Revista Philomatica

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Toni Morrison: livre e insurgente


Toni Morrison partiu esta semana. Ao ler sobre sua morte, uma vez mais lembrei-me de Angela Davis, professora, ativista e insurgente contra o estado de coisas e o sistema que nos sufoca. Mas a semana foi de Toni Morrison, professora, rebelde, livre, pensadora, ativista, radical em suas análises e observações, isto é, alguém que afirmava o que quer que seja sem o uso de meias palavras - sempre do agrado de gregos e troianos -, alguém que afirmava ser a morte o significado da vida e a linguagem, por podermos fazê-la, a medida de nossas vidas. Enfim, alguém que dizia ser o “romance o lugar da liberdade”. Como não amar Toni Morrison? Como não fruir da literatura de Toni Morrison?
Aos avessos ao cânone, Morrison, queiram ou não, há de se tornar canônica; seu percurso deixou traços na pátina das ideias literárias, o que é indício de repouso no Panteão dos imortais. Agraciada com o Pulitzer de 1988, foi a primeira mulher afro-americana a receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1993, por Beloved, um mergulho no universo negro dos Estados Unidos no século XIX.
Toni Morrison morreu na noite de segunda-feira sem que víssemos seu sentimento de revolta se esvanecer por um só momento. Nem o sucesso internacional nem o Prêmio Nobel de Literatura em 1993, nem os vários doutorados honoris causa e outras distinções alteraram suas paixões e sua altivez, ainda que, depois de ver um afro-americano na presidência dos Estados Unidos, testemunhasse o retorno do racismo desinibido com a eleição de Donald Trump.
Neta de ex-escravos, ela sabia de onde veio e nunca teve medo de chocar. Em outubro de 1998, por exemplo, chamou Bill Clinton de “o primeiro presidente negro dos Estados Unidos”. “Ele tem todas as características dos cidadãos negros: veio de um lar monoparental, origem modesta, infância na classe trabalhadora, um grande conhecimento do saxofone e um amor pela junk-food digno de um rapaz do Arkansas”, disse ela. Recentemente, em 2015, quando promovia em Londres seu livro God Help the Child, ao comentar os vários abusos policiais que haviam acabado de acontecer nos Estados Unidos, disse ao The Telegraph: “Eu quero ver um policial atirar em um adolescente branco e indefeso. Eu quero ver um homem branco encarcerado por estuprar uma mulher negra. Só então, se você me perguntar: “Acabamos com as distinções raciais?”, eu responderei a você sim.”
Chloe Ardelia Wofford nasceu em 1931; ao converter-se ao catolicismo adotou o nome de Anthony, que seus amigos abreviaram paraToni. Seu avô era um fervoroso leitor da Bíblia e com ele logo aprendeu a ler e a escrever. Bolsista, Chloe Anthony Wofford (Morrison vem de seu casamento com Harold Morrison, em 1958) foi uma estudante brilhante, defendeu uma dissertação sobre o suicídio em Faulkner e Virginia Woolf e iniciou uma carreira docente. Em 1973, publicou pela Random House uma antologia de escritores negros, The Black Book.
Entre os anos 1989 a 2006, lecionou literatura na Universidade de Princeton (New Jersey), havia muito proibida para negros. Em 1989, ela já era uma escritora reconhecida, porém, tudo começou no ano de 1970, quando publicou o primeiro de seus onze romances, The Bluest Eye, que não teve sucesso e é apreciado com reservas pela comunidade negra. Na obra, uma menina de 11 anos, Pecola Breedlove, sonha em ter olhos azuis e acaba cega, louca e persuadida a ter um aspecto de cor cobalto, graças à operação de um charlatão negro.
Além de seus romances, vale ressaltar ensaios como Playing in the dark, extraído de suas conferências na Harvard, no qual pode-se observar a natureza radical de suas análises e suas observações: “Eu falo da construção da brancura em literatura. Como a literatura se torna ‘nacional’, como Melville ou Twain tiveram a ideia do branco que eles eram, imaginando o negro: sua linguagem, estranha, diferente, quase estrangeira; o modo de associar os negros a certos traços: a violência, a sexualidade, a raiva ou, se for um bom negro, o servilismo, o amor. O que não tem nada a ver com a realidade, mas é a maneira como os brancos imaginam os negros. Por exemplo, eu estudo Benito Cereno, de Melville, em que o homem branco não consegue imaginar que o negro possa fazer algo inteligente. Em Hemingway (em Ter e não ter, O Jardim do Éden), Saul Bellow, Flannery O'Connor, Willa Cather, Carson McCullers, Faulkner ... eles contemplam corpos negros para refletir sobre si mesmos, sobre sua própria moralidade, sua própria violência, sua própria capacidade de amar, ter medo etc.” 
E Morrison não reflete só sobre os preconceitos que constroem o tecido social, mas também sobre a escrita. Em 1998, referindo-se a Jazz, publicado em 1992, afirmou depois de ter sido acusada de “não respeitar o que fundamenta todo o romance, a unicidade da voz narrativa”: “Hoje, ser moderno é um crime!”, “Sem falar daqueles que me colam a etiqueta de “realismo mágico”, evocando alguma proximidade com Garcia Márquez, o que não faz sentido. ‘Realismo Mágico’ é o que dizemos quando não sabemos o que dizer, para ‘literatura não branca’”.
Por fim, leitores, espero que essas garatujas lhes deixem algo do espírito da Sra. Morrison, que gostaria, lessem um dia.


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