Revista Philomatica

sábado, 12 de outubro de 2019

Lula, o papagaio holandês, Greta, Malala e os nossos maniqueísmos quotidianos


O homem, capaz de feitos impensáveis, transformou o mundo ao longo da história, mas, parece-me, na sua essência permanece o mesmo; não admite, por exemplo, que dentro do seu coração branco e tão puro reside o mal. A um homem multiforme, fragmentado, senhor de desejos múltiplos, bondade e alguma vilania, prefere o ser raso, plano e imutável. Para isso, em casos extremos, ao deparar-se com pares que se mostram como de fato são, a ciência criou o Transtorno Dissociativo de Identidade, na tentativa de explicar como um pode ser tantos. Nesses casos, é claro, mal se fala da dissimulação quotidiana.
Mas o leitor deve estar se perguntando o porquê de todo esse intróito, não é? Bem, no fundo, não queria perder o carro das ideias, que passa rápido, e, se eu deixar para a semana que vem o que se fala agora, é provável que Lula já esteja discursando da sacada de sua cobertura (não a do Triplex!), o passarinho tenha voado, Greta apareça serena e dócil e Malaia, bem, não consigo ver Malaia com aqueles olhos crispados de raiva que Greta carrega, prova de que também sou maniqueísta e vejo em tudo um embate entre o bem e o mal, ainda que procure me afastar o mais que posso de todos os antipodismos e de todas as paralelas (estas, só porque me lembrei de Belchior).
Esta foi mais uma daquelas semanas espetaculosas que certamente renderia algumas páginas a Guy Debord e, é claro, a imprensa tem se deliciado com imagens, caras, bocas, cartas etc etc. Na política, longe de tomar partidos, dou razão à minha avó, para quem todos são “farinha do mesmo saco”. Mas, convenhamos, há momentos em que a situação em si é irônica, prosaica, e a mim não cabe outra coisa além de rir de uns e de outros – e de mim! Divirto-me ao ver as pessoas comporem antinomias e depois pares, iguaizinhos aqueles vasos que uma tia sexagenária insiste em manter alinhados sobre o aparador da sala; ainda que um deles já exiba a borda toda trincada, resultado da pátina do tempo, para ela o vaso é perfeito, sem máculas.
Veja, caro leitor, no mundo do espetáculo Lula não exibe nódoas e, impoluto, revela uma dignidade e elevação de caráter incomparável. Lula é o bem, e as pessoas lutam pelo bem, razão, acredito, da criação do movimento Lula Livre e de celebridades e intelectuais exibirem o polegar e o indicador, refutando o canônico paz e amor dos meus tempos de adolescência.
Não, leitor obtuso, não seja maniqueísta, não estou a condená-lo; procuro ver com olhar de míope, apertando os olhos à procura das fissuras onde se escondem as supostas verdades, ainda que relativas, até mesmo porque o maniqueísmo mostra só a superfície e raras as vezes chega ao fruto dentro da casca. Assim se produzem os espetáculos; da coxia, pouco se sabe.
Querelas jurídicas à parte, o fato é que agora Lula se recusa a sair da prisão. Ao fazê-lo, torna-se um herói diverso daquele que estamos acostumados, qual seja, inventivo e destemido, pleno de ações heroicas, de modo que vejo Dumas obrigado a repensar boa parte de sua narrativa. Lula prefere o embate no STF, casa carregada de todas as suspeições, cujas figuras sombrias que nela habitam, atravessados o portão, a antessala do mal e o Aqueronte, não encontrariam dificuldade alguma em se acomodar em qualquer dos círculos do Inferno de Dante.
A ironia da situação é que na briga de gato e rato, Lula e a Lava Jato, haverá o esvaziamento do Lula Livre. Mas isso não é nada! O risível da situação é contrapor o embate de Lula ao caso do passarinho levado à prisão em Utrecht, na Holanda. O pássaro, como Lula, não sabia de nada! Foi enclausurado só porque, durante um assalto, pousava no ombro do criminoso que, segundo o próprio pássaro, nunca o vira antes e não sabia sequer seu nome, só estava ali por uma infelicidade, como poderia ter pousado em um arbusto qualquer. “Não analiso a espécie de árvore ou arbusto antes de pousar em seus galhos.”, piou o pássaro aos policiais. A polícia holandesa, incorruptível, que desconhece até mesmo a palavra propina, não de u mole e levou o pássaro em cana; não houve, dizem, piados que convencessem os policiais. Na delegacia, como acontece com Lula, o pássaro tem recebido a atenção da imprensa e tem sido muito bem tratado pelos policiais, de modo que não poderá, em um futuro próximo pleitear indenizações do Estado – espera-se.
Sobre Greta Thunberg pouco sei: de uma família de atores (li isto!), assumiu o protagonismo do espetáculo das últimas duas semanas. Ao falar na ONU, exibiu uns olhos crispados de ódio, rosto tenso e, da boca, as palavras de ordem saiam como tiros de metralhadora. É louvável a sua preocupação com o meio ambiente, mas afirmar que teve a infância roubada é algo que, penso, não deverá sustentar por muito tempo, já que a retórica se altera de acordo com os interesses; à medida em que for ampliando seus contatos na política é certo que afinará o seu discurso. 
Malala, esta sim, penso, teve uma infância roubada, obrigada a fugir dos preconceitos tribais e do fundamentalismo islâmico. Comparar as duas, tornou-se mais um ato maniqueísta nas redes sociais: a Greta, creditam certa maledicência, por acreditarem ser ela títere de poderes obscuros em luta por seus próprios interesses; já Malala, colocada frente à raiva discursiva de Greta, seu rancor e sua agressividade, é vista como alguém que apresenta um semblante nobre, sereno e humilde, mas que consegue se impor. Para os críticos, tudo isto faz parte de um maniqueísmo maior e injetado de preconceitos, pois Malala representaria o feminismo aceitável.
Isto posto, à espera de que Lula resolva sair da gaiola e os internautas maniqueístas decidam entre Greta (saudosa Garbo!) e Malala, aguardo o voo livre do pássaro, que também não sabia de nada!




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