Melville ou Twain tiveram a ideia do branco que eles eram, imaginando o negro:
sua linguagem, estranha, diferente, quase estrangeira; o modo de associar os negros
a certos traços: a violência, a sexualidade, a raiva ou, se for um bom negro, o
servilismo, o amor. O que não tem nada a ver com a realidade, mas é a maneira
como os brancos imaginam os negros. Por exemplo, eu estudo Benito Cereno, de Melville, em que o homem branco não consegue
imaginar que o negro possa fazer algo inteligente. Em Hemingway (em Ter e não ter, O Jardim do Éden), Saul Bellow, Flannery O'Connor, Willa Cather,
Carson McCullers, Faulkner ... eles contemplam corpos negros para refletir
sobre si mesmos, sobre sua própria moralidade, sua própria violência, sua
própria capacidade de amar, ter medo etc.”
E
Morrison não reflete só sobre os preconceitos que constroem o tecido social,
mas também sobre a escrita. Em 1998, referindo-se a Jazz, publicado em 1992, afirmou depois de ter sido acusada de “não
respeitar o que fundamenta todo o romance, a unicidade da voz narrativa”:
“Hoje, ser moderno é um crime!”, “Sem falar daqueles que me colam a etiqueta de
“realismo mágico”, evocando alguma proximidade com Garcia Márquez, o que não
faz sentido. ‘Realismo Mágico’ é o que dizemos quando não sabemos o que dizer,
para ‘literatura não branca’”.
Por
fim, leitores, espero que essas garatujas lhes deixem algo do espírito da Sra.
Morrison, que gostaria, lessem um dia.
Publica originalmente em https://www.z1portal.com.br/toni-morrison-livre-e-insurgente/
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