Revista Philomatica

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Réquiem a Harold Bloom


 

Ao Leitor:
Se você tem algum apreço pela literatura e por aqueles que dela se ocupam, continue a leitura. Caso contrário, deslize os dedos pela tela do seu smartphone ou clique um botão qualquer de seu teclado; abandone a leitura pois este não é assunto do seu interesse.

Assim como parece não ter sido do interesse do site de notícias que se anuncia como “a maior empresa brasileira de conteúdo”, ao menos no dia 14/10/2019, segunda-feira, dia em que Bloom partiu para os Campos Elíseos. Neste dia, o tal site ocupou das separações e das bundas das celebridades, conteúdo, parece-me, do interesse de um público que ignorou Bloom. Mas não culpemos o público; muitos professores universitários fizeram – e fazem – o mesmo.
Harold Bloom – se você é daqueles leitores teimosos e resolveu insistir no texto – morreu aos 89 anos e foi um titã da crítica literária. Cultíssimo, era uma enciclopédia ambulante da literatura inglesa; notório por se opor ao politicamente correto e por seus julgamentos tradicionais e fora de moda sobre poetas, romancistas e dramaturgos. Não era lá muito do gosto da patota multiculturalista, sobretudo aquela que flutua pelas periferias do texto.
Professor de longa data de Yale e da Universidade de Nova York era, em si, um verdadeiro oximoro, considerando que se tratava de um estudioso sério que escrevia para as massas. A Ansiedade da Influência e O Canône Ocidental são best-sellers inquestionáveis. O primeiro, publicado em 1973, é uma obra densa que expõe uma teoria fortemente dependente de Freud, sobre a luta psíquica que produz grandes poetas. Nos anos posteriores, contudo, Bloom foi um populista determinado, traduzindo preocupações de alto nível sobre educação literária para um público geral e mais abrangente, razão pela qual tornou-se um dos raros críticos a ter suas obras nas listas de best-sellers.
Tratando das inseguranças culturais, Bloom ofereceu respostas inequívocas a perguntas que considerava fundamentais para a literatura e o aprendizado dela. Quais escritores pertencem ao panteão literário e quais estão no meio da confusão? Devemos ler para satisfazer agendas sociais ou políticas, ou devemos ler para entender nosso eu essencial? À medida que novas escolas de crítica tomavam conta das universidades americanas na década de 1960, permitindo que os defensores do marxismo, desconstrucionismo, feminismo e multiculturalismo revisassem o currículo, Bloom emergiu como um defensor da tradição.
O Canône Ocidental (1994) tornou-se sua réplica para os teóricos multiculturalistas, que ele reuniu e ridicularizou como adeptos da “Escola de Ressentimento”. O livro destaca 26 escritores - quase todos homens brancos europeus mortos, incluindo Shakespeare, Dante, Borges e Beckett - cujas obras ele considerou leitura obrigatória, razão do chororô dos ressentidos. Sem papas na língua, extravagante em sua incorreção política, ele alienou movimentos inteiros com críticas irreverentes sobre o que chamou de mal-estar a varrer a academia. “Eu não sou”, proclamou maliciosamente em um artigo no Times londrino, “um defensor da ficção lésbica esquimó”.
Considerado o crítico mais audacioso de sua geração, em 1900 publicou O Livro de J, em que tratava a Bíblia como literatura e sustentava que o Antigo Testamento fora escrito por uma mulher. Não é nem preciso dizer que os estudiosos da Bíblia refutaram a sua tese; o livro, porém, tornou-se um best-seller. O mesmo aconteceu com Como ler um livro e por quê (2000), versão condensada do cânone de Bloom.
A celebridade de Bloom era devido tanto à sua personalidade quanto às suas ideias; foi uma personagem tão colorida quanto Falstaff, a grande criação cômica de Shakespeare. Bloom, com seus olhos melancólicos, podia ser cáustico, bombástico, atrevido e encantador. Aos 30 e poucos anos, sofreu uma depressão profunda e começou a ler Freud obsessivamente. Suas lutas psíquicas se arrastaram por seis anos, durante os quais ele começou a escrever um poema épico inspirado em um pesadelo. O poema se transformou em uma teoria da poesia, que veio à luz em A Ansiedade da Influência.
Sua teoria sustentava que os poetas são como filhos que se rebelam contra o pai - adaptação da teoria da raiva edipiana de Freud. Segundo Bloom, o desejo de ofuscar o trabalho brilhante do passado leva poetas “fortes” a usurpar seus antecessores e criar seus próprios trabalhos significativos. Para isso, baseou-se nos românticos para ilustrar a teoria de que compor um poema é um “processo feroz” de ultrapassagem e revisão das melhores obras poéticas do passado. O livro, ao mesmo tempo deslumbrante e confuso, empregava tantos termos obscuros que levou a escritora nova-iorquina Larissa MacFarquhar a afirmar “que parecia ter sido escrito por um cabalista Lewis Carroll”. O crítico britânico Terry Eagleton, contudo, chamou-o de “uma das teorias literárias mais ousadamente originais da década passada”.
Bloom era uma celebridade na academia, mas ficou cada vez mais atormentado. Ele havia tolerado os desconstrucionistas - o principal deles, o pensador francês Jacques Derrida - e, embora tenha contribuído com um ensaio para um livro com Derrida e outros defensores da desconstrução, negou que fosse um deles. À medida que outras novas escolas de crítica ganhavam popularidade - novos historicistas, socialistas, feministas e multiculturalistas -, Bloom as ridicularizou afirmando que faziam parte de “grupo de lemmings” que estavam destruindo os estudos literários com suas agendas não literárias – por isso foi visto como reacionário. Um de seus ex-alunos, o escritor Charles McGrath, observou que o velho professor começou a brincar dizendo que era marxista da “escola marxista Groucho ... cujo lema é Seja o que for, sou contra”. Ao escrever O Canône Ocidental afirmou que procurava salvar a educação literária tradicional dos bárbaros, momento em que considerava o que era ensinado nas academias como resultado de uma culpa social e cultural que assumira o controle.
Tratado como um dinossauro pela maioria de seus colegas, afirmava, disse não se importar, pois acreditava na genialidade literária e no “poder de alterar o mundo da imaginação de um poeta”, convencido de que a grande poesia mudou o mundo.



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