Revista Philomatica

domingo, 13 de outubro de 2019

Irmã Dulce e os mitos fabricados


Um dos parâmetros da caridade de Irmã Dulce é a internet. Hoje, quando a vida é devassada e submetida aos comentários e julgamentos de uma tresloucada multidão de internautas, a maioria obtusa, manter certa unanimidade e uma biografia respeitável é algo no mínimo sagrado - e só por isso Irmã Dulce já pode ser canonizada.
Ontem, li que a quase santa baiana, lá do além, anda a fazer milagres. E que milagres são esses?, pergunta-me o leitor curioso. Ora, cristão crédulo, não lestes o anúncio de que o presidente não comparecerá à canonização de Dulce? Dulcinha, frágil, porém porreta, já fez valer o dito bíblico de que se resistir ao diabo, ele fugirá de ti, de vós, de nós. Ô Glória!
O fato é que em um país ético e moralmente pobre de homens e mulheres inspiradores, alguns gatos pingados que fazem o que se espera que todos façam, ganham relevância e voilà, tornam-se heróis pátrios ou recebem as graças de anjos e arcanjos, sobem aos céus e descem santos cá pra essa terra cheia de maldades, pecados e corrupção. Não por outra razão Deus está conosco até o pescoço e religiosos organizados em lobbys ditam as regras de uma República em que pastores travestidos de lobos devoradores não só roubam os sonhos do povo, mas também seu intelecto; dividindo assim, anjos e demônios, as almas a seu bel prazer.
Alguns demônios – sim, porque os demônios são vários, assim como os santos – não precisam ser tentados à exaustão, afinal, acreditam desde sempre que comandam todos os reinos da terra e são adorados por todos os seus súditos. Lendas à parte, o fato é que às vezes anjos são expulsos do paraíso e jogados terra abaixo. Rolados pelas encostas, aqui ganham legiões de adoradores, tripudiam dos honestos, tomam a vil forma humana, tornam-se vereadores, deputados, senadores e até mesmo presidentes. Há demônios desviantes que se autodenominam juízes, promotores e que em razão dos privilégios ostentados, perpetuam-se materializando seções do inferno sobre a terra, esquecendo-se das profundezas, das grutas e das masmorras que alimentaram o gótico romântico.
Mas não crucifiquemos Dulce, afinal, a baiana não é culpada da fragilidade das instituições e da dispersão dos devotos, ainda que estes, heréticos, lembrem-se da fé só em momentos limites da existência. O fato é que Dulce vem no rastro da Santa de Manto Azul, achada às margens do Paraíba, e que só no início da República, na tentativa de tranquilizar as almas, o poder central decide torná-la Rainha e Padroeira do país, concedendo-lhe diversos títulos eclesiásticos e civis.
Antes dela, porém, veio Tiradentes, cuja indumentária foi aos poucos transformada pelos interesses do poder a ponto de se assemelhar ao próprio Cristo, e, Aleijadinho, o fazedor de anjos barrocos, o nosso Quasímodo, personagem criada bem ao costume do Romantismo e que, segundo seu biógrafo, Rodrigo Ferreira Bretas, teria sofrido de uma doença desconhecida (algo não comprovado), “provavelmente sífilis ou lepra, que o fizera perder os dedos, os dentes, curvar o corpo, não conseguir andar a não ser de joelhos e mutilar-se, numa tentativa dramática de que a dor nos membros diminuísse” e que só não virou santo como Padim Ciço, porque Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, devia ser um mineiro de bem e também porque em Minas não havia cangaço, nem um Lampião, com o qual o escultor pudesse tramar os seus ardis.
O fato é que a Igreja, necessitada de santos, ainda que os devotos já os tenham em demasia, precisa atualizar seu repertório, afinal, que emoções Santos como Hipátia de Alexandria, Platão e Sócrates inspirariam no devoto do século XXI, época em que a miséria espiritual se mede pelo estômago e não pelo intelecto?
Por fim, Irmã Dulce, louvável Irmã Dulce, que se preocupava com os humildes e miseráveis vai tomar um banho de loja de historiadores, museólogos, professores e semiólogos (a maioria, ateísta!), ciosos em construir uma indumentária cuja simbologia responderá aos desejos e à ignorância do povo e, de quebra, atenderá, mais uma vez, aos interesses dos poderosos e da canalha política (o Congresso vai pagar a viagem de sete senadores a Roma, em mais uma gastança turística bancada pelo erário), que deveria – e não fez – o que fez Irmã Dulce.
Assim, leitor, reserve alguns caraminguás para comprar mais um oratório e mais uma santa. Esta agora, observe, deverá ter especificações precisas (se não as tiver, não hesite em abrir um chamado no Procom ou no Reclame Aqui). Em sua imagem canônica oficial, Irmã Dulce deve vir assim: vestida com seu tradicional hábito azul e branco (vestes de quem integra a Congregação de Nossa senhora da Conceição), trazer um terço de Maria, de quem era devota, e “carregar no colo uma criança negra, sem roupas, descalça e desnutrida que, de acordo com uma possível leitura iconográfica da peça, representa o menino Jesus”.
A embalagem e todo o mais fica por conta da imaginação e da fé do devoto. Ah, atente para o preço, que deve ser módico!
 

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